A defesa pelos sindicatos da «preferência nacional» no emprego para os trabalhadores britânicos da energia lembra o apoio da Internacional a uma greve insurreccional dos mineiros brancos da África do Sul, em 1922, que esteve na origem do apartheid. Por Passa Palavra
Os operários de uma refinaria da empresa petrolífera Total, situada em Lindsey, na Grã-Bretanha, decidiram a 9 de Fevereiro terminar a greve selvagem [greve iniciada fora dos sindicatos] que durava há uma semana. Os grevistas protestavam contra o facto de a empresa empregar mão-de-obra portuguesa e italiana, que aceitava trabalhar com remunerações inferiores às dos seus colegas britânicos encarregados do mesmo tipo de trabalho, pondo em perigo o nível salarial. O movimento foi suspenso quando os sindicatos assinaram com a administração da empresa um acordo prevendo a oferta de uma centena de empregos a trabalhadores britânicos qualificados.
Guglielmo Epifani, dirigente da Confederação Geral dos Trabalhadores Italianos, a principal central sindical italiana, declarou que este tipo de movimento podia propiciar o racismo. «[…] se o medo do desemprego for usado contra os trabalhadores estrangeiros, quer sejam italianos ou não, o problema pode tornar-se muito delicado», acrescentou Epifani. «Isso significaria que os italianos se arriscam a ter de trabalhar somente na Itália, os britânicos na Grã-Bretanha e os franceses em França». Curiosamente, alguns meios da extrema-esquerda europeia apoiaram aquela greve com o argumento de que não se tratou de uma acção racista mas de um movimento em defesa do valor do trabalho. Com efeito, um panfleto posto a circular por alguns dos grevistas anunciava: «Estamos em greve contra os patrões […] que se recusam a empregar os trabalhadores locais. Estamos em greve contra as leis europeias que favorecem o patronato e contra as decisões judiciárias que legalizam o aproveitamento da mão-de-obra de baixo custo para maximizar os lucros dos patrões. […] A imprensa e os grandes órgãos de comunicação dizem que a nossa greve é contra os trabalhadores estrangeiros. NÃO É VERDADE. […] Aceitamos os trabalhadores estrangeiros mas não aceitamos que eles sejam explorados com condições de trabalho piores do que as nossas […] e que sejam utilizados pelos empregadores para minar os nossos acordos nacionais e a nossa força sindical». Isto é muito bonito, mas as palavras de ordem finais do panfleto, em vez de exigirem que os empregados estrangeiros da refinaria recebam tanto como os britânicos, o que estaria no âmbito das possibilidades dos grevistas, reivindicam «a sindicalização de todos os trabalhadores imigrantes», remetendo a iniciativa para burocracias sindicais, cuja atitude bem conhecemos. Convém a este respeito ver a lição dos factos. Todos ouviram falar do apartheid, o sistema de segregação racial que vigorou na África do Sul até 1993, mas poucos conhecem a sua origem.
Na penúltima década do século XIX descobriu-se ouro no Transvaal, uma das províncias sul-africanas, e os proprietários das minas dispunham de dois tipos de mão-de-obra: o proletariado branco recém-imigrado era na maioria de origem britânica e constituía uma força de trabalho qualificada; e os autóctones, mal preparados, ficavam relegados para tarefas que não exigiam qualquer habilitação especial. Esta dicotomia repercutia-se numa diferenciação salarial acentuada, e como os negros estavam confinados em funções que os brancos jamais desempenhavam e, reciprocamente, como os postos de trabalho dos brancos não estavam abertos aos negros, o baixo nível salarial dos nativos não exercia pressões negativas sobre a remuneração dos brancos. Tratava-se de dois mercados de trabalho distintos. Todavia, o exercício da actividade produtiva constitui uma forma, embora lenta, de qualificação, e muitos mineiros negros revelaram-se progressivamente capazes de cumprir certas funções que antes só os brancos sabiam desempenhar. Os patrões perceberam que tinham interesse numa evolução deste tipo se pretendessem reduzir também as despesas com a mão-de-obra mais habilitada, porque as diferenças salariais de base eram tão grandes que um trabalhador africano qualificado ganharia consideravelmente menos do que o seu colega branco possuidor de um nível de aptidões similar. Se o processo continuasse e começasse a verificar-se a concorrência entre ambos os tipos de mão-de-obra, desaparecendo a demarcação rigorosa dos mercados de trabalho, o nível salarial dos brancos sofreria pressões no sentido do declínio, por efeito das remunerações muito inferiores recebidas pelos nativos mais qualificados.
Foi neste contexto que em 1907 os operários brancos desencadearam um movimento de greve, recomeçado em 1913 e reiniciado em algumas regiões em 1914, com confrontos tão violentos que as autoridades chegaram a usar canhões para bombardear as sedes dos sindicatos. E o que exigiam os grevistas? Simplesmente que a lei garantisse aquela dicotomia do mercado de trabalho que a evolução económica contribuía para diluir, e que os baixos salários dos negros não pusessem em perigo o nível salarial dos brancos. Em consequência destas pressões, foi promulgada em 1911 uma lei estabelecendo uma demarcação rigorosa entre a mão-de-obra branca e a negra nas minas e na indústria. Com este primeiro reconhecimento jurídico de uma modalidade embrionária de apartheid, os governantes aceitaram as exigências do proletariado branco e forneceram-lhe o quadro em que de então em diante ele apresentaria todas as reivindicações.
Mas a contradição entre a legislação e as forças económicas não desapareceu. Em 1921 e 1922, pressionados pela descida mundial dos preços do ouro, os donos das minas procederam a uma grande ofensiva salarial, atenuando a demarcação entre os dois mercados de trabalho e permitindo que os mineiros negros mais aptos tivessem acesso a funções semiqualificadas. Dada a enorme diferença entre os níveis de remuneração dos nativos e dos brancos, a inevitável subida dos salários pagos a alguns negros seria muito menor do que o declínio dos salários pagos à generalidade dos brancos, e deste modo os patrões ambicionavam obter uma acentuada redução dos custos médios do trabalho. A resposta não se fez esperar. Uma enorme vaga de greves agitou toda a província mineira, em defesa da preservação dos privilégios da mão-de-obra de origem europeia. Conduzido por elementos ligados à Internacional Comunista, o movimento depressa se transformou numa vasta insurreição e certos sindicatos formaram até destacamentos armados. Ao mesmo tempo que defendiam a clivagem entre os mercados de trabalho, os grevistas procuravam fundar uma república dos trabalhadores − desde que fossem trabalhadores brancos! Ao som da Bandeira Vermelha e mobilizada em torno da extraordinária palavra de ordem «Proletários de todo o mundo uni-vos, por uma África do Sul branca», esta vanguarda operária apelava ao internacionalismo para promover uma das formas mais abjectas do preconceito nacional. E fê-lo com um tal radicalismo que o governo e os proprietários das minas tiveram de reunir consideráveis forças militares para suprimir a revolta, só o conseguindo após vários dias de batalha, que deixaram mais de centena e meia de mortos.
Derrotados no plano insurreccional, os trabalhadores brancos prosseguiram a campanha no plano legal e parlamentar, conseguindo afinal que entre 1924 e 1929 fossem promulgadas diversas leis com o objectivo de reforçar as reservas do mercado de trabalho em benefício dos brancos. Destas peças legislativas talvez a mais importante fosse o Mines and Works Amendment Act, que renovou e ampliou as medidas tomadas pela lei de 1911. Ficou assim criado o quadro que permitiu converter a reserva de mercado de trabalho numa segregação racial generalizada. O apartheid correspondeu, no plano das medidas legais, ao que havia sido, no plano insurreccional, o grito «Proletários de todo o mundo uni-vos, por uma África do Sul branca».
Talvez fosse conveniente meditar um pouco sobre estes factos.
O PSOL também apoiou a greve. Ver http://www.sr-cio.org/index.php?option=com_content&view=article&id=455:o-pstu-contra-uma-greve-de-trabalhadores-na-inglaterra&catid=56:europa&Itemid=81
Mas mesmo no Reino Unido, o grupo The Commune e o site libcom.org, que de modo nenhum apoiam acções nacionalistas ou xenófobas nem a mediação dos sindicatos, o fazem, alertando para a manipulação mediática sobre o assunto. Acho que vale a pena dar uma vista de olhos:
http://libcom.org/news/unofficial-refinery-walkouts-over-foreign-workers-spread-30012009
http://thecommune.wordpress.com/
Em particular, no the commune http://thecommune.wordpress.com/2009/02/01/british-jobs-for-british-workers/
Vendo hoje a hostilização dos médicos cubanos pelos médicos brancos de Fortaleza, que os chamavam de “escravos” em certa altura, lembrei desse excelente pequeno artigo. Troquem “Inglaterra” por “Brasil” e terão o dia de hoje.
Leo,
Recordo que é comum chamarem os negros de “descendentes de escravos” mas ninguém chama um judeu dessa forma, embora os judeus tenham sido escravizados em contextos vários. O mesmo se aplicaria a outros povos.