Por Passa Palavra
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3- Espaços de reação
O Senador Eduardo Suplicy, em artigo publicado na revista Caros Amigos, chamado “Um fim para a fuga”, de Junho/08, afirma, em defesa de Cesare: “Nossa constituição estabelece que ninguém pode ser julgado sem direito à defesa, como ocorreu na condenação italiana, nem condenado à prisão perpétua, e muito menos permite a extradição em razão de crime político.”
O jurista Dalmo Dallari, no artigo “Extradição e direitos humanos”, de Maio/08, também defende a permanência de Cesare no Brasil: “E a Constituição brasileira estabelece, no artigo 5º, que não será concedida extradição de estrangeiro por crime político. Além disso tudo, que exige séria reflexão, a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XLII, estabelece que “não haverá penas: a) de morte; b) de caráter perpétuo”.” (…) “Não seria aceitável deixar-se impune quem atentou contra o direito à vida, mas seria iníquo e injusto colaborar para a imposição de uma pena que, além de perpétua, criando um morto-vivo, seja baseada em arbitrariedades e falsidades, contrariando princípios e normas expressamente consagrados na Constituição brasileira.”
Porém, assim que o Ministro da Justiça brasileiro, Tarso Genro, concedeu refúgio à Cesare Battisti, sua situação, até então pouco noticiada – a não ser em veículos com vínculo direto à situação –, tornou-se um dos principais temas de debate político na imprensa nacional. Inúmeros editoriais na mídia corporativa escrita, matérias de longos minutos nas cadeias de TV, enquetes em sites na internet, inúmeros blogs comentando a situação, em polarização crescente de opiniões. Cesare Battisti passou de um ilustre desconhecido a uma figura odiada por uns e solidarizado por outros.
Este comportamento poderia ser completamente explicável como pauta corrente, não fosse o fato de que boa parte dos meios de comunicação tem orientado claramente sua linha editorial em posição favorável à extradição de Cesare. O jornalista Celso Lungaretti, em um artigo, chega a comparar a imprensa Brasileira à “Quinta Coluna”, expressão do exército em guerra. A quinta coluna seria a responsável por se infiltrar no terreno inimigo e instigar as posições do exército invasor, colaborando com sua futura entrada no território inimigo. O fato de o presidente italiano enviar sua carta endereçada a Lula primeiramente à imprensa (alinhada à posição italiana) antes dela chegar ao presidente corrobora com esta opinião. E, reparando com atenção nas coberturas, observa-se que todas as posições contrárias a Cesare são vinculadas nas reportagens, quando suas defesas são pouquíssimo visibilizadas.
Posição igual, mas de matriz diferente tem a revista Carta Capital, dirigida pelo Ítalo-Brasileiro Mino Carta. A revista, que também tem posição alinhada aos detratores de Battisti, fez constante cobertura favorável à extradição, vinculando a imagem de Cesare à de um criminoso comum e dissociando-o de seu passado militante/ativista. Esta posição causou afastamento no Brasil de muitas pessoas inicialmente envolvidas com a campanha.
Explica-se porém a posição de Mino Carta remetendo-se ao já citado “Compromisso Histórico” do PCI/Democracia Cristã e seus seguidores. “O editor da Carta Capital, o ítalo-brasileiro Mino Carta, embora nunca tenha se filiado ao Partido Comunista Italiano, foi seu simpatizante declarado. Os conflitos e lutas sociais nos anos 70 na Itália, nos quais Cesare Battisti estava inserido, foram antes de tudo um conflito em que de um lado estavam organizações e movimentos extra-institucionais, extra-parlamentares, e de outro organismos institucionais, como os partidos políticos. Na segunda metade dos anos 70, o PCI celebrou o chamado Compromisso Histórico, com o qual teria uma participação no governo da Democracia Cristão. E o papel do PCI foi, antes de tudo, o de (tentar) controlar o conflito e os movimentos sociais. O PCI e a Democracia Cristã estavam no mesmo lado, enquanto grupos comunistas extra-parlamentares como o que Cesare Battisti participou, estavam em antagonismo a eles. A ferrenha caça às bruxas, com a derrota dos movimentos autônomos na Itália, foi obra tanto do PCI quanto da Democracia Cristã.
O que vemos na posição condenatória, reacionária e até desumana, da desinformação reproduzida incessantemente na Carta Capital e pelos seus principais articulistas não é mais do que a continuidade, no tempo e no espaço, do Compromisso Histórico italiano dos anos 70 entre o PCI e a direita.”
Também cabe analisarmos a reação do próprio Estado italiano, em todos seus aspectos: com partidos conservadores propondo retaliações diplomáticas, econômicas e políticas ao Brasil; presidente, relações exteriores, primeiro-ministro e chanceler italiano questionando por diversos meios a decisão brasileira e sugerindo que esta foi uma afronta ao Estado italiano; partidos de centro-esquerda (herdeiros do PCI) depreciando o refúgio brasileiro e sugerindo que a decisão baseou-se em desconhecimento; por fim, ativistas de organizações reacionárias fazendo manifestações na Itália em contrariedade a Battisti.
O jurista Dalmo Dallari é categórico sobre uma das comprovações tácitas desta reação: “O governo italiano acatou civilizadamente a decisão francesa de não extraditar Marina Petrella, reconhecendo tratar-se de um ato de soberania. Qual o motivo da diferença de reações? O governo e o povo do Brasil não merecem o mesmo respeito que os franceses? Essa diferença de comportamento dos ministros italianos deixa mais do que evidente que é plenamente justificado o temor de Battisti de sofrer perseguição por motivo político. A reação raivosa dos ministros italianos não dignifica a Itália e elimina qualquer dúvida.”
Podemos tirar algumas conclusões desta forma diferenciada de tratar a decisão brasileira – já que foi respeitado o recente refúgio francês a Marina Petrella. Um resquício colonial, dado que um Estado de passado colonial tomou uma posição questionadora a um Estado de origem colonialista. É também um questionamento da própria Justiça italiana, dado que o refúgio afirma claramente que houve arbitrariedades no julgamento — à revelia e com base em provas de caráter duvidoso. Ainda, trata-se do reconhecimento de que a esquerda institucional italiana tem, em seu passado, ações repressivas e autoritárias destinadas à esquerda autonomista e/ou extraparlamentar. E, por fim, é o reconhecimento de que Battisti não é o monstro criado por meio de delações premiadas, matérias sensacionalistas, propagandas de Estado. É a derrota da “caça às bruxas” italiana, inaugurada em uma aliança do PCI com a Democracia cristã e re-editada por Romano Prodi e Silvio Berlusconi.
Dallari, novamente, defende a constitucionalidade plena desta decisão. “A concessão do estatuto de refugiado a Cesare Battisti é um ato de soberania do Estado brasileiro e não ofende nenhum direito do Estado italiano nem implica desrespeito ao governo daquele país, não tendo cabimento pretender que as autoridades brasileiras decidam coagidas pelas ofensas e ameaças de autoridades italianas ou façam concessões que configurem uma indigna subserviência do Estado brasileiro.”
Esta decisão coloca em xeque também, claro, a idéia de que a Itália teve, na década de 70, uma democracia ampla, irrestrita e que respeitava os direitos humanos. Reconhece com isso que esta cometeu excessos na defesa de interesses econômicos emergentes e, para isso, torturou, matou, prendeu arbitrariamente, utilizou-se de meios paramilitares e reprimiu a dissidência, seja ela política, cultural ou intelectual. Michel Foucault, numa entrevista de 1980, referindo-se à prisão de Toni Negri e ao que ocorria na Itália, compara a vida nos países soviéticos com os supostos países democráticos: “É verdade, nós não vivemos sob um regime no qual os intelectuais são enviados para os campos de arroz. Mas você já ouviu falar de um Toni Negri? Ele não está na prisão apenas por ser um intelectual?”
Em “De Volta” (2006), Antonio Negri apresenta uma importante consideração sobre o processo judiciário italiano: “Era preciso aceitar a Lei dizia-se, mesmo que a Lei fosse injusta, pois era a única possibilidade de se defender. Como se fosse possível! Fui condenado a trinta anos de prisão com base em denúncias delirantes feitas por “arrependidos”. Eu mal havia partido da Itália, e tinha esperado preso durante quatro anos por um processo que não começava. Bastou que eu não estivesse mais lá que o processo começou. Bastou que alguns “arrependidos” me acusassem de tudo e de coisa nenhuma: eles queriam sair da prisão, eu estava foragido – nenhuma defesa possível. (…) Na Itália, a crise e o fim dos movimentos revolucionários dos anos 70 e início dos 80, determinaram uma espécie de generalização da delação e do arrependimento – a delação e o arrependimento como instrumentos de salvaguarda pessoal e jurídica impostos pelo poder. Foram aprovadas certas leis: falar era o mesmo que sair da prisão. (…) O resultado é, mais uma vez, que indivíduos que assassinaram dezenas de pessoas estão em liberdade, e que outros que não mataram ninguém continuam na prisão. É um sistema perverso, os efeitos são inimagináveis. (…) Como já disse, a esquerda entrou no sistema de justiça através da luta contra o terrorismo. Foi ela que levou adiante o empreendimento da repressão política no fim dos anos 70.” (Antonio Negri, em entrevista publicada no livro intitulado “De Volta”, Record, 2006).
O próprio ex-presidente italiano Francesco Cossiga, em carta enviada a Battisti afirma que “Como instrumento de luta psicológica, conseguimos, a Democracia Cristã e o Partido Comunista Italiano, que conduziram o entendimento com as organizações sindicais e com a grande imprensa e a televisão pública, fazer passar os subversivos de esquerda e os eversores de direita como simples terroristas e talvez absolutamente como “criminosos comuns”. (…) “Os crimes que a subversão de esquerda e a subversão de direita cumpriram, são certamente crimes, mas não certamente “crimes comuns”, porém “crimes políticos”.”
Da mesma forma, Battisti assinala que os tribunais da época eram constituídos por membros do PCI que “teorizam e aplicaram uma repressão terrível, em acordo com o governo dirigido pela Democracia Cristã. A implicação dos comunistas nos impressionantes desvios jurídicos dos anos de chumbo permite compreender por que a ‘centro-esquerda’ italiana, oriunda diretamente do antigo PCI, é hoje um dos partidos mais encarniçados contra os antigos refugiados.” (Cesare Battisti, Minha Fuga Sem Fim, p. 54). Passa Palavra
Leia aqui a primeira parte do artigo: “A Itália daquele tempo e o exílio”
E a segunda parte: “O sujeito”