Não considero o sindicalismo como principal terreno de luta, mas considero que qualquer processo de transformação social radical passa por re-ganhar os sindicatos para uma luta consequente. Por Francisco d’Oliveira Raposo
Recentemente, nos debates que estiveram na base da criação do Passa Palavra, veio à baila a questão sindical. Com espanto de todos, verificou-se que, numa primeira fase, nenhum dos participantes nos debates se tinha lembrado deste sector particular das actuais sociedades.
Naturalmente, uma questão que há algum tempo tem percorrido o debate de ideias — quer entre as classes dominantes quer no movimento dos trabalhadores — é esta: Será que o movimento sindical já não é o principal campo de luta?
A esta questão está ligada uma outra questão, fortissimamente popularizada pelas classes dirigentes e “apropriada” pela esquerda e que se prende com a “extinção” do proletariado e sua “secundarização” no campo da luta de classes, como classe revolucionária. Mas neste campo o debate está a fazer-se. Neste texto centro-me no actual quadro do movimento sindical em Portugal.
Esta questão tem, naturalmente, uma importância decisiva em qualquer projecto que vise a transformação social. E creio que essa importância crescerá cada vez mais quando o desenvolvimento da crise capitalista a que assistimos aprofundar ainda mais as contradições de classe inerentes à actual forma de organização económica da sociedade.
Dada a natureza do Passa Palavra — e atendendo às minhas naturais limitações — proponho-me fazer um ponto da situação do sindicalismo em Portugal e, como base, deixar algumas ideias para um debate futuro entre os colaboradores e leitores do Passa Palavra e do movimento dos trabalhadores em geral.
Previamente, uma declaração de interesse:
Este é um texto em nome individual. Sou dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa (STML), filiado na Conferação Geral dos Trabalhadores Portugueses — Intersindical Nacional — CGTP. Para escândalo dos “unitários”, independentes, “apolíticos” e, mesmo, alguns radicais e revolucionários, várias vezes declarei em assembleias sindicais — quer de delegados sindicais quer de dirigentes — que sou sindicalista porque sou político, isto é, que o meu empenho na defesa colectiva dos interesses económicos dos trabalhadores decorre do meu empenho na transformação social.
Daí que, não, não considero o sindicalismo como principal terreno de luta, mas sim, considero que qualquer processo de transformação social radical passa por re-ganhar os sindicatos para uma luta consequente.
É preciso, em primeiro lugar, notar que Portugal sofreu, em pouco mais de 30 anos, várias profundas transformações que marcaram, fundo, a forma de pensar e agir quer individual quer colectivamente.
Desde logo, a Revolução de Abril [a Revolução dos Cravos em Abril de 1974] marcou uma geração de trabalhadores de forma indelével. O colapso do Estado Novo e a crise revolucionária que se lhe seguiu confirmaram a ideia de que a consciência das massas pode dar saltos de gigante. Infelizmente, o contrário também parece ser verdade, e as duas contra-revoluções que sofremos desde então para cá — a contra-revolução do 25 de Novembro de 1975 e, a nível ideológico, o colapso das economias planificadas da ex-URSS e Europa de Leste, independentemente da valorização objectiva que se tenha desses regimes, mas que apareciam perante o movimento dos trabalhadores como uma alternativa possível ao capitalismo — conduziram a um fortíssimo retrocesso no espírito e na consciência de classe em Portugal nos últimos decénios.
Além do mais, Portugal viveu nos anos recentes uma aprofundada contra-revolução neoliberal que, seguindo a cartilha clássica, desregulamentou as relações de trabalho, aumentou a exploração e a precarização do trabalho, privatizou serviços públicos e, de uma forma geral, rebaixou as condições de trabalho e de vida da massa trabalhadora, permitindo a acumulação de riqueza em sectores cada vez mais minoritários do grande capital.
A verdade é que, em Portugal, a esquerda anticapitalista e anti-reformista desde há muito que está alheada da disputa sindical.
Se após o 25 de Abril [Revolução dos Cravos] a esquerda radical ainda ganhou expressão nos sindicatos, a normalização capitalista que se desenrolou durante a segunda metade dos anos 70 e começo dos anos 80 conduziu à situação paradoxal da consolidação da hegemonia do PCP [Partido Comunista Português] nos sindicatos, numa primeira fase com os métodos “caceteiros” de supressão das oposições sindicais, numa segunda fase com a incorporação de elementos dos partidos de esquerda nas “listas unitárias“ e o seu subsequente silenciamento.
Talvez o último exemplo de um sindicalismo de classe alternativo tenha sido o do Sindicato do Calçado de Aveiro, dinamizado por militantes da Liga Operária Católica e do Partido Socialista Revolucionário (Secretariado Unificado da Quarta Internacional), o qual só muito recentemente, mercê de uma coligação PCP–UDP (União Democrática Popular, dissolvida no Bloco de Esquerda mas estruturalmente ainda activa), foi reconduzido ao sindicalismo “unitário”1.
Face à desproporção numérica entre o PCP e todas as outras organizações políticas envolvidas na CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, a maior central sindical do país] — Partido Socialista, Liga Operária Católica, Bloco de Esquerda)2 — uma parte da esquerda começou a desvalorizar a intervenção sindical e, efectivamente, abandonou-a há muito.
O Bloco de Esquerda, que surgiu em 2006 sob o lema “Começar de Novo”, é um bom exemplo desse processo. Tendo origem na aliança entre dois dos mais activos e significativos partidos de esquerda não reformista dos anos 70 e 80 (PSR e UDP), teve de início uma forte capacidade de atracção de activistas sindicais de oposição de esquerda na CGTP. Mas a sua sobrevalorização dos movimentos de “cidadania” e a desvalorização do campo sindical e do mundo do Trabalho não ajudaram à consolidação dessa simpatia. Além do mais, nas suas próprias estruturas dirigentes, foi notório o afastamento de sindicalistas. A sua Mesa Nacional (estrutura dirigente nacional) eleita em 2007 tinha 4 dirigentes sindicais num universo de 80 pessoas.
Mas, ao contrário do que se passa noutros países onde existem outros poderosos movimentos sociais (por exemplo, o MST no Brasil), em Portugal o único grande movimento social é o movimento sindical e mesmo esse restringe-se à CGTP.
Nos últimos anos, o governo e a classe dominante conseguiram impor sucessivos pacotes legislativos altamente lesivos dos direitos dos trabalhadores e que subverteram quase tudo o que restava das legislações progressistas que a crise revolucionária de 74/75 tinha conseguido arrancar: alargamento da idade da reforma [aposentadoria], nova legislação laboral, o Código do Trabalho — em duas versões: Código Bagão Félix, durante o governo PSD-PP [Partido Popular, conservador], e a nova versão do PS, com cortes nos subsídios de desemprego, etc.
Tudo isso foi conseguido sem que se desenhasse uma estratégia sindical de resistência que unificasse lutas e dinamizasse um poderoso movimento social de rejeição, como aliás, com maior ou menor grau de êxito, se deu noutros países europeus que sofreram processos semelhantes.
A crescente insatisfação social reflecte-se em manifestações de massas desde 2006. No espaço de cerca de dois anos pelos menos 4 grandes manifestações nacionais envolveram entre 100.000 e 200.000 trabalhadores, e as recentes movimentações de professores trouxeram às ruas quase a totalidade dessa classe profissional.
Contudo, no plano global, os objectivos das manifestações — no caso das globais impedir o código do trabalho e as alterações laborais no sector público, no caso dos professores, a suspensão do método de “avaliação” da classe — não foram alcançados.
A CGTP foi incapaz de preparar o salto lógico dessas manifestações — a preparação de uma efectiva Greve Geral. Os professores continuam a disputa, numa aparente prova de força com o governo.
Ora, face ao falhanço da estratégia sindical dominante da CGTP, naturalmente se desenvolveram lutas internas, mais ou menos expressas.
Perante este quadro, o centro da polémica dos minoritários (leiam-se tendência “socialista”, católicos e, pelo que percebo, bloquistas) não é a ausência de um programa de reivindicações claro, assente numa mobilização de massas, democrática, que envolva efectivamente os precários, os desempregados e os jovens.
Nada disso!
É a adesão da CGTP à novel central sindical mundial, ferreamente dominada pela burocracia social-democrata e acérrima defensora do “diálogo social”, e nas queixas contra a hegemonia do PCP nos sindicatos.
Só que, e porque o mundo não parou, esse domínio hegemónico já não assume a forma abertamente brutal que se verificou nos finais dos anos 70 e ínicios dos anos 80. Na minha opinião, ela decorre mais da inércia da não existência de alternativa de esquerda à situação.
E como a luta de classes se tem vindo a agudizar, é natural que as contradições estalem no seio da força hegemónica e que o PCP tenha cada vez mais dificuldade em conciliar os seus próprios militantes que, “formados” num sindicalismo “realista e responsável” começam a sentir que esse “realismo e responsabilidade” leva a derrotas e não a vitórias.
Assim, cada vez mais, e devido à muito baixa ou inexistente formação política dos membros do PC, cada vez é mais difícil o recrutamento para posições sindicais e daí a necessidade de uma certa abertura a outros sectores. Obviamente que a maior parte dos dirigentes sindicais não filiados em partidos rapidamente é integrada no PCP, até porque, na percepção geral dos activistas, é apenas o PC que trabalha no meio sindical.
Mas isto não retira a crescente tensão entre sectores sindicais que querem radicalizar, os que querem virar à direita e os que tentam conciliar as duas partes. No fundo, nada de novo entre os debates do movimento operários e laboral…
Creio, contudo, que a dinâmica das relações de classes a nível internacional está, necessariamente, a reflectir-se também no movimento sindical internacional.
Por exemplo, na Alemanha foi um processo de contestação sindical que deu inicio à formação do WASP e posteriormente do De Links. Sem necessariamente estar de acordo com o De Links em si, é para mim evidente a ruptura sindical alemã, onde a maioria dos sindicalistas era do SPD, o que representa um processo importante a analisar.
Também na Grã-Bretanha, depois da derrota histórica imposta por Margaret Thatcher aos sindicatos, e da retirada de poder aos sindicatos levada a cabo por Blair no Partido Trabalhista (Labour), é sintomático que três dos cinco maiores sindicatos britânicos estejam agora com posturas de ruptura e muito radicalizados: o RTM (ferroviários), que se desvinculou do Partido Trabalhista — e, para quem conhece a génese do Labour, isto é muito significativo –, o FBU (Bombeiros) e o PCS (Administração Pública), este último com a maioria do Conselho Nacional Executivo integrando militantes de esquerda radical. Além disso, está em desenvolvimento um processo de constituição de um novo partido dos trabalhadores e nas últimas eleições vários sindicalistas têm apresentado candidaturas contra o Labour com resultados interessantes.
Neste momento, continuo a considerar que o meio laboral é a área mais determinante para uma acção de massas eficaz. Seja ele sindical — e para isso é necessário confluírem perspectivas radicais, democráticas e de massas, em contraponto a visões conciliadoras, burocráticas e centralistas –, seja nas acções espontâneas que vão ocorrendo.
Exemplo combinado destes dois segmentos é o da ocupação da fábrica de janelas de Chicago, onde uma secção sindical combativa apoiou e suportou uma ocupação contra o encerramento da fábrica e acabou por conseguir indemnizações muitos maiores do que as esperadas.
Claro que isso parece uma “vitória de Pirro”, mas à luz da luta de classes nos EUA foi muito significativa, até pelo exemplo que pode gerar.
Neste aspecto creio que a caracterização sobre o sindicalismo hoje necessita de ser avaliada numa perspectiva dinâmica, até porque é previsível uma maior agudização da luta de classes e, portanto, também o movimento sindical será campo dessa luta.
Novos activistas e velhos sindicalistas estão a chegar à conclusão de que é necessário mudar.
A precarização das relações de trabalho, os trabalhadores migrantes e os desempregados são campos de intervenção em que o sindicalismo necessita urgentemente de entrar. Os sindicatos necessitam de flexibilizar a sua acção, não para funcionarem como “bombeiros” da crise capitalista, mas para organizarem a resistência colectiva ao próprio capitalismo.
“Simplesmente” há que passar palavra, aprender, ligar lutadores.
NOTAS
1 O termo “unitário” é aqui usado no contexto português. O PCP nunca assume as suas listas sindicais, como aliás nenhum partido em Portugal o faz. Assim, mantendo a designação das listas de oposição aos sindicatos fascistas, de uma forma geral, incorpora elementos próximos ou mesmo de outras organizações mas mantendo sempre a hegemonia nas listas.
2 A título de exemplo, 80% dos membros do Conselho Nacional da CGTP são militantes do PCP. No meu sindicato, dos 29 elementos dos Corpos Gerentes apenas 5 não são do PCP.
Boas,
Li o texto com atenção. Estou de acordo com algumas conclusões e outras nem por isso. Sou activista (dirigente sindical) num sindicato na área das telecomunicações. Muito do que aqui foi escrito também se passa na estrutura sindical a que ‘pertenço’. O reformismo, o imobilismo e a falta de perspectivas minimamente radicais estão a ‘afundar’ o sindicalismo. Tenho falado com uma série de companheiros sindicalizados (metro, telecomunicações, serviços de recolha de lixo, jornalismo, desenho gráfico, trabalhadores de armazéns, desempregados…) e todos nós estamos cada vez mais inclinados para começar a formar pequenos grupos de trabalho, estudo e propaganda realacionados com o sindicalismo de base, autónomo, libertário e democrático. Temas que nos interesam: Organização democrática, autogestão, assemblearismo, autonomia, federalismo, cooperativismo… Por enquanto, não pretendemos abandonar os sindicatos onde estamos. Pretendemos ‘educar-nos’ e aprofundarmos o estudo e prática das ideias de organização autónoma e de base. Ao mesmo tempo pretendemos intoduzir essas ideias nos sindicatos onde estamos inscritos. A médio prazo gostaríamos de criar uma organização (ainda não sabemos em que parâmetros) que aglutinasse trabalhadores e desempregados que se identificassem com estas ideias (Católicos de base, libertários, assemblearistas, apoiantes de um sindicalismo de base e autónomo…). Sei que tudo isto ainda é uma ideia muito vaga… mas temos de começar por algum lado. Gostava de saber a opinião do Francisco Raposo acerca do que aqui disse.
Saudações sindicalistas
Com um título tão abrangente, que anunciava uma avaliação do sindicalismo no plano nacional, e no contexto actual de agudização da luta entre trabalhadores e o sistema capitalista que os explora e humilha, decidi-me a ler o artigo. Aqui venho deixar o registo da minha desilusão, a par da minha resoluta discordância com as “teses” do autor. Um amalgamado de opiniões, dados que não correspondem à realidade, ausência de proposições que correspondessem a tanta avaliação “crítica”, silêncio quanto à brutal envergadura do ataque do governo de serviço contra os direitos dos portugueses – combate ao pacote laboral, à ofensiva patronal dos despedimentos e da redução de direitos contratuais, luta por aumento nos salários, pela revogação da legislação contra os trabalhadores da Função Pública,etc. – e, ao invés disto, afinal, uma preocupação permanente, da primeira à última linha, com indisfarçável contrariedade, a saber: a influência, social e política, na composição numérica dos orgãos de direcção dos sindicatos, dos militantes do PCP – obviamente, o iniludível resultado directo da confiança que neles depositam os trabalhadores.
Pobre, muito vácuo, anti-PCP e pró-radicais (o que será isso?!), com um arremedo informativo “internacional” no final, para se dar ares de pessoa informada. Nos tempos turbulentos que vivemos, um texto destes chega mesmo a ser triste, sobretudo vindo de um sindicalista.
Saudações pró-sindicalistas.