Muitas dúvidas e ambigüidades atravessam os recentes episódios de ocupação de fábrica no Brasil. Por isso mesmo, as experiências guardam muitas lições aos movimentos anticapitalistas. Conheça o caso da Flaskô.

A Flaskô Industrial de Embalagens Ltda é uma pequena fábrica situada no município de Sumaré, região metropolitana de Campinas, no estado de São Paulo. Assim como a Cipla e a Interfibra, localizadas no estado de Santa Catarina (SC), a empresa fazia parte do Grupo Hansen até 1987, quando morreu o seu maior proprietário. Na partilha do já vultoso patrimônio, a esposa e seu novo marido preferiram exigir sua parcela separadamente, isso fez com que todas elas seguissem caminhos próprios, desvinculando-se administrativamente da companhia que viria a se tornar uma das maiores marcas multinacionais de tubos e conexões, a Tigre.

Durante a década de 90, enquanto a empresa maior se fortalecia e se consolidava enquanto líder, Cipla, Interfibra e Flaskô enfrentavam sérias dificuldades para se manterem no ramo e caminhavam para a definitiva falência. Até que, no início dos anos 2000 a situação chegaria ao seu limite, as fábricas ganhavam fama por não cumprirem com quase nenhuma de suas obrigações trabalhistas: salários eram atrasados, adicionais não eram pagos, fundos de garantia não eram recolhidos, além do ritmo de trabalho que era intensificado no desespero em fazer as contas se ajustarem.

Em junho de 2003, os trabalhadores da Flaskô, com o apoio do sindicato, decidiram pela tomada da fábrica e do controle de sua administração, a exemplo do que, em novembro do ano anterior, tinham feito seus mais de mil companheiros da Cipla e da Interfibra, em Joinville/SC. Faziam-no, conforme consta em suas cartas reivindicatórias, em defesa de seus empregos e pela manutenção do parque industrial brasileiro, que se encontrava em franco declínio. Desde então, outras ações deste tipo puderam ser contadas em unidades fabris de diversos estados brasileiros, entre eles: Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Em todos os casos, as ocupações se apresentavam como meios de recuperação e manutenção das firmas que beiravam um colapso financeiro. Dá-se início, assim, a uma pequena reedição de um modelo de luta que procura ir além das já institucionalizadas greves organizadas pelos sindicatos, previamente agendadas para as épocas de convenções coletivas.

A fim de que algumas das questões suscitadas por esta experiência concreta, com todos os seus desafios e ambigüidades, pudessem ser compartilhadas e tornadas úteis a outras lutas, fomos conhecer a Flaskô, no dia 28 de fevereiro deste ano, ocasião em que era feita a primeira transmissão da rádio livre que o movimento acabava de lançar.

De portas abertas para a visitação, a fábrica foi-nos apresentada por Pedro Santinho, um dos administradores e membro do atual conselho de fábrica, com quem pudemos conversar junto com outros curiosos.

Apesar de oficialmente a Flaskô ser ainda uma entidade privada, desde 2003, quando foi ocupada, o patrimônio tem sido administrado e controlado por uma comissão eleita pelos próprios trabalhadores. “Na verdade, a gente tem uma personalidade jurídica, que é a associação de trabalhadores (como se fosse uma associação de bairro), que a gente utiliza para conta bancária, para essas coisas… Judicialmente, a gente não tem autorização, nem pela associação nem pelos trabalhadores” – explicou Pedro.

Desde o início, todo o processo tem sido bastante dificultoso para o movimento. Em parte, isto se deve ao montante de dívidas que os antigos patrões acumularam junto a credores e órgãos públicos, acarretando a penhora de todos os bens restantes. Após os trabalhadores terem assumido a direção, o governo federal nomeou um interventor para que fosse reestruturada a administração da fábrica. Os interventores são, na verdade, fundações privadas que prestam assessoria para recuperar empresas em situação de falência. No caso da Flaskô, o escolhido foi o grupo do professor Rainoldo Uessler (http://www.ipru.com.br/perfil.htm), o mesmo que, com apoio da Polícia Federal, havia invadido e reprimido as ocupações da Cipla e da Interfibra, dias antes. Porém, em junho de 2007, quando aportou em Sumaré reclamando o comando da empresa, o interventor e sua comitiva foram colocados para fora a “pontapés”[1] pelos trabalhadores, contou Pedro.

O assunto tem acalorado as discussões do movimento, que exige do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] – órgão nomeado pelo governo federal para escolher o novo administrador – o reconhecimento da associação de trabalhadores como interventora oficial, “que seria o melhor administrador entre todos, e que há cinco anos já faz isso”, disse. Diante da não aceitação, a luta permanece sob esta constante ameaça, apesar de os ocupantes avaliarem que o momento político não é propício para que Lula tome uma medida impopular.

O Conselho de Fábrica é eleito por uma assembléia geral, e seu mandato tem duração de um ano. Atualmente, sua composição obedece à seguinte proporção: 2 representantes por turnos, sendo que a produção tem 3 turnos; 1 da portaria; 1 da zeladoria; e 1 do setor administrativo. Há o cuidado de não conceder remuneração extra a estes cargos eleitos e tampouco liberá-los [dispensá-los] das tarefas ordinárias de fábrica. Esta seria uma forma de evitar o vício que hoje vigora, por exemplo, nos meios sindicais. “O guarda segue sendo guarda, o zelador segue sendo zelador, o operador segue sendo operador, o mecânico segue sendo mecânico… e membro do conselho de fábrica… e o administrador também.”

Perguntado sobre a eventual rotatividade destes cargos, Pedro afirma que ela tem acontecido “mais do que o esperado”. Embora pondere que, em sua opinião, este procedimento não devesse ser um princípio norteador, assim como não deveria ser a obrigatoriedade de cota de 30% para mulheres, outro debate em voga no movimento. “Quem tem que organizar ou dirigir alguma coisa por um período, que seja uma semana e tal, tem que ser uma pessoa acatada pela maioria, e não uma obrigação… Mas, na prática, o que tem acontecido é uma grande rotatividade. Só tem um que é desde o começo… eu sou há dois anos e meio, e tem um que se aposentou e saiu agora que era o único que estava participando de todas as comissões de fábrica.”

Sob a antiga administração, a fábrica chegou a empregar cerca de 600 funcionários [assalariados], em sua melhor fase. No ano da ocupação, entretanto, o número já havia caído para 66, mas chegou a ter 98 num momento de maior prosperidade do movimento. Durante o processo, 15 foram expulsos pela assembléia geral; segundo o membro do conselho, por terem tomado posição em favor dos interventores nomeados pelo governo federal. Outros, com o recente aumento sutil da oferta de emprego em outras fábricas, pediram para ser dispensados. “Tem quatro que conseguiram empregos na Honda. Aqui ganha R$ 1.200,00 e na Honda ganha R$ 1.800,00. Fora que faz 14 horas extras, tal…” Por essas e outras, hoje, a Flaskô conta com 58 trabalhadores ativos e 14 com licenças por questões de saúde.

Ao contrário do que se poderia pensar, todo experimento de gestão operária em fase inicial padece dos mesmos males que afligem as firmas sob o velho comando capitalista. A necessidade – inelutável – de se assegurar o prosseguimento das atividades produtivas submete estas iniciativas a regras e condicionantes elementares de organização racional do trabalho. Diante de um quadro onde predomina o receio de ser lançado à miséria absoluta e a falta de uma solidariedade de classe efetiva, a situação se agrava, pois se tem aí uma comunidade de trabalhadores cuja sobrevivência depende totalmente do funcionamento mínimo da empresa. Por conseguinte, nos dois extremos da cadeia tecnológica, as fábricas ocupadas se encontram envolvidas por uma trama de relações sociais tipicamente capitalistas, da qual é muito difícil escapar. É o que nos revela o relato do membro da comissão de fábrica e o contato mais direto com a realidade destes trabalhadores.

No que se refere às suas relações externas, a Flaskô, por exemplo, não possui uma rede de compradores que funcionem sob o mesmo princípio organizativo. Por isso, não lhe resta outra opção senão escoar seu produto a empresas capitalistas normais, como em qualquer mercado. Uma das razões seria a inexistência de fábricas autogestionadas, cooperativas ou empresas de economia solidária que utilizem o tipo de material feito pela firma. “Não tem uma indústria química ou similar que seja solidária ou alguma coisa assim. Então a gente vende pra estas empresas [capitalistas]” – lamentou Pedro. Quanto ao fornecimento de matéria-prima, ele explica que, por diversas vezes, a nova direção tentou firmar acordos com catadores de materiais recicláveis, “mas o custo é muito caro”.

No início do processo de ocupação, segundo contou nosso anfitrião, houve alguns boicotes por parte das empresas capitalistas. Com o passar do tempo, entretanto, este problema cessou, já que a firma conseguia pôr os seus produtos no mercado a um preço bom e, nestas condições, “capitalista é capitalista, compra até do demônio”, ironizou.

Pedro ainda explicou que existem outras formas, mais sofisticadas, de praticar o boicote. Geralmente, as licitações para que as empresas se candidatem a prestar serviços, ou fornecer encomendas aos órgãos públicos exigem um capital social gigantesco, o qual as empresas ocupadas evidentemente não possuem, sendo obrigadas a ficar excluídas do processo. Mas não é só. Às vezes, o boicote por parte do Estado é mais explícito. Foi emblemático o episódio da Interfibra, a qual, depois de ter tido finalmente a chance de pleitear um processo licitatório, chegou a ofertar para a Petrobrás a unidade de um produto ao irrisório preço de R$ 1,00, e mesmo assim não conseguiu fechar o negócio. No entendimento dos ocupantes, a Petrobrás preferiu socorrer uma grande empresa à beira da falência, operando uma transação que, do ponto de vista econômico, acarretar-lhe-ia um custo substancialmente maior.

Em 2005, o movimento de fábricas ocupadas do Brasil estabeleceu um acordo de “complementaridade econômica” com o governo da Venezuela. Na ocasião, a Cipla havia desenvolvido um projeto de fabricação de casas de plástico – de 68m² a 83m² – que foi oferecido aos venezuelanos. Aceitada a proposta, o governo de Chavéz sugeriu montar uma fábrica em território venezuelano em sociedade com o movimento; já que um acordo da OMC [Organização Mundial do Comércio] proíbe que seja vendido plástico do Brasil para a Venezuela, e vice-versa. Como não havia o interesse de ser sócio de um empreendimento em outro país, as ocupações propuseram que, ao invés disso, fosse criada uma empresa venezuelana 100% estatal; a Cipla contribuiria com a transferência de tecnologia e o envio de técnicos, e o governo venezuelano, em contrapartida, forneceria uma boa quantidade de matéria-prima. Entretanto, já na segunda remessa do governo, o interventor da empresa confiscou o material e o acordo ficou, desde então, suspenso. Além disso, o tratado ainda previa a interrupção do acordo caso duas condições fossem quebradas: a permanência do regime democrático na Venezuela e a manutenção da gestão dos trabalhadores das fábricas aqui no Brasil.

Ainda no tema das relações comerciais com diferentes unidades produtivas, convém observar outros dados. O consumo de energia elétrica (cerca de 50 mil reais por mês) e a obtenção de matéria-prima são os itens que mais pesam no orçamento da firma. Do preço final de um produto, “20% é energia elétrica e 50% é matéria-prima”, estimou Pedro.

Já a folha de pagamento, por ser fixa, não é possível afirmar sua taxa com precisão. Isto é, seja lá qual for o faturamento – que atualmente tem ficado próximo dos 300 mil reais, quando deveria atingir a casa dos 800 ou 900 mil reais, num cálculo ideal – os encargos com salários serão sempre os mesmo, 75 mil reais. Na sua avaliação, “se não fosse a crise hoje”, a empresa poderia estar muito mais próxima do seu objetivo, funcionando com toda sua potência instalada; isso os permitiria pagar todas as contas e ainda contratar mais trabalhadores. “Se todas as máquinas funcionarem só 30 horas por semana e vender tudo que produzir nestas 30 horas, o mês inteiro, fatura 1 milhão e 600 (mil), com os trabalhadores que tem hoje.”

Pela falta de disponibilidade de recursos para antecipar a matéria-prima, a firma tem, por enquanto, funcionado apenas sob encomenda. Nem por isso os riscos deixam de existir. A exemplo disso, uma fabricante de sementadeiras, compradora da Flaskô, em decorrência da crise, está devendo por volta de R$ 30.000,00. “Já está entregue, vencido, e os caras não pagaram… Clientes nossos, só de dezembro pra cá, oito já faliram”.

Em conseqüência destes distintos obstáculos impostos pelo momento de crise, um grande problema se coloca para o movimento: a impossibilidade de consolidar um fluxo contínuo de produção. A incerteza quanto ao prazo de chegada de matéria-prima e à venda do que foi produzido impõe interrupções ao processo produtivo e não permite que a fábrica funcione em seu ponto ótimo, o que os faz perder muito quanto mais vezes for necessário ligar e desligar as máquinas.

Eis que vem à tona uma flagrante contradição. O movimento de ocupações de fábrica vê-se obrigado a lastimar o contexto de crise econômica do capitalismo, quando deveria ser ele próprio o ingrediente fundamental de desestabilização do sistema vigente. Assim, forçosamente, as ambigüidades práticas em que, nesta perspectiva mais ampla, está inserida a luta tendem a penetrar e fazerem-se presente também no cotidiano da fábrica, alcançando, sobretudo, seus aspectos organizacionais internos.

Por um lado, há práticas bastante profícuas no sentido de uma democratização efetiva da organização fabril. A atual forma de definição do salário e dos cargos ilustra bem esta tendência. A remuneração que caberá a cada cargo da empresa é fixada também pelas assembléias gerais, sendo proibidas quaisquer negociações no âmbito individual; situação que já ocasionou a demissão de um técnico em plástico que ambicionava receber acima do que fora estabelecido como teto, hoje em dia, R$ 2.200,00. “A gente fez, dois anos atrás, o plano de carreira” – explicou Pedro – “que definiu todas as funções, o salário de cada função e tudo mais.” Segundo este plano, eletricistas e líderes de turno ganham R$ 2.200,00; inspetores, R$ 1.600,00; operadores de máquinas, entre R$ 880,00 e R$ 1.200,00; e zeladoria, R$ 815,00. Já os cargos que eventualmente surjam nos quadros mais qualificados da empresa, quer porque alguém tenha saído quer porque a função tenha sido criada, são preferencialmente preenchidos pelos próprios funcionários, somente em última instância é que se recorre a uma contratação externa.

Por outro lado, o revezamento de funções tem sido algo bastante controverso no funcionamento da fábrica. Como colocou o próprio representante da comissão: “É impossível rodar as funções. Porque se você precisa de um mecânico e você é mecânico, ninguém pode ser no seu lugar… Para você pôr alguém na máquina, só se for treinar ele durante três meses, senão o cara vai se matar na máquina.” Sendo a fábrica constantemente pressionada a manter níveis de produtividade que lhe garantam competitividade mínima no mercado, não há muito tempo hábil a ser utilizado com atividades de capacitação. “Ninguém agüentaria ficar uma semana como mecânico desta máquina” – acrescentou – “ela tem que funcionar, entendeu? Se ela quebra, tem que ser consertada em pouco tempo, porque senão pára a empresa.”

Pedro reconhece, todavia, que há uma preocupação com este fim. Mas, no caso de funções especializadas, tudo se torna mais difícil, pois geralmente exigem muito curso e treinamento: “O que a gente faz são cursos internos, para as pessoas passarem”. Existe a possibilidade dos funcionários acompanharem o dia-a-dia dos mais qualificados para, posteriormente, poderem exercer a mesma função. O difícil, porém, é fazer com que tal prática seja mais difundida entre os próprios trabalhadores, pois são poucos os que se dispõem a sacrificar suas horas livres com vistas a uma melhor qualificação, e assim viabilizarem tecnicamente a rotatividade das tarefas.

Mesmo com todas estas dificuldades, o novo funcionamento da Flaskô conseguiu promover uma redução da jornada de trabalho – de 44 para 30 horas semanais – sem desconto dos salários; o que significa que cada funcionário passou a labutar apenas 6 horas por dia. Segundo o membro da comissão de fábrica, esta alteração não precisou ser acompanhada nem de aumento, nem de diminuição de produtividade, como forma de compensação, pois, na prática, a fábrica continua produzindo a mesma quantidade de antigamente. Porém, se considerarmos que com isso passou-se a ter uma troca a mais de turno (período em que as máquinas ficam ociosas até que outro trabalhador assuma o posto), mais correto seria considerar que a produtividade, de fato, aumentou, embora o mesmo não tenha acontecido com o número de itens produzidos.

No interior da fábrica há, ainda, alguns espaços inativos, onde, antes de se avizinhar a decadência, operavam máquinas e trabalhadores. Ocorreram já inúmeras idéias e tentativas de reativar o espaço, contou-nos Pedro – desde oficinas de teatro, até parceria com cooperativas de catadores de recicláveis. Mas, por falta de interesse dos grupos e pessoas até então procuradas, nenhuma delas pôde ser colocada em prática. O que compõe outro conjunto de desafios que merece também ser levado em conta.

O episódio de ocupação da Flaskô, direta ou indiretamente, acabou ultrapassando os limites da fábrica e levando conseqüências importantes também para a comunidade que circunda a área. Um exemplo disto foi a mobilização por moradia [habitação] e por serviços básicos de urbanização que aflorou em torno do terreno até então ocioso da empresa. Hoje, existe lá uma Vila Operária que foi fruto de um processo de ocupação dos moradores locais. O lugar é habitado por trabalhadores da própria Flaskô e por outras famílias, em sua maioria, também operárias de fábricas vizinhas, já que a localidade é um pólo fabril, conhecido como Parque Industrial Bandeirantes.

Muito antes de a ação ser efetuada, rumores sobre a ocupação já se espalhavam dos trabalhadores para a gente da região, que diante das péssimas condições de suas residências, ou na ausência delas, começara a vislumbrar uma nova alternativa de morada. Logo, foram os moradores os primeiros a pressionar para que do terreno se pudesse fazer outro uso, cientes de que não encontrariam oposição do pessoal da fábrica. “A gente passou dois anos pensando ‘vamos ocupar, vamos ocupar’, mas a gente nunca conseguiu porque o trabalho da fábrica comprometia mais”, explicou Pedro. Após a iniciativa tomada pelas pessoas do bairro, a comissão de fábrica se envolveu na mobilização: uma assembléia foi feita e decidiu por ocupar “tudo junto”, trabalhadores e moradores, coordenados por uma mesma comissão. Após aproximadamente um mês do ato, algumas ruas foram sendo traçadas, as quadras [quarteirões] desenhadas, 350 lotes divididos (96 para trabalhadores da fábrica e os demais para quem tivesse participado da ocupação) e a construção das casas passada ao cargo de cada família.

Sobre a relação entre os operários da Flaskô e a vizinhança, o representante avalia ser boa, porém com possibilidade e necessidade de ser melhorada. Pedro ressaltou a dificuldade de se estabelecer canais comunicativos mais efetivos que liguem estas pessoas à luta empreendida no espaço fabril – “a comunidade aparece [só] quando fazemos atividades”. Outros fatores embaraçosos – relatou – são o desrespeito às tomadas de decisão coletivas e a presença do tráfico de drogas. Segundo o membro da comissão, embora alguns traficantes guardem certa “simpatia” pela fábrica — “ah, o meu primo trabalha lá!” –, se deixados por si mesmos, acabam mandando na comunidade e os demais apenas obedecendo.

O movimento dos moradores depara-se com problemas cotidianos típicos de bairros periféricos, a luta para que a prefeitura instale equipamentos públicos básicos, como o fornecimento de água, um adequado sistema de esgotos, o asfaltamento das ruas, reconhecimento oficial dos endereços e a construção de creches e escolas. Na vila existem, por enquanto, dois pontos coletivos de provimento de água, conquistados após uma luta conjunta. A prefeitura alega que, por ser formalmente uma área privada, não é possível realizar ali todas as obras que seriam necessárias. Curiosamente, no entanto, fornecimento de energia elétrica existe, e as contas não deixam de chegar aos devidos endereços.

Um exemplo do tipo de acontecimento que consegue agregar e mobilizar a população é o corte periódico do fornecimento de luz – medida corrente que a CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz) toma nos bairros pobres com o intuito de economizar energia. Nestas situações, os moradores costumam recorrer ao respaldo político que tem a ocupação da fábrica: “Aí vem muita gente, querendo saber o que está acontecendo, querendo saber quem pode ajudar.” Como numa dessas operações, que eram feitas manualmente, o agente da companhia elétrica foi expulso da comunidade, a CPFL hoje adota um sistema de corte por radiocomunicação, sem que ninguém da companhia precise enfrentar pessoalmente os moradores. Mas esse envolvimento é ainda muito frágil e problemático, na avaliação de Pedro, que conclui: “O envolvimento da comunidade é sempre contraditório. Uma coisa é quando tem um grande evento acontecendo, numa tarde… mas, normalmente, a vida das pessoas é o cotidiano delas, sabe: acordar, trabalhar, dormir, acordar, trabalhar, dormir…”

Como mencionado acima, recentemente, uma rádio livre foi instalada nas dependências da empresa, cuja primeira transmissão ocorreu no dia de nossa visita. Outra alternativa, então, se desenha. Ao permitir que jovens da vila operária participem ativamente da organização e possam decidir sobre o conteúdo da programação e, ao mesmo tempo, tomar conhecimento dos problemas internos à atividade da fábrica, o veículo abre uma possibilidade para que sejam paulatinamente dissolvidas as fronteiras que segmentam os aspectos econômicos, sociais e políticos da vida do bairro; o desafio é fazer com que a insatisfação das pessoas na condição de moradores de bairros pobres convirja com os problemas enfrentados por elas mesmas na condição de trabalhadores precarizados.

Se tomarmos como referência o profundo marasmo em que se encontra a mobilização dos trabalhadores fabris brasileiros — reforçado pela política colaboracionista e burocrática dos sindicatos — as novas experiências de ocupação de fábrica podem figurar como um apontamento positivo na edificação de uma alternativa anticapitalista; o que deve ser, sem dúvida, ponderado. Contudo, tal entusiasmo tende a não ir muito longe quando levadas em consideração as condições em que tais práticas se desenvolvem. O incipiente movimento de que falamos nem de longe se assemelha àquele de outrora, diante do qual administradores e proprietários capitalistas se aterrorizaram e combateram a todo custo. A nova proposta de controle operário aparece, antes do mais, enredada em inúmeros dilemas, que mais tem a ver com as imposições objetivas das relações capitalistas do que com a motivação pessoal — e até heróica — de seus protagonistas.

Como ocorridas até agora, em âmbitos demasiadamente isolados e reduzidos, estas ocupações dificilmente conseguirão ultrapassar a pontualidade de suas importâncias. São gotas de iniciativa de gestão operária num mar de contradições capitalistas. Dentre as várias ciladas que cotidianamente lhes são colocadas, há uma, entretanto, que desponta enquanto questão fundamental: como assegurar um bom período de existência, mantendo trocas com outras unidades produtivas “normais” com intuito de atender as necessidades elementares de funcionamento, sem ser absorvido pela lógica de mercado? No essencial, a proeza significaria relacionar-se com a globalidade do sistema sem se condicionar ao imperativo tecnológico de aumento constante da produtividade, o qual define o capitalismo e acaba por orientar os aspectos externos e internos inclusive das lutas que tencionam combatê-lo.

Obviamente que, uma vez herdadas as formas técnico-organizacionais assentes ainda nas relações típicas de uma sociedade capitalista, a superação de todos estes entraves estruturais apresentados não é tarefa que se realize do dia para a noite, sobretudo num contexto de dilaceração dos vínculos de classe. Está igualmente claro que os desafios de fora lançados não eximem os diretamente envolvidos de suas empreitadas diárias, no sentido da edificação de um projeto mais ambicioso, que consiga convergir esforços e ultrapassar o problema imediato e pontual que é hoje o da proteção do emprego e da manutenção das condições mínimas de sobrevivência. Mas, isso é algo que só será tornado factível a partir do amadurecimento que somente os processos concretos de luta podem favorecer.

Não obstante a improbabilidade de tamanho salto ser dado sob as circunstâncias atuais, de cada um dos episódios vivenciados por estes trabalhadores da Flaskô, muitas lições, decerto, podem ser tiradas; como há de ser feito com toda luta que não seja a definitiva. Tiremos as nossas. Passa Palavra


[1] Um vídeo sobre o episódio bem como um documentário sobre o contexto geral que envolveu a ocupação podem ser vistos aqui.

1 COMENTÁRIO

  1. Obrigado pela solidariedade! Seguimos na luta, e somente o avanço na organização da classe trabalhadora salvará, não só a Flaskô, mas realizará a emancipação necessária. Saudações, Alexandre – Membro do Conselho de Fábrica da Flaskô

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here