Há, na poesia de Cesário Verde, e por opção política, uma solidão que se ramifica a partir do indivíduo para uma coletividade. Não o sujeito burguês, individual, o poeta eleito acima da verdade, mas o que só quer dar, não “voz”, mas simplesmente “som” ao aparentemente banal e vulgar. Por Joacy Ghizzi Neto
“Eu não sou como muitos que estão no meio de um grande ajuntamento de gente e completamente isolados e abstratos. A mim o que me rodeia é o que me preocupa”.
Cesário Verde
A não filiação de Cesário Verde (1855 – 1886) a qualquer escola, romântica ou realista, o coloca por opção política na condição de uma solidão que se ramifica a partir do indivíduo para uma coletividade (Deleuze). Não há uma escolha sistemática de idéias, ou um método, para abordar a “realidade”. É a própria experiência real dos becos da cidade e dos atalhos do campo (Moisés) e a manifestação dos sentidos do poeta a partir destas vivências, que dialogam com os objetos sem garantir autonomia a nenhum dos dois, que marcam a lírica de Cesário Verde. Se a crítica literária da época não absorve a sua poética, devido à profanação em seus poemas, o poeta aceita a “perda da aura” resistindo na realidade cotidiana. Há um (des)acordo recíproco entre Cesário e a crítica literária vigente:
A Crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene. [1]
A desterritorialização da língua por Cesário Verde se faz na escolha por uma língua própria, que não desfrutava de qualquer prestígio anterior. É na “pobreza” da linguagem adotada que se faz vibrar intensamente [2], mantendo uma potência imanente, a sua própria lírica menor. Esta opção de linguagem vai se relacionar de forma latente com “outra” escolha do poeta: o terreno lírico fértil das ruas e uma despersonalização do Eu que garante um agenciamento coletivo no espaço urbano. Estabelece-se o desaparecimento do sujeito, burguês, individual ou do poeta eleito acima da verdade. A possibilidade de dar cor e vida, não mais necessariamente “voz”, mas som à margem, ao aparentemente banal e vulgar.
Campo e cidade perdem o seu sentido de dicotomia para ganhar um mesmo espaço na poética de Cesário Verde. A verticalidade e a multidão da cidade ou a “pureza” e horizontalidade do campo não são alvos de exaltação: compartilham do mesmo terreno prosaico do dia-a-dia (Moisés). Apesar da relação tensa que o poeta estabelece entre uma cidade que o possibilita contatar com o terreno fértil das ruas e avenidas urbanas – e com o circuito da literatura – e um campo de “tranqüilidade burguesa dos pomares”, não há uma hierarquia possível na obra de Cesário Verde entre estes dois espaços. Até mesmo porque a própria cidade não é um refúgio possível, tampouco um retorno ao campo. A saudade não se configura em lugar nenhum na obra de Cesário Verde – viverá o poeta no Inferno? – pois nenhum dos espaços parece oferecer amparo:
[…] Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há, nem na Circássia, [3]
[…].
A fuga da cidade com sua paixão o garante alguns momentos de prazer, porém agora Helena sepultou-se em um convento. Que outro lugar resta ao poeta, se este já fugiu da cidade e agora o campo está vazio do sentido que possuía anteriormente?
Diante do registro da circunstância, do efêmero da vida moderna, Cesário Verde pinta, ou “descolore” os retratos que se movem no espaço urbano. Tal procedimento não se faz através de uma inversão dos pólos, ou numa mudança de sinal do discurso. Ou seja, o poeta não propõe substituir o alto da lírica pelo marginal, o que o tornaria prontamente no “novo” cânone. Cesário acrescenta os elementos da margem, se inserindo diretamente neles, ao bloco cultural que era uma forma de consenso da sua época.
Afastando-se dos temas canônicos da poesia estabelecida (o Ideal, o Futuro, a Revolução), Cesário Verde faz ruir o edifício da Verdade e da Beleza (Moises) (in)surgindo-se na poesia portuguesa com o negro, o operário, a mulher (despenteada e feia). É um flâneur que se lança sem escudos na multidão, se insere na coletividade sem qualquer tipo de nota promissória:
“Não passa mais ninguém!… Se me ajudasse?!…”
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude,
Ou duma digestão desconhecida. [4]
Aqui a idéia da passante observada pelo flâneur é alucinada: é o poeta que transita e pára interagindo com a mulher, regateira, trabalhadora – e não com as “burguesinhas do Catolicismo”. Através da possibilidade do(a) outro(a), da experiência com o estranho e da solidariedade da literatura menor (Deleuze), o poeta confere, sem a presunção dos “realistas”, uma humanização à desumanização das grandes cidades, oferece a dignidade da poesia a uma matéria “despoetizada” (Perrone).
Já no poema “Deslumbramentos” é o poeta quem sugere uma aproximação e um contato direto, agora com a grande dama fatal – Britânica:
[…]
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d’Áustria mostrava aos cortesãos.
[…]
Num primeiro momento o poeta eleva Milady a uma condição de rainha, para posteriormente alertá-la que os povos humilhados podem vingar-se, e aí as rainhas irão perder-se aos farrapos pela noite. Tal possibilidade de leitura permite a construção de um jogo moral de valores, de rebaixamento, de inversão, sem que se assumam pólos apostos.
Cesário Verde compartilha, com orgulho, da mesma personagem poética que Baudelaire: a cidade e suas imagens; ruas, avenidas, praças e galerias. O que sucinta uma diferenciação dos dois poetas é a maneira como se inserem na multidão. Se há em Baudelaire um desprezo de dândi individualista (Perrone) em relação à multidão, Lisboa ainda permite, ou Cesário ainda se permite deixar tomar pela cidade. Qual a diferença de Cesário Verde para um transeunte qualquer? O outro não é senão ele mesmo que passa e interage, fica e deixas marcas leves. Porém, a aproximação da realidade moderna, que fascina e repele, parece presente na inserção dos dois. Nenhum é capaz de suportar constantemente todo peso da cidade moderna.
Diferentemente de seus contemporâneos como Antero de Quental e Guerra Junqueira, que bradavam contra o romantismo da época com um tom declamatório que os reaproxima do que pretendiam combater, Cesário Verde “enfrenta”, sem grandes alardes, as sombras espessas do romantismo da época. Com uma linguagem poética mais próxima dos homens – profana – e com fina ironia é que o poeta fissura e abre caminhos para a poesia moderna. Se a tática do Realismo, científico e positivista, e a de Cesário Verde é a mesma, de enfrentar um romantismo subjetivista e isolado da coletividade, a estratégia é largamente diferente. Ou talvez não há para Cesário Verde esta separação ou preocupação e é novamente a própria experiência real que se torna, num devenir, o tom miúdo desse combate.
Notas:
[1] Trecho do poema “Contrariedades”.
[2] Deleuze, Gilles. Capítulo 3. O que é uma literatura menor. Pg. 29.
[3] Trecho do poema “Setentrional”.
[4] Trecho do poema “Num bairro moderno”. Grifos meus.
Referências:
Cesário Verde, José Joaquim. O livro de Cesário Verde. Porto Alegre; L&PM, 2008.
Deleuze, Gilles. Kafka, por uma literatura menor. RJ; Imago, 1977.
Ferrara, Lucrécia D’Allésio. As máscaras da cidade. Revista da USP, São Paulo; Março/Abril e Maio. p.3-10, 1990.
Perrone-Moisés, Leila. Inútil poesia. SP; Cia das letras, 2000.
Moisés, Carlos Felipe. O desconcerto do mundo. São Paulo: Escrituras, 2001.
Estava eu fazendo uma rápida pesquisa sobre Cesário Verde, quando encontro esse texto (ótimo texto, por sinal)… então penso comigo mesma: “Joacy Ghizzi Neto – conheço esse nome de idoso de algum lugar” rsrs.
Beijos.