Que aconteceria se todos levantássemos, de súbito, o dinheiro do banco? Que sucederia a quem, actualmente, o sugerisse, a isso exortasse e por tal causa se batesse organizadamente nos grandes lugares públicos da enunciação? Por Rui Pereira

“a vitória universal da irresponsabilidade e do cinismo” Cornelius Castoriadis(*)

f090127_crise04A pergunta do título da peça não é retórica. Trata de saber, em primeiro lugar, que pode ser uma posição ‘revolucionária’. Posição ‘revolucionária’ por oposição ao sentido de ‘reformista’; transformadora, por oposição ao sentido de ‘reformadora’. Muitas diferentes propostas poderão ser revolucionárias, não custa imaginar, relativamente àquilo que nos é quotidianamente representado como a «crise do capitalismo»?

Também trata de saber, em segundo plano, caso possa encontrar-se uma posição argumentativa desse tipo — ao plano do discurso se cingem estas palavras —, por que razão a não vemos ser tomada por quem, de alguma maneira, seria de esperar que o fizesse. Ou seja, as esquerdas com voz mediática [midiática].

Sem competência técnica para aprofundar as raízes propriamente económicas da actual situação, que a indústria dos media [da mídia] e da instituição política e retórica dizem ser «uma crise generalizada dos mercados financeiros» (ver, p.ex., em língua portuguesa, as análises do sistema do capital noutros dos seus momentos, na bibliografia de João Bernardo), posso apenas abordar a questão pelas formas discursivas e políticas a que dá azo.

E essas não são excessivamente diversas. Quem se interessar pelo assunto pode bem fixar um espectro expressivo contingente, e recorrente, de formas. Espectro que herda fórmulas da linguagem administrativa disfarçada de jargão gestorial, a par de um campo semântico, largamente metafórico, de resto, pelo qual a «crise» se diz.

Ao correr da pena, lá vêm, no jargão gestorial, as fórmulas de administração não do discurso, mas, pelo contrário, da sua opacidade: as colecções de siglas, naturalmente, «Euribor, Dow Jones, Euronext, Nasdaq, PSI-20», bem como todos os nomes dos bancos malparados. Mas também: «produtos financeiros altamente sofisticados; praças financeiras, fundos de investimento, fundos de pensões, subprime, aquisição dos activos, extensão do passivo, intervenção, nacionalização, salvação do sistema financeiro, risco sistémico»…

A toda esta ininteligibilidade articulada, tão tremendista quanto salvífica, sucedem-se depois elementos de dois tipos. Os mais abstractos, como sejam diversos estados de espírito, «pânico», «tranquilidade», «serenidade». Coisas mais terrenas e entendíveis: «perda de postos de trabalho», «vamos ter, todos, que pagar para ultrapassar a crise», «falências», «apertar o cinto» e, sobretudo, «salvar o dinheiro dos pensionistas e depositantes».

No campo metafórico encontramos exemplos igualmente pouco convidativos ao entendimento humano. A retórica da catástrofe natural: «colapso», «terramoto», «abalo», «tremer», «choque», «bater no fundo», etc. A retórica moral e axiológica: «[restabelecer] a confiança», «[manter] a firmeza», «[cumprir] as obrigações», «[honrar] os compromissos», «não desmoralizar perante as dificuldades», «agir racionalmente». Ou ainda a retórica da nosologia (das doenças e da medicina): «terapia», «cura», «diagnóstico», «tóxico»… Enfim, poderíamos continuar.

A metáfora da «injecção»

De entre todas, poderosa e recôndita, devolvendo-nos aos terrores infantis e à doutrina dos grandes remédios para os grandes males, emerge porém, voando sobre as demais, a metáfora da «injecção» [«injectar liquidez no sistema financeiro»]. Esta não é interessante pelo que diz, como veremos. Mas, antes, pelo que sugere, como se vê e, acima de tudo, pelo que permite não dizer.f090127_crise02

Com efeito, nunca é dito, exactamente, explicado com precisão, em que consiste isso: «injectar liquidez». De uma assistência, confesso, mais ou menos ritual à encenação do espectáculo «Crise», a coisa mais parecida com uma explicação para isso foi a escutada a algum comentador especializado em economia (o que torna tudo mais estranho ainda) e que consiste no seguinte: “o Estado compra os ‘activos tóxicos’ das instituições financeiras em crise”; ou noutras palavras, e noutro comentador, “o Estado cobre o problema levantado” pelos tais produtos financeiros, taxados ora de venenosos, ora de requintados.

Pois bem, comprar um activo é uma coisa, cobrir uma dívida (inexplicada, e inexplicável?) parece ser bem outra. Para salvar o dinheiro dos depositantes, dar-se-ia dinheiro ao depositante na medida justa do seu depósito, não à instituição que o ameaça de ruína. E poderíamos continuar longamente a argumentar, sem sairmos de um inocente jogo de perguntas em torno desta pouco inocente acumulação de absurdos.

Da técnica para a política

O problema de argumentar sobre a «actual crise do capitalismo», a partir de uma perspectiva transformadora, não parece ter, porém, a ver tanto com as tentativas mais ou menos ideológicas, mais ou menos técnicas, de desconstrução do obscurantismo produzido pelo pseudo-«economês». Parece mais eficaz a tentativa de definir, numa proposta lógica, qual é o género próximo e qual a diferença específica desta chamada «crise». Isto é: em que é ela idêntica e diversa relativamente ao passado histórico de comportamento do sistema do capital?

Mas, de uma perspectiva política, que tal imaginar como possíveis estoutras perguntas: quem está a enriquecer, ainda muito mais brutalmente, com a «tempestade» do que enriqueceu até aqui com a «bonança»? Como está a processar-se este ainda mais prodigioso, tecnicamente lógico e eticamente sórdido negócio, à custa das «injecções» de dinheiros públicos. Dinheiros não dos Estados mas das pessoas, vertido para os lucros privados, sob o argumento de salvar os prejuízos colectivos? Alguém de maior preparação económica encontrará, sem dúvida, muitos mais pares de perguntas, porventura mais pertinentes ainda.

O problema da (ir)responsabilidade

Todavia, o sistema do capital revela, nestas semanas, à saciedade e às sociedades, duas das suas mais profundas essencialidades: em primeiro lugar, trata-se da mais poderosa e especializada lógica de transferência das riquezas socialmente produzidas, i.e., públicas, para o lucro privado; transferência do produto do trabalho realizado pelas maiorias produtivas, para as minorias acumulativas, reinantes, nos topos das pirâmides política, económica, social e espectacular. E, em segundo lugar, revela também o papel instrumental que aquilo a que se chama “o Estado” teve (e manteve) na génese e na preservação do sistema capitalista, garantindo-lhe de sempre as premissas da sua expansão e as condições para a sua dominação. Estado, lembremo-lo, tão vivamente insultado precisamente pelos mesmos que agora — como sempre, aliás — por ele clamam, travestindo-o de «enfermeira» para lhes aplicar «uma injecção».

Ora são esses, ainda e sempre os mesmos, trata-se, afinal e apenas, de uma pequeníssima minoria, que cuidaram de varrer, orquestradamente, cinicamente, toda a crítica que lhes fosse dirigida como sendo «irresponsável». O apodo de «irresponsável» percorreu toda enunciação de poder dirigida contra aqueles que, com razão ou sem ela, o criticaram precisamente pelas consequências das causas que agora aparecem expostas como fracturas.

Dia após dia, ano após ano, cada voz de esquerda, ou que no mínimo tivesse de si mesma uma auto-imagem de esquerda, foi suprimida, tentadamente domesticada, com o mesmo tratamento: «propostas irresponsáveis». Quem se opunha à ferocidade da flagrante desumanização capitalista da condição humana só o poderia fazer a partir da «irresponsabilidade»: porque «não tinha de governar, nem nunca teria de assumir as responsabilidades».

Quem assim acusa outrem de irresponsabilidade proclama-se a si mesmo «responsável». Responsável, pois, de quê? Quem são, então, os responsáveis e os irresponsáveis? Como podem ser poupados esses autoproclamados responsáveis, não ao confronto com o estatuto da sua reivindicada responsabilidade, mas, na linguagem por eles usada, com os concretos resultados da sua cínica irresponsabilidade?

Ora, são, estes, tempos de grande explicitude; nem tudo pode ser mau. Torna-se evidente que o mesmo sistema que privatiza os lucros, socializa os prejuízos. («vascogonçalviza-os» com sinal contrário, poderíamos nós, portugueses, ironizar). Não o enfatizar, com toda a violência do discurso; esquecer a radicalidade deste questionamento, nas oportunidades que quem, à esquerda, tem de se fazer ouvir nos grandes meios de comunicação, talvez não seja uma irresponsabilidade tão grandiloquentemente histórica, assim. Mas é, por certo, uma triste responsabilidade.

Como é possível não debater, não reflectir, à esquerda sobre duas perguntas-programa para o debate do tempo presente e futuro: que aconteceria se todos levantássemos, de súbito, o dinheiro do banco? Que sucederia a quem, actualmente, o sugerisse, a isso exortasse e por tal causa se batesse organizadamente nos grandes lugares públicos da enunciação?

Sem receio de que qualquer irresponsável me tome por aquilo que — ele próprio — é, modestamente, responsavelmente disponível me confesso.

Que pode ser uma posição radical e transformadora sobre o nosso tempo?

[15 de Outubro de 2008]

(*) Castoriadis, Cornelius (2000 [1999]), Figuras do Pensável As encruzilhadas do labirinto, Lisboa, Edições Piaget, pág. 84.

2 COMENTÁRIOS

  1. Questionamentos válidos e desabafo compreensível, mas a pergunta que entitula e finaliza o texto tem que ser mais do simplesmente enunciada. Infelizmente, o texto não ajuda a formulá-la em termos, se não precisos, talvez indicativos, ou, ao menos, pontuadores de uma posição de luta, de uma frente a combater. Será que o cerne do problema que a crise coloca é efetivamente a “socialização dos prejuízos”, como se a crise fosse uma manobra globalmente organizada para por em prática uma transferência maciça de recursos públicos para mãos privadas? Ou a crise expõe e dramatiza o ciclo mais rotineiro da reprodução do capital e de seu sistema e que portanto o desafio que coloca para os anticapitalistas seja justamente o de responder à sua total amplitude, ao seu caráter sistemático? Creio que é preciso ir além do que estamos acostumados a responder e buscar uma construção de luta para o que já está diante de nós.

  2. De facto, urge reagir ao quadro actual. A ideia de um levantamento de poupanças generalizado, além de difícil concretização, implicaria reivindicar um banco integralmente nacionalizado que as recolhesse…
    Não foram nem são os trabalhadores os responsáveis pelas crises, nem pela “doméstica” nem muito menos pela mundial.
    Por isso, cabe-nos a nós resistir ao saque dos dinheiros públicos, exigindo que nem mais um cêntimo seja entregue aos bancos; cabe-nos a nós prosseguir com a exigência de aumentos salariais, visto sermos dos mais mal pagos na Europa; cabe-nos fazer a greve – e ocupar as empresas, se necessário – se o patronato quiser despedir-nos; cabe-nos a nós exigir que o Estado invista os recursos de todos nós no interesse comum (mais escolas, hospitais, universidades, habitações, estradas, transportes, mais serviços públicos). Enfim, a nós, verdadeiramente, cabe-nos lutar, sabendo que é o único caminho justo para evitar que, no completar do ciclo, estejamos mais pobres, mais humilhados e mais recuados na relação de forças.
    Desculpem a extensão, mas, ainda mais nos dias de hoje, “não nos basta interpretar o mundo”…
    Saudações fraternas.

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