Por Passa Palavra
Parte I – Parte II – Parte III – Parte IV
“Cesare Battisti é um perseguido político?”. Essa simples pergunta é objeto de debate inesgotável entre diferentes atores: o governo italiano, o governo francês (com Mitterrand e posteriormente com Sarkozy), o governo brasileiro e os comitês de solidariedade (no Brasil e França), entre outros. Essa discordância tem em seu cerne a análise ou o ponto de vista destes sobre os movimentos dos anos 70 na Itália e o seu desenrolar que perdura até hoje, uma vez que não houve processo de anistia. Para o governo italiano, aquelas pessoas que se uniram em manifestações, nas ocupações das universidades, nas organizações e mobilizações feministas, e se recusaram a se alinhar a um ou outro pólo de poder constituídos da época, isto é, a burocracia do Partido Comunista Italiano (PCI) e a democracia capitalista, não passaram de subversivos e, no caso dos grupos armados, de terroristas. Essa categoria — de profundo conteúdo ideológico — permitiu que a Justiça italiana criminalizasse em massa os movimentos e lutas sociais. Aos dissidentes restou aceitar a história reescrita pelo governo, o que lhes garantia o status de “arrependido” e uma pena reduzida.
Battisti jamais foi um “arrependido”, não só no significado jurídico que carrega o termo, como também na dimensão política, pois, apesar da renúncia às armas, ele nunca deixou de dizer o que ocorreu durante os anos 70 na Itália, isto é, a partir da perspectiva de quem estava na dissidência e não no poder, a qual questionou as estruturas e posições do poder, abrindo espaço à imaginação de formas mais justas e igualitárias de sociedade. É por essa razão que a Itália está disposta a calá-lo. Primeiro Chirac (em 2004), o qual o pagamento foi o consórcio do trem em troca da Doutrina Mitterrand que garantia abrigo a diversos italianos envolvidos nos movimentos dos anos 70. E, agora, a intensa pressão ao governo brasileiro para se “reavaliar” o caso Battisti.
Para uma leitura atenta, esse artigo estará dividido em quatro partes. A primeira, “A Itália daquele tempo e o exílio”, é uma explanação sobre o contexto italiano dos anos 70 e uma noção geral sobre a geografia política italiana. Na segunda parte, passamos a nos focar em Cesare Battisti e sua trajetória de vida, por isso, nomeamos essa de “O Sujeito”. A terceira parte, “Espaços de reação”, analisa a reação contra o refúgio dado pelo Ministro Tarso Genro, no início desse ano. E, por fim, a quarta parte contém uma breve conclusão e uma seleção de citações em apoio.
1- A Itália daquele tempo e o exílio
O levante de Maio de 1968, na próspera economia capitalista francesa foi a “tomada do céu de assalto”. Numa década extremamente entediante, as idéias de emancipação social tornaram não só influentes, como, de fato, perigosas por não caberem dentro da reivindicação político-partidária, a qual está submetida a democracia representativa. Apesar do papel importante dos estudantes, esse evento foi marcado pela maior greve geral dos trabalhadores e pela efetiva aliança entre trabalhadores e estudantes. Fora uma ruptura com o imaginário radical da época, entre os diversos grupos, podemos destacar o “Socialismo ou Barbárie”, grupo que destoava do marxismo ortodoxo do Partido Comunista Francês e dava ênfase nas lutas dos trabalhadores além das fábricas.
Na Itália, as lutas sociais se desenvolveram ao longo dos anos 70, os quais foram marcados pela força política da esquerda extra-parlamentar, isto é, a efervescência das manifestações de ruas, das ocupações, das rádios livres, dos squats (ocupas e centros sociais) e, por fim, da luta armada e da via insurrecional. Esse campo político — revolucionário, contra o reformismo do PCI — foi denominado Autonomia Operária. Esse movimento possuía elaboração teórica na releitura de O Capital, focando o papel da luta de classes – “operarismo italiano” – e tinha em sua composição o acúmulo de lutas das organizações operárias e estudantis de anos anteriores, sendo a primeira responsável pela influência marxista-leninista e a segunda anarquista libertária.
Uma das práticas da Autonomia Operária eram as “reapropriações revolucionárias” — assaltos a bancos e outros estabelecimentos para o financiamento da luta. Mas, até então, a luta armada não havia sido deflagrada. Ela ocorre em resposta a “estratégia de tensão” aplicada pelo governo italiano, período que é descrito por Battisti, em seu livro “Minha Fuga sem Fim” (Martins Fontes, 2007): “Juntaram-se às hordas de contestatários, jovens miseráveis do campo recém-chegados às cidades e jovens burgueses rompendo com sua própria classe. Desse tríplice encontro iria surgir a onda de violência política que submergia a Itália, e o círculo vicioso das respostas do Estado, da CIA, do Partido Comunista, da extrema esquerda, da extrema direita, das organizações mafiosas. É a anomalia italiana. Bombas lançadas sobre os manifestantes, exército nas ruas, tiros à queima-roupa, organizações secretas, golpes de Estado fracassados, atentados, execuções sumárias.” Tudo isso se desenvolve num cenário incomum: o Partido Comunista Italiano (PCI) partilhava o poder com a Democracia Cristã (PDC), partido de centro-direita. Foi o “Compromisso Histórico”, documento onde o PCI assume o reformismo e a partilha de poder, que teve como resposta a deserção em massa do PCI para as fileiras da Autonomia Operária.
Battisti integra os PAC — Proletários Armados para o Comunismo — depois de cumprir pena por dois anos pelas reapropriações e não reencontrar os antigos companheiros da casa ocupada (squat). Diferente dos outros grupos, os PAC possuem um referencial teórico nos autores franceses (Foucault, Deleuze, Baudrillard e Sartre) e, em contraposição ao rigor do centralismo democrático dos partidos, sua organização era pautada no princípio da identidade múltipla: a sigla poderia ser usada por qualquer pessoa para reivindicar uma ação. É nesse grupo que Cesare conhece Pietro Mutti, o líder dos PAC.
Após a execução de Aldo Moro, em Maio de 78, pelas Brigadas Vermelhas (grupo de alinhamento marxista-leninista), a posição defendida pelos PAC passa a ser: “Sim à defesa armada, não aos atentados que acarretassem morte humana”. A saída de Battisti do grupo é marcada quando um núcleo dos PAC reivindica publicamente a morte do comandante da prisão, Antonio Santoro (Junho de 1978). Esse é o momento do adeus às armas. A partir desse evento, Cesare passa a viver num apartamento com outros que abandonaram a via armada. No entanto, a sigla PAC continua a existir até 1979 e somente depois de três homicídios e diversas ações ela é abandonada.
Em Junho de 1979, todos do apartamento são detidos numa operação no norte da Itália e encaminhados para as prisões especiais acusados de subversão e pertencimento ao grupo armado. Porém, “Nem uma única vez, durante os interrogatórios que se seguiram, e durante o processo de 1981, a polícia ou os juízes cogitam sua participação nas quatro ações homicidas dos PAC. Seu nome, aliás, nunca apareceu nas investigações conduzidas após cada um dos atentados.” (Fred Vargas, posfácio “Minha Fuga Sem Fim”)
Ainda sobre o processo jurídico, nessa época, a Itália criou a delação premiada, na qual “os famosos ‘arrependidos’ eram acusados que negociavam sua pena em troca de denúncias, em acordo com a magistratura desejosa de liquidar seus milhares de dossiês mediante todos os meios e de apontar culpados, verdadeiros ou falsos. (…) Quanto mais nomes os arrependidos forneciam, mais chances eles tinham de conseguir liberdade. Num sistema assim, imagina-se facilmente a montanha de mentiras que os arrependidos tentavam inventar, às vezes tão pouco plausíveis que os próprios juízes tinham de lhe chamar a atenção.” (Cesare Battisti, “Minha fuga sem fim“)
É depois dos casos de torturas, da negação de comunicação sobre a morte de seu irmão Giorgio num acidente de trabalho e da intensa repressão em 1980 que Cesare Battisti decide fugir da prisão. Em Outubro de 1981, um grupo de militantes foge do presídio com apoio dos COLP (Comunistas Organizados pela Libertação Proletária) — formado por alguns membros dos PAC e liderado por Pietro Mutti — e até o final daquele ano, centenas de dissidentes estavam em território francês, pois até 2004 vigorou a Doutrina Mitterrand, a qual impedia a extradição por crimes políticos. Este é o início de sua fuga sem fim.