Por Wu Ming 4

 

Está claro que esta noite não há glória. E amanhã nenhum horizonte. Era antifrástico também o título do filme (Paths of Glory, 1957), um dos mais belos contra a estupidez antihumana do militarismo. A história é conhecida: durante a Primeira Guerra Mundial, no front ocidental, um general francês inepto lança um ataque impossível contra uma fortificação alemã. As tropas francesas não conseguem sequer sair das trincheiras; ceifadas por metralhadoras, são repelidas. O ataque é uma catástrofe colossal. Para não passar por incapaz, o general joga a culpa na covardia de seus soldados e pede que sejam fuzilados cem, escolhidos ao acaso. O Alto Comando lhe concede três. Três bodes expiatórios, que pagarão por todos, ainda que a culpa não seja de ninguém, ou melhor, é de quem mandava de cima. E de quem quis essa guerra.

A justiça italiana, esta noite [1], não é distinta da justiça militar do filme de Kubrick (que se inspirou numa história real). Embora houvesse um bom advogado de defesa, que foi derrotado por um julgamento grotesco, quase caricatural de tão absurdo.

A justiça italiana decidiu que cinco pessoas pagassem por todos. Outros cinco podem se somar. Assim se obtém um empate político com a sentença final pelo ataque à escola Díaz. Pouco importa se as condenações dos policiais são relacionadas com espancamento e morte premeditada de pessoas, enquanto que as dos manifestantes são relacionadas por destruição de coisas, objetos inanimados, em meio ao caos geral. Alguns deles podem ficar até dez anos na prisão.

Dez anos. Quase o mesmo tempo que se passou desde então. Entretanto, as vidas dessas pessoas se transformaram em outras coisas em comparação com a daqueles dias. Entretanto, os danos materiais às coisas foram reparadas, as seguradoras indenizaram, o mundo mudou. Entretanto, as imagens de Gênova desses dias, o comportamento das forças de ordem e o clima que se criou foram passados por todos os canais de comunicação como um loop até se converterem numa parte do imaginário coletivo. Entretanto, sobre o G8 de Gênova foram feitos documentários e filmes, dezenas de livros publicados e rios de tinta escritos. E depois de tudo isso, deve chegar ao julgamento que pretende que dez pessoas paguem a conta, metaforicamente selecionadas de forma aleatoria pelo destino, por causa de um vídeo em vez de outro, uma foto batida um segundo antes ao invés de um segundo depois. Os três soldados do filme de Kubrick.

Eu estava em Gênova, em julho, há onze anos. Estava atrás da primeira fila de escudos de acrílico na via Tolemaide, quando atacaram sem mais a manifestação e nos asfixiaram com gás, num trecho do percurso autorizado. Com dez mil pessoas atrás de você não era possível retroceder, e a única solução para se salvar e impedir que se fosse esmagado foi responder aos ataques como se podia, e, no final, depois do desastre, depois da batalha, a morte, proteger a parte final da manifestação que retrocedia sob os jatos de água. E fui lá no dia seguinte, juntamente com muitos outros, escalando pelos corredores de grades, a sentir os helicópteros em cima de nossas cabeças e por cima da cidade, para levar todos até à base.

Eu poderia ser um deles. Um destes jovens escolhidos ao acaso. Em vez disso, estou aqui, escrevendo, no meio da noite, incapaz de dormir, sabendo que amanhã será melhor, dormir mais, e, lentamente, eu posso me permitir o luxo de reduzir tudo a uma memória distante ruim. Eles não. As vidas que levaram nestes onze anos se interromperam e Gênova recomeça desde o início.

Este país está acabando como merece. Em Gênova de 2001, manifestávamos contra o poder oligárquico dos grandes organismos econômicos internacionais. Pensávamos sobretudo nas receitas neoliberais fracassadas que o FMI impôs aos países mais pobres, devastando suas economias com chantagens e afogando-os com o mecanismo da dívida. Hoje essa cura nos toca. Na Itália mandam os comissários não eleitos do Banco Central Europeu e aplicam a mesma receita base de corte de gastos públicos, cujo fim se reduz em última análise a uma simples declaração: salvar os ricos.

Estávamos certos.
Perdemos.
O inimigo fez reféns.

Até que a maré volte a subir novamente.

Nota

[1] Artigo original publicado em 14/07/2012.

Artigo original disponível aqui. Traduzido por Passa Palavra.

1 COMENTÁRIO

  1. A minha pergunta é: a violência contra os jornalista como é mostrada no filme ‘DIAZ’ é ficção ou , de fato, aqueles espancamentos depois de uma incursão noturna realmente aconteceram em 2001? Se foi assim , a Itália tem já uma outra mancha na sua história (do seculo 21) além de Berlusconi,em suma , é outra “democracia dos poderosos”, que quer se passar por liberal , isso tem nome e cheira a l939.

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