Por Azar Majedi

 

O Irão [Irã] está no topo das notícias internacionais. O que é que motivou os protestos em massa? Como é que a situação pôde mudar tanto no espaço de uma semana? O que é que as pessoas querem? O que vai resultar deste movimento de protesto? São estas as questões repetidamente colocadas nos canais de televisão e na imprensa. Diferentes analistas políticos e membros da academia americano-euro-iraniana, com diferentes graus de adesão ao chamado campo reformista, são solicitados para explicar a situação. Há uma afirmação que é comum a todos esses diferentes comentadores: “O povo iraniano não deseja uma revolução”. Com isso querem significar que o povo não pretende derrubar o regime islâmico. Afirmam que o povo quer uma evolução, um caminho gradual para a mudança. Insistem que o povo quer algumas pequenas mudanças do sistema político, um pouco mais de liberdade. Argumentam que o povo está a protestar contra Ahmadinejad e contra a burla eleitoral – não contra o regime islâmico. Por isso, se Mussavi chegar a presidente, tudo voltará à normalidade.

É este o sumo das análises apresentadas pelos médias [pela mídia] internacionais. Desde o colunista dito de esquerda e “anti-imperialista” do Independent ao repórter de direita do Financial Times, todos dizem o mesmo. O primeiro declara categoricamente que o povo do Irão “se sente bem com o regime islâmico”. E prossegue, repetindo o cliché “anti-imperialista” de que o povo do Irão “não quer que seja o Ocidente a dizer-lhe o que fazer. Não querem ser iguais ao Ocidente” (citação de entrevista ao canal Al-Jazira, em inglês). Como se querer ver-se livre do regime islâmico, ver-se livre da tirania religiosa, do apartheid de género, da opressão, da pobreza e da corrupção fossem à partida aspirações do Ocidente, e não aspirações de toda a Humanidade. Como se o povo do Irão, as mulheres do Irão, não soubessem distinguir sozinhos entre ditadura e liberdade, entre discriminação e igualdade, entre brutalidade e respeito humano. Como se, mesmo que se tratasse de “valores ocidentais”, tal facto lhes tirasse a validade e a premência. Segundo Fisk, o povo iraniano é fiel à revolução “islâmica”. Quer apenas ver-se livre de Ahmadinejad.

No programa da manhã do GMTV, a repórter do Financial Times opôs-se totalmente quando eu declarei que estes protestos são “o princípio do fim do regime islâmico”. Assegurou que o povo do Irão “não quer uma revolução. Quer uma evolução e um pouco mais de liberdade. Querem poder vestir as T-shirts que lhes apetecer”.

Se eu não acreditasse tão firmemente naquilo que quero ver acontecer no país onde nasci – esse país de onde tive que fugir (como milhares de outros) para salvar a vida, para escapar à tortura e à execução, na altura em que o senhor Mussavi era primeiro-ministro, teria achado ser loucura desejar uma mudança efectiva, desejar acabar com esta ditadura religiosa brutal, misógina e reaccionária. Teria pensado que todos os meus queridos camaradas e amigos que foram assassinados nas conhecidas prisões do regime islâmico eram uns loucos por terem perdido as suas vidas a lutar contra este regime. Teria pensado que estas centenas de milhares de pessoas que arriscam a vida e o destino nas ruas devem estar loucas.

Tenho a certeza de que os senhores Mussavi, Karubi e Khatami não querem mudanças muito acentuadas. Não tenho dúvidas de que “eles se sentem bem com o regime islâmico”. Mas o que dizer de Neda, a jovem mulher abatida a tiro em Teerão? Que dizer daquela mulher grávida morta quando se manifestava? Que será do companheiro dela que, de um só tiro, perdeu dois entes queridos? E de todas essas mães e pais cujos filhos e filhas foram brutalmente torturados e executados; esses pais que continuam sem saber onde estão sepultados os filhos amados; esses pais que, com medo de represálias, enterraram os filhos no jardim lá de casa. Que dizer dos pais dos milhares de filhos seus que foram forçados a caminhar em terrenos cheios de minas durante a guerra Irão-Iraque com uma chave de entrada no céu pendurada ao pescoço? E as crianças cujas mães foram apedrejadas até à morte? Que dizer dos milhões de mulheres que são forçadas a usar o véu e são tratadas como seres semi-humanos? Estará toda essa gente “feliz” com a república islâmica e quererá apenas um pouquinho mais de liberdade, um bocadinho de mudança?

Se eu não conhecesse e sentisse este descontentamento tão profundamente, se não tivesse testemunhado essas coisas com os meus olhos, se eu não conhecesse alguns desses jovens, mulheres e homens, que foram executados por este regime monstruoso, então eu deixar-me-ia convencer. Não teria outra escolha senão aceitar a interpretação única que nos é facultada pelos médias [pela mídia] internacionais. Fico perplexo. Isto acontece por acaso, ou haverá intenções escondidas? Serão essas análises o produto de compreensão superficial de uma sociedade amordaçada pela ditadura e pela censura, ou farão parte de um plano para materializar uma estratégia enganosa?

Eu estive lá, eu vi tudo!

Sou de uma geração que presenciou os protestos massivos contra outra ditadura. Sou da geração que lutou contra a ditadura do Xá. Lutei contra duas ditaduras, pela liberdade, pela igualdade, pela justiça socio-económica, pela prosperidade. Sou, como tantos outros camaradas, um militante político calejado. Os médias internacionais [a mídia internacional] agiram da mesma forma há 30 anos atrás. Nessa altura a tecnologia não estava tão avançada. Não havia YouTube, nem internet nem televisão por satélite. Mas as pessoas dependiam igualmente dos médias internacionais para terem notícias. À época, estava-se no tempo das ondas curtas. As pessoas dependiam da BBC, da Voz da América, da Rádio Israel e da Rádio Moscovo para terem acesso às informações e às análises.

Em 1978, esses médias [essa mídia] tiveram um papel importante na transformação de Khomeini em líder – ele que não passava de um clérigo exilado, praticamente desconhecido da população e quase já esquecido pelos seus fanáticos seguidores. Então, em plena Guerra Fria, o medo de um crescente movimento popular da esquerda no Irão levou os Estados ocidentais a sentarem-se à mesa em Guadalupe, para mudarem o curso do que fora o maior movimento de massas da história do Irão. Num curto espaço de tempo, para nossa estupefacção e perplexidade, os islamistas, que haviam sido marginalizados na fase inicial dos protestos, apoderaram-se da liderança do movimento antimonárquico.

Pediram ao Saddam Hussein que deportasse Khomeini, com o pretexto do seu envolvimento em actividades contra o Estado iraniano. A França recebeu-o de braços abertos. De um dia para o outro, tornou-se uma celebridade mediática internacional. “A ‘leader’ is born” – nasceu um “líder”. Abortava assim uma revolução pela liberdade, pela igualdade e pela justiça. Foi o começo de 30 anos de sangue, de opressão, de misoginia, de discriminação de género, de lapidações, de mutilações e do mais odioso sistema político.

A História agora repete-se. Como sempre, com medo de mudanças radicais que possam levar a esquerda ao poder, a máquina de fabricar opinião dos médias [da mídia] está a dizer metade da verdade. As suas “análises aprofundadas” são totalmente inofensivas. Talvez alguns jornalistas sejam capazes de ver alguma coisa à superfície, mas na generalidade existe um plano deliberado para censurar a esquerda, para esconder as aspirações profundas e as exigências do povo. Um “líder moderado” é o máximo a que estão dispostos a dar voz.

Relação de forças

Serão os protestos das pessoas apenas contra Ahmadinejad? Gostarão mesmo do regime islâmico? Será que, realmente, querem apenas uma pequena mudança, um pouco de liberdade? Como é que esses jornalistas e analistas políticos podem chegar a uma tal conclusão? Examinemos estas questões mais de perto.

Eis o que vem acontecendo no Irão nas últimas semanas. Nos dias que decorreram entre as eleições de 12 de Junho, as pessoas organizaram manifestações e comícios em apoio dos chamados candidatos reformistas e contra Ahmadinejad. Votaram a favor de Mussavi ou de Karubi. Foi geral a percepção antecipada de que as eleições seriam falseadas, por isso a população manteve-se alerta e pronta a ir para a rua. Quando os resultados foram anunciados, duas horas apenas após o encerramento das urnas, foram desencadeadas grandes manifestações. As pessoas foram para a rua aos milhares, protestando contra a manipulação das eleições.

Foi assim que a situação evoluiu. Mas isto não é a verdade toda. Quem quiser ver, vê mais do que isso. Ao analisar a situação no Irão, é preciso levar em linha de conta o importante factor da relação de forças. É fácil perceber que a população não podia descer à rua e gritar “Abaixo a República Islâmica” quando o aparelho brutal e sofisticado de repressão se encontra intacto. As pessoas agem num contexto de relação de forças e tentam mudar essa relação a seu favor.

A maior parte dos votos a favor de Mussavi ou de Karubi foi, na realidade, um voto “não” contra Ahmadinejad e contra a República Islâmica. Houve apenas quatro candidatos que conseguiram passar o sistema de veto do Conselho dos Guardiões. No regime islâmico, cerca de 99% das pessoas estão impedidas de se apresentarem como candidatas. Segundo a lei islâmica, uma mulher não pode ser presidente. Isto exclui, de uma assentada, cerca de metade da população. Quem não for crente não só está impedido de se candidatar como deve ser decapitado, nos termos da lei. Os praticantes de outras religiões que não o xiismo estão também excluídos. Assim ficamos reduzidos aos xiitas machos. Mas, deste grupo, só os que forem verdadeiros seguidores da República Islâmica podem apresentar-se como cantidatos à presidência.

O Conselho dos Guardiões tem direito de veto sobre todos os putativos candidatos e decide quais deles se enquadram nos critérios exigidos. Desta vez, só ultrapassaram o veto quatro homens que foram figuras proeminentes do regime, que ocuparam lugares importantes no passado e desempenharam papéis de relevo na consolidação do regime. Além de Ahmadinejad, os candidatos foram Mussavi, Karubi e Rezaei. Mussavi foi primeiro-ministro no tempo da guerra Irão-Iraque. Durante o seu mandato, em Agosto de 1988 – em menos de um mês – milhares de activistas e até algumas crianças foram executados nas prisões. Karubi foi figura proeminente do regime desde os seus primórdios, próximo de Khomeini e também porta-voz dos Majlis (parlamento) por algum tempo. Rezaei foi comandante do Corpo da Guarda Islâmica (CGI), o principal instrumento de opressão. Todos estes homens participaram na brutal repressão da oposição na República Islâmica. Se o povo iraniano conseguisse impor a justiça na sociedade, todos eles teriam de ser julgados por crimes contra a humanidade.

Haverá nisto alguma verdadeira escolha para o povo iraniano? É esta a primeira pergunta a fazer. Se não há, porque terá sido tão massiva a participação eleitoral? As pessoas usaram essa oportunidade para exprimirem o seu protesto, para mostrar o seu descontentamento e para dizer um forte “NÃO” a este regime. As concentrações de massas, identificadas como sendo campanha de Mussavi ou de Karubi, foram uma grande surpresa para toda a gente, incluindo os próprios candidatos. Num país onde qualquer acto de protesto, e ainda mais qualquer manifestação, é brutalmente reprimido, a campanha presidencial representou uma janela de oportunidade. O regime islâmico teve bastante receio destas concentrações massivas e da rapidez com que cresceram e se radicalizaram.

Perante esta escalada de concentrações anti-governo sob a bandeira de uma campanha presidencial, o CGI emitiu um comunicado onde declarava que os extremistas apoiantes dos candidatos estão a tentar derrubar o regime. Ameaçou as pessoas com medidas repressivas severas se ousassem concretizar essa tentativa. Em consequência, o CGI e a facção Khamenei-Ahmadinejad decidiram pôr termo ao ambiente eleitoral e fazer abortar quaisquer planos destinados a enfraquecer o regime. Por isso o resultado das eleições foi anunciado escassas horas após o fecho das urnas.

Interpretaram erradamente a realidade. Não conseguiram perceber que há um estado psicológico colectivo diferente, um ambiente diferente. Não viram, ou não perceberam, que os tempos estão a mudar. Desta vez, a disposição das pessoas é muito diferente. Aparentemente, as pessoas não estão dispostas a recuar. Não se trata necessariamente de uma decisão consciente ou expressa. Este ambiente de desafio foi em grande parte criado por uma mudança profunda do ambiente social e da psicologia colectiva do povo. A situação parece ter atingido um ponto de não-retorno.

O povo não quer este regime. Não quer viver sob uma tirania religiosa. Não quer apartheid de género. Quer ser livre. Quer igualdade e prosperidade. É essa a vontade do povo. E, desta vez, parece estar determinado a continuar o protesto até que se cumpram essas exigências. A sucessão de acontecimentos nos últimos dias, em especial após o sermão de sexta-feira de Khamenei, modificou a luta pelo poder entre o povo e o regime. Apesar das duras medidas repressivas das forças de segurança, que já mataram cerca de 200 pessoas, feriram muitas mais e prenderam centenas de manifestantes, apesar da violência dos esbirros das forças de seguranca e da milícia, as pessoas mantêm uma postura de desafio. A relação de forças alterou-se a favor do povo, não no sentido militar, mas enquanto desafio à intimidação e ao medo.

Se, até sexta-feira passada, os manifestantes desfilaram em silêncio, tentando não provocar violências, nos últimos dias os protestos tornaram-se mais radicais e menos auto-contidos. Os manifestantes já gritam “Abaixo a República Islâmica”. Vêm à tona, nas ruas, sem censura, os seus sentimentos profundos. Há notícias e até pequenos vídeos de mulheres sem véu, vestidas com trajes não-islâmicos, em algumas zonas da cidade. Uma característica importante deste movimento de protesto é o facto de não ser organizado ou dirigido pelos que clamam serem seus líderes, ou como tais são identificados pelos médias [pela mídia]. Há um carácter espontâneo. O que vemos, não apenas nas ruas de Teerão mas também noutras grandes cidades, mais se assemelha a um levantamento. O regime islâmico parece ter entrado numa fase em que, sejam quais forem a sua táctica e as suas cambiantes, só conseguirá aproximar-se do seu termo. Isto é o princípio do fim de um dos regimes políticos mais brutais e odiosos do século XX. O seu derrube terá importantes repercussões no Islão político médio-oriental. As mulheres do Irão, como certamente toda a região, farão tudo para conseguir ganhos a partir destes acontecimentos.

Artigo publicado (em inglês) no site www.ButterfliesAndWheels.com (Inglaterra). Tradução Passa Palavra.

4 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito do artigo! Toda força ao povo do Irã! E que não se calem até o fim desse odioso regime!

  2. Se f*deu o imperialismo. Não deu certo. 15 anos e nada da “ditadura” (isso é, “ditadura” = todo regime não alinhado com Washington) cair.

  3. O negacionismo de Nícholas equipara-se ao negacionismo dos bolsonaristas, que negam que o regime militar de 1964-1985 tenha sido uma ditadura e alegam que foi instalado para impedir o estabelecimento de uma ditadura comunista no Brasil. Ah, mas me esqueci… Os torturadores, assassinos e terroristas que chegaram ao poder em 1964 no Brasil eram apoiados pelos Estados Unidos, então eles personificavam o Mal, e qualquer grupo de torturadores, assassinos e terroristas que se oponha a Washington é anti-imperialista e, portanto, personifica o Bem, ainda que seja patrocinado e subordinado a potências imperialistas como a Rússia e a China…

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