Em Brasília, os refugiados chamam a atenção para o que lhes foi prometido e depois negado

Por Otto

Cento e dezessete refugiados palestinos foram recebidos pelo Brasil há cerca de dois anos. O governo brasileiro, talvez na esperança de ganhar um assento no Conselho de Segurança da ONU, aderiu ao programa de refugiados do ACNUR – Alto Comissariado nas Nações Unidas para Refugiados.

Nusha morreu de pneumonia. Segundo o Comitê de Solidariedade, outros refugiados estão doentes

Quando chegaram ao Brasil, foram recebidos com imensa e barulhenta pompa – desde políticos, ONGs, partidos (de direita e de esquerda), autoridades, imprensa, Igreja Católica, etc. Cinqüenta e sete deles foram assentados em Mogi das Cruzes (São Paulo) e os demais espalhados entre Paraná e Rio Grande do Sul (cidades ao redor de Porto Alegre, Santa Maria, etc).

Passados dois anos, eles se encontram no esquecimento, abandonados, a maioria desempregados, sem domínio da língua portuguesa, morando amontoados em casas pequenas, sem atendimento médico ou assistência adequada, e ainda vítimas de descaso e maus tratos. Muitos não conseguem pagar aluguel e outros tentaram abrir pequenos negócios familiares, vivendo à beira da falência (um deles faliu e fechou as portas recentemente). Agora, como a magra ajuda em dinheiro de dois anos dada pela ACNUR, que ajuda a cobrir os aluguéis, acaba em outubro, muitas famílias palestinas temem ser despejadas e cair na miséria. Enquanto isso, as autoridades, Cáritas e ACNUR fazem silêncio. E, pasmem, muitos dos que posavam no palanque ao recebê-los, saem por aí a dizer que os refugiados “estão ótimos” porque “eles já têm pequenos comércios”, desconhecendo completamente que eles têm dívidas e vivem à beira da falência, tendo de trabalhar jornadas extensas e finais de semana. Muitos refugiados se queixam que não conseguem dormir, pois sentem medo e tensão. Um caso é o de Gazi Saheen, outrora um famoso músico popular no Iraque, compositor, tocador de alaúde, cantor e autor de discos na década de 70, que faliu e fechou as portas de um botequim com que mantinha sua família e agora se encontra desempregado, necessitando de uma cirurgia de uma hérnia.

Palestinos denunciam a falta de apoio da ACNUR e da Cáritas Diocesana

Quando foram recebidos, a Cáritas, organização ligada à Igreja Católica, existente em muitos países, ficou responsável por lhes dar assistência, recebendo gordas verbas da ACNUR, com as quais deveria, além do repasse aos refugiados, oferecer acompanhamento geral e assistência social. Mas, atualmente, os refugiados encontram-se abandonados e muitos temem cair na miséria e querem sair do Brasil – cerca de vinte encontram-se acampados em Brasília há mais de um ano, em protesto contra a ACNUR. Já sofreram duas reintegrações de posse violentas, sob a mira de grande número de policiais armados.

Ocorre que no momento já somam duas mortes por descaso e negligência. A primeira foi a do bebê da refugiada Huda Albandar, que se encontrava grávida, foi ao hospital, não sabia falar português para se defender, sofreu negligência no atendimento e assim perdeu a criança, tendo ainda o útero amputado e quase perdendo a vida. Huda aprendeu português e hoje é a pessoa que melhor domina o idioma no grupo de refugiados, como uma medida para se defender e à comunidade.

No dia 26 de Julho, domingo, ocorreu o segundo episódio grave. A refugiada Nuzha El Looh, de 65 anos, chegada há 3 meses de Gaza, foi internada na Santa Casa de Misericórdia de Mogi das Cruzes com uma pneumonia e passando mal. No dia seguinte, ela faleceu de choque cardiogênico, apesar dos esforços dos médicos, que mesmo com poucos recursos e em condições precárias de um hospital superlotado, tudo fizeram para salvá-la. Se ela tivesse tido tratamento adequado para diabetes e pneumonia nos dias anteriores, estaria viva. Nuzha, que estava separada do filho Hossan El Looh há nove anos, fora finalmente trazida ao Brasil junto com a irmã Aisha e seu neto Aiham, reunindo a família. Moravam dentro da casa de Hossan mais de dez pessoas, sendo que várias dormiam em colchonetes no chão – incluindo sua mãe Nuzha, que ainda era diabética – e sem cobertores ou camas. Inclusive pessoas dormiam na garagem por falta de espaço, em uma sala improvisada com panos pendurados. Foram dias de extremo frio. Alguns brasileiros, militantes de movimentos sociais e membros do Comitê Autônomo de Solidariedade ao Povo Palestino, levaram uma cama e cobertas; mas já era tarde, pois Nuzha estava doente.

Em Brasília, os refugiados chamam a atenção para o que lhes foi prometido e depois negado

Quando Nuzha sentiu-se mal, seus familiares procuraram a Cáritas, que os mandou “se virarem” e os atendeu com descaso e truculência. Nuzha faleceu e sua família não possuía sequer dinheiro para o funeral. Nem a Cáritas, nem a ACNUR, nem a rica comunidade libanesa de Mogi das Cruzes, nem as autoridades públicas ou partidos políticos que fizeram pompa há dois anos deram assistência – o Sheikh, que apóia a comunidade palestina, teve de procurar recursos para o enterro junto com os membros do Comitê.

O enterro foi realizado no Cemitério Islâmico de Guarulhos, sob intensa dor e um sentimento de opressão por parte de todos. A comunidade se sente oprimida, ofendida, abandonada e revoltada – e com razão. Hossan diz sentir-se tratado como um cachorro e não como um homem, e deseja sair do Brasil se puder.

Tal fato repercutiu na imprensa local, como um escândalo – pela primeira vez o cerco do silêncio foi rompido, e as más condições de vida dos palestinos passaram a ser públicas. O Comitê Autônomo de Solidariedade ao Povo Palestino, formado recentemente por movimentos sociais e refugiados, tem organizado o apoio às famílias e está entrando na justiça, com o advogado – Rubens Leite Fernandes. Membros do Comitê e de movimentos sociais exigem justiça e que se cumpram as promessas feitas aos refugiados.

O comitê reivindica aposentadoria para os idosos (lei orgânica de assistência social), contratação de um tradutor disponível para socorro às famílias em caso de emergência e acompanhamento cotidiano, professor de português para os idosos (que não conseguiram aprender a língua), atendimento médico adequado (crianças sofrem de asma, velhos precisam de cirurgias), e a prorrogação da ajuda de custos da ACNUR por mais dois anos – além da possibilidade de reivindicar terra para a colônia palestina se instalar e se constituir sua comunidade com autonomia. O comitê tem ajudado os refugiados cotidianamente em questões como providenciar móveis, consultas de advogado, acompanhamento em hospitais, levantamento de apoios e redes de solidariedade, etc. A ação do comitê se expandiu e conta com a participação ativa de muitos refugiados.

Refugiado colombiano passa dificuldades no Brasil

Ainda, depois de tudo, um refugiado colombiano, Afonso, procurou o Comitê e denunciou à imprensa também ser vítima de maus tratos e de abandono por parte da Cáritas, além de ter sido explorado por eles ao trabalhar em uma fazenda, sem registro, direitos trabalhistas e em condições irregulares, contraindo uma lesão grave na coluna e sendo demitido; ficou em situação de pobreza. Segundo Afonso, que já foi madeireiro no sul da Colômbia e fugiu da guerra civil colombiana, mais refugiados colombianos passam por situação similar aos palestinos.

O presidente da Cáritas, Antenor Rovida, faz silêncio e se esquiva de comentar o assunto quando procurado pela imprensa – a Cáritas empurra a culpa para a ACNUR. Já Luís Fernando Godinho, porta-voz do ACNUR, trata a imprensa com truculência e acusações quando é procurado. Sua truculência sobre os membros do jornal Mogi News foi denunciada pelo próprio jornal, que comprou a briga. Os editores do jornal afirmaram, em resposta a Godinho, que:

“é muito fácil entoar uma lição de moral sentado num gabinete luxuoso e com ar condicionado de Brasília, enquanto pessoas traumatizadas por guerras e perseguições de todos os tipos enfrentam, como podem, a dificuldade de hábitos, língua e clima diferentes daqueles da terra de origem”

Os refugiados têm sido tratados de forma criminalizadora – desde os despejos infligidos em Brasília por policiais armados, até declarações das instituições os chamando de “criadores de problemas”, culminando no caso de um refugiado, Mahmoud, que afirma ter encontrado um aparelho de escuta minúsculo dentro de um armário dado pela Cáritas – ele encaminhou o aparelho para os advogados que auxiliam os acampados de Brasília, que já estão tomando providências jurídicas. Um dos refugiados, que voltou de Brasília, telefonou à Cáritas avisando que iria até lá conversar com os diretores da mesma, e quando chegou à porta era esperado por uma viatura de polícia e foi impedido de entrar. Os refugiados, especialmente os que estão em Brasília, reclamam desta truculência policial e de terem sido submetidos a revistas (“tomar uma geral”, como diz o povo das periferias), e que a polícia dos países árabes, embora violenta com criminosos, não trata a população civil dessa maneira, sendo muito mais cortês.

Hossan, filho de Nuzha, que com muita dificuldade mantém sua família com um pequeno serviço de lavagem de carros, afirma que «nos países árabes existe guerra e insegurança, mas lá, onde não existe essa “democracia” de que todos falam, somos tratados com mais dignidade do que aqui. Simplesmente não existe “democracia” no Brasil, isso é uma fachada.»

Reféns de toda uma claque de gestores tecnocratas, desde organismos nacionais e internacionais, até a classe média alta elitizada e o setor direitista da igreja de uma cidade historicamente ultra-conservadora (nos mesmos dias dos fatos que relatamos, foi noticiada no jornal a polêmica gerada por violências de guardas contra mendigos, e o jornal recebe cartas da população apoiando esta “higiene social”), os refugiados, apoiados por movimentos sociais, seguem adiante sua luta por reconhecimento e uma vida melhor.

Membros de movimentos sociais entraram na Conferência Municipal de Assistência Social, ocorrida no sábado, 01 de agosto, e denunciaram esta situação, distribuindo um panfleto em defesa dos refugiados. Obtiveram algumas moções de apoio e esperam obter uma audiência com a prefeitura para reivindicar apoio aos refugiados.

Palestinos relataram ao Mogi News as dificuldades que estão enfrentando no Brasil e o receio de que a situação fique pior

O falecimento de Nuzha, fato doloroso para sua família e comunidade, fez vir à tona o sofrimento e abandono de que sofrem os refugiados, bem como a má situação da saúde pública da população em geral.

Não bastando terem sido expulsos de suas terras e despejados de um país ao outro, vivendo em campos de refugiados, eles esperavam encontrar um futuro melhor no Brasil, mas encontraram um país de miséria, baixos salários, condições precárias e um péssimo sistema de saúde do qual são vítimas, além do descaso das autoridades. Vítimas do regime de apartheid e de genocídio do Estado de Israel, chegaram ao Brasil numa situação totalmente diferente da de imigrantes econômicos do passado, que prosperaram e hoje são ricos. Vivem em condições de pobreza material e constante temor quanto ao futuro – o que mostra que sua questão não é apenas étnica e cultural, mas uma questão de classe. Mas o que mais os surpreende é o fato de que os brasileiros se submetem passivamente às más condições de vida, e suportam permanecer horas numa fila de hospital, de assistência social, ou de pé dentro de um ônibus. E continuam todos os dias a acordar e ir trabalhar normalmente como se nada estivesse acontecendo. Esta passividade e indiferença é o que mais assusta os refugiados.

Para mais informações, acesse:

Blog oficial do Comitê Autônomo de Solidariedade ao Povo Palestino
Site do Movimento Palestina para Todos
Site do coletivo Trinca

Para apoio aos Refugiados, entre em contato: [email protected]

Matérias de jornal sobre os refugiados e os últimos acontecimentos:
Mogi News 29/07, Mogi News 30/07, Mogi News 31/07, Mogi News 01/08, Mogi News 02/08, Mogi News – Refugiado colombiano

Matérias sobre os refugiados no Passa Palavra: Dossiê Palestina

Fotos do jornal Mogi News

1 COMENTÁRIO

  1. E tudo muito triste, a situacao destas pessoas que um dia tiveram vida em seus paises de origem e hoje vivem a medingar.
    No entanto acho que ANTES o nosso governo deveria se preocupar primeiro com os sem tetos daqui que ja sao tantos, que sobrevivem de forma precaria sem o minimo de condicoes basicas, como e a situacao principalmente nas regioes ribeirinhas do pais e no sertao nordestino. Antes temos que limpar a nossa casa para depois podermos limpar a dos outros.Sem duvida alguma somos solidarios com os irmaos palestinos, porem jamais o governo brasileiro deveriam se fazer de BONZINHOS e traze-los para ca, simplesmente por questoes de ficarem mais VISIVEIS juntos a orgaos governamentais de alto escalao mundial, ou em outras palavras simples QUERER APARECER FRENTE A PAISES DESENVOLVIDOS.estas pessoas nao foram trazidas para ca por HUMANIDADE, e sim por VAIDADE dos nossos governantes. E agora… quem paga a conta.. quem se responsabiliza…o que serao dessas pessoas que de alguma forma ou de outra ja estao inseridos no contesto da nossa sociedade. E AGORA JOAO, Ou melhor e agora GOVERNO!!!

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