Gilmar Mendes assume a proa dos ideólogos do direito absoluto da propriedade e dos interesses políticos dos latifundiários. Por Eduardo Tomazine Teixeira e Felipe S. de Castro Longo

Texto originalmente publicado em www.tanachuva.com.br, em 05/03/2009.

g-mendes-destNos últimos dias o movimento dos sem-terra vem sofrendo uma onda de ataques iniciada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes; ampliada pelos presidentes da Câmara e do Senado, Michel Temer e Sarney; e ecoada com veemência pela grande imprensa. Gilmar Mendes acusa o Governo Federal de incorrer em “ilicitude” ao repassar verbas públicas a entidades que “cometem ilícitos”, como o MST, organização que, segundo Mendes, “invade” propriedades públicas e privadas. Com essa acusação, o mais alto magistrado da corte brasileira (o mesmo que concedeu o habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas) criminaliza vários dos movimentos sociais no campo e nas cidades, criminalização reproduzida pela grande mídia sem minimamente contextualizar a ação desses movimentos: a posse de imóveis. Como não nutrimos a irreal esperança de ver os grandes veículos de comunicação problematizarem a propriedade como tema, incumbimo-nos nós – pequena trincheira da atmosfera blogueira – de começar a fazê-lo.

É preciso deixar claro, antes de mais nada, que Gilmar Mendes tem razão ao taxar como ilícito o repasse de verbas públicas a pessoas ou organizações que cometem ilícitos. A lei que regulamenta a reforma agrária no Brasil, Lei 8.629 de 1993, prevê, em seu Art. 2º, § 8o, que “A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos.” Por decorrência, organizações como o MST estariam, indisputavelmente, impedidos de receber os repasses que hoje recebem da União, não é mesmo? Ocorre que isso não é nada evidente, não prescindindo de uma interpretação.

mst-ocupa-terraAfinal, a lei fala em “invasões”, e tanto os movimentos sociais, quanto diversos juristas, como Miguel Baldez, além de diversos outros intelectuais, denominam o ato de adentrar a propriedade imobiliária, seja ela rural ou urbana, de maneira a exercer uma posse como uma “ocupação”. A diferença não é arcana. Trata-se de uma opção, ao fim e ao cabo, política, derivada de uma posição ideológica a respeito do estatuto da propriedade e da caracterização dos atos, como tentaremos demonstrar a seguir.

Começaremos pela parte concernente à caracterização dos atos dos movimentos sociais em questão: se tratar-se-iam de “invasões” ou de “ocupações”. A princípio, o ordenamento jurídico dispõe de alguns instrumentos que legitimam a posse. É o caso da usucapião, para a propriedade privada, e da concessão do direito real de uso, para a propriedade pública. Ora, ainda que estes instrumentos expressem claramente que a sua validade só se dá, entre outras condições, quando não há oposição direta por parte do proprietário, fica patente que a nossa Constituição e o conjunto de leis vigentes no país entendem como legítimo, de alguma maneira, o ato de adentrar um imóvel de um titular estranho, desde que, logicamente, ele não exercesse a posse direta daquele imóvel no momento do ocorrido (o que caracterizaria a invasão).

E o que fazem os movimentos sociais, como o movimento dos sem-terra e dos sem-teto? Nas cidades, os sem-teto ocupam terrenos e edifícios nitidamente abandonados, em geral há muitos anos, neles procurando estabelecer sua residência; ou seja, exercer a posse. No campo, os sem-terra ocupam terras improdutivas, ou que não cumpram com o índice de produtividade exigido para a função social da propriedade rural (assunto que retomaremos mais adiante). Em que pese a definição do tal índice remeter à década de 1970, quando a produtividade agrícola era bem menor do que a atual em decorrência dos avanços técnicos surgidos ao longo de todos esses anos, o Brasil é pródigo em terras deixadas em pousio social, servindo apenas como reserva de valor, isto é, para fins especulativos.

Pois se a propriedade estava vazia ou ociosa, atendendo apenas a fins especulativos no momento em que os posseiros a adentraram; se há disposições legais que viabilizam a regularização da posse, então a ação dos posseiros, seja individual, seja coletiva como o movimento social, não pode ser caracterizada, a princípio, como ilegal e criminosa, como seria no caso de uma invasão. Mas, no entanto, se o proprietário acredite ter tido a sua posse, mesmo que exercida indiretamente, esbulhada ou turbada por aqueles que a adentraram, desejando reavê-la, lhe caberá, então, recorrer às devidas ações possessórias, como a reintegração de posse. Feita a petição, o juiz certamente despachará a seu favor (eles sempre o fazem…).

Não há razões, portanto, para considerar as ocupações dos movimentos sociais como criminosas. No entanto, o que faz Gilmar Mendes e toda a grande imprensa é difamar os movimentos, ao acusá-los de invasores, criminalizando-os. Eis aí o primeiro ataque ideológico.

O segundo ataque ideológico, por sua vez, reside nas decisões judiciais sempre favoráveis aos proprietários, em detrimento dos ocupantes. Trata-se de uma ideologia com um evidente corte de classe: a defesa intransigente e abusiva da propriedade privada.

A visão jurídica hegemônica no Brasil e em quase todos os países capitalistas, na seara [no plano] referente ao direito das coisas, trata a propriedade enquanto um direito absoluto. Isso significa que, por princípio – no âmbito dos marcos societais estabelecidos – ao titular da propriedade lhe faculta a disposição e o poder de decidir sobre como usará (ou não) a sua propriedade, podendo, se lhe der na veneta, abandoná-la, aliená-la ou, até mesmo, destruí-la. Evidentemente, o tal direito absoluto da propriedade só é absoluto em tese. A Constituição Brasileira – bem como as cartas magnas de diversos países – tem progressivamente estipulado limites à propriedade. Um dos exemplos mais evidentes disso é a determinação segundo a qual a propriedade precisa cumprir com a sua “função social”, sob pena de, em a desrespeitando, ser desapropriada. A “função social da propriedade” é mencionada, no tocante à propriedade urbana, no art. 182, e à propriedade rural, por sua vez, no art. 184, ambos da Constituição.

 José Sarney e Michel Temer, líderes do legislativo.
José Sarney e Michel Temer, líderes do legislativo.

Assim, temos que, no caso da propriedade rural, segundo a já mencionada lei 8.629/93, que regulamenta os arts. 184 ao 191 da Constituição (ou seja, aqueles sobre a política agrária e fundiária e da reforma agrária) a propriedade cumpre a sua função social quando, por exemplo, atinge um determinado índice de produtividade, quando usa de maneira adequada os recursos naturais ou, ainda, quando respeita as disposições que regulamentam as relações de trabalho. Dessa forma, cai por terra completamente a noção do direito absoluto da propriedade, posto que o seu titular não pode, se lhe der na veneta, por exemplo, manter relações escravocratas de trabalho, exaurir os recursos do solo (e do subsolo), cultivar plantas psicotrópicas, ou deixá-la inadvertidamente sem uso.

Que situação jurídica se nos apresenta quando, a título de exemplo, um grupo de sem-teto ocupa um imóvel privado vazio há dez anos? De um lado, os ocupantes se reivindicam como posseiros, como aqueles que exercem a posse direta sobre o imóvel. Entram, em geral, com uma ação de manutenção de posse. O proprietário, por sua vez, tem a convicção de que exercia a posse indireta da sua propriedade, e entra com outra ação possessória, em geral a reintegração de posse. A jurisprudência mostra que, quando as ações antagônicas chegam à apreciação do juiz, ele sempre despacha a favor do proprietário, pois a propriedade subjuga a posse, revestindo de autoridade a posse indireta (mesmo o abandono!) sobre a posse direta (mesmo sendo o direito fundamental e imutável à moradia de dezenas de famílias pobres!). É, pois, a falaciosa noção do direito absoluto da propriedade que determina a prioridade da propriedade sobre a posse. Com base nessa ideologia, os proprietários encontram um prato cheio para especularem com seus imóveis e suas terras, aumentando o preço geral da moradia e da propriedade fundiária, levando aos centros urbanos milhões de sem-terra e às ruas e às favelas milhões de famílias que encontram o acesso vetado à habitação regular. Isto, sim, é criminoso.

Não é, portanto, crime ocupar terras deixadas vazias para fins especulativos, e não resultaria inconstitucional, pois, julgar a favor dos ocupantes, nem tampouco limitar ainda mais, com desapropriações, as propriedades ociosas. Apenas não são feitas por razões ideológicas e políticas, e o Sr. Gilmar Mendes assume, atualmente, a proa dos ideólogos do direito absoluto e abusivo da propriedade e dos interesses políticos dos latifundiários.

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