São as pessoas simples, as pessoas anônimas do cotidiano que compõem o motor da mudança ou a resistência para que as coisas não piorem. Por Ronan Gonçalves [1]
Quando iniciei conscientemente meu processo de instrução e participação política, aos dezessete anos, embora não percebesse na época, portava um grande paradoxo: ao mesmo tempo em que nutria uma gigantesca crença na mudança social e me dedicava com todo afinco em compensar aqueles anos de ignorância e apatia política pensava que os dias de grande agitação jamais ocorreriam em minha vida, eram coisa do passado ou de um futuro longínquo.
Eu possuía uma concepção romantizada da mudança social e essa concepção em muito se devia à tradição literária difundida, que, ainda hoje, se centra mais nos personagens que nos processos históricos, surgindo a história somente como um roteiro por onde desfilam os astros: Marx, Bakunin, Lênin. Também fruto do profundo elitismo e/ou idealismo da esquerda brasileira que apresenta uma concepção da luta na qual a instrução formal tem lugar chave, havendo papel destacado para intelectuais, obras e iluminados. Pessoas destacadas, moralmente virtuosas e com instrução ímpar surgiam como o substrato ideal dos dias de mudança.
Apesar de toda confusão que os livros podem causar, aprendi a dar aos livros o que é dos livros e à vida o que é vivido. No decorrer desses 10 anos passaram-me face a face a crítica social dos Racionais MCs, associações de moradores, movimento punk, Comitê Zapatista, Sintusp, zines e a imprensa alternativa, o CEFAM de Franco da Rocha de 1997-1999, Movimento Humanista, as lutas estudantis dentro da universidade, a União Municipal dos Estudantes de Franco da Rocha, Educafro, MST, MTST, Ação Educativa, cursinhos populares, Cooperifa, CCS, Resistência Popular, o CELMA, PSTU, Oaxaca, Bolívia dos últimos anos… Apesar da enorme permanência do velho mundo, parece ter havido uma erupção, que esfriando foi dando origem a novos elementos, agora componentes da paisagem.
Diante dessa infinidade de ações e acontecimentos, toda aquela concepção difundida da mudança social passou a cheirar furiosamente a convenção e a mofo (André Gide). Aprendi que, distante dos tronos, são as pessoas simples, as pessoas anônimas do cotidiano que compõem o motor da mudança ou a resistência para que as coisas não piorem. Sem idealismos, elas podem ser também muitos dos problemas, da exploração e dos tiranos que se encontram pelo caminho. Elas podem resistir, mas também podem aceitar, podem compactuar, e pessoas que lutam um dia podem estar do outro lado no outro dia.
Um posicionamento pela mudança social é uma atitude diante da vida que não se adquire em livros nem fazendo cursos. É uma indignação com a própria condição e/ou com a condição de outros. É uma ação, consciente ou não, para que o mundo seja menos desigual, menos injusto, e parece não haver um livro de receitas, um manual de auto-ajuda para tal perspectiva, que impeça, por exemplo, os erros. Muitas vezes se pensa que os grandes dias e as grandes pessoas são somente coisas do passado ou de um futuro distante. No entanto, a alternativa e as pessoas que a vivificam moram ao lado ou é aquela pessoa que se vê quando se olha no espelho. Não há mais ninguém.
Obviamente, não se trata de fazer uma apologia da ignorância ou um mero anti-intelectualismo, o estudo permanente e o conhecimento é condição para uma luta mais eficaz. A questão é que, contados um a um, vi e vivi um conjunto de eventos que sequer imaginava possíveis. Daí se aprende que a crítica social se absorve e se constrói participando das lutas. E estas são as de hoje, não as que estão inscritas em livros históricos e/ou fórmulas. E as lutas possuem uma dinâmica que pode não corresponder ao que desejamos. Por isso, há momentos em que se deve respirar e olhar ao redor, contar quantos sobraram, o que se conseguiu, e fazer o saldo dos fatos. Nossas vidas não correspondem estritamente aos imaginários que dela fazemos. Muitas vezes sequer correspondemos aos nossos próprios projetos.
Pondero isso porque, ao menos no Brasil, há uma forte tendência pessimista, às vezes mesmo niilista, entre muitos que lutam e pensam a luta social. Esse niilismo de esquerda possui o paradoxo nostálgico de somente identificar ou dar atenção às lutas do passado, romantizando-as e as livrando das impurezas, num processo de produção de santos laicos, ao passo que ignora intelectual e praticamente os temas e os lutadores do presente. Fosse só isso já seria um problema, mas essa atenção às lutas e pensadores do passado é condição, por exemplo, para que professores universitários que conseguiram criar uma espécie de servidão clientelista na universidade, mediante a qual exploram trabalho não pago de alunos postos a fazer as mais diversas tarefas, permaneçam aplaudidos e não postos em questão. A apologia de um mitificado passado revolucionário serve para explorar servilmente alunos do presente. E serve para muitas outras coisas mais. Os exemplos se estenderiam.
Por fim, olhar para o hoje é condição para que também somemos os avanços e construamos um norte. Não são poucos os movimentos e lutas sociais que foram eficazes em conquistar bandeiras ou, o que é muito importante, fazer frear a exploração e a hierarquização. Do surgimento de um rap de crítica social que é uma primeira forma de instrução para toda uma juventude alheia aos livros, ao trabalho de grupos de direitos humanos que conquistaram a eliminação ou diminuição dos esquadrões da morte em São Paulo, passando pelo esplendoroso movimento de cursinhos populares que é a principal forma de educação popular atual, há muito que se comemorar e apoiar. Em algumas regiões o problema não é tanto de inexistir grupos e lutas mas de que uns saibam que os outros existam e se unam, para que se fortaleçam e, principalmente, não morram.
Há um nítido avanço no debate da questão racial no país, da questão da mulher, da violência sexual contra a infância, da escravidão, da servidão de empregadas domésticas, muitas delas em cárcere privado em condomínios; o Bolsa-Família e sua adesão entre a população abre espaço para se avançar a discussão sobre uma renda básica que garanta um mínimo de dignidade a todas as pessoas que, nos dizeres do Movimento Humanista, possuem o direito de viver os melhores momentos da vida; as lutas com ocupação na USP colocaram às claras a existência de uma favelização do estudantado pobre que adentra a universidade rica de São Paulo; surgem o movimento passe-livre, movimentos culturais populares como o Cooperifa que vão na linha de coisas feitas e não conhecidas anteriormente e os exemplos se somariam à exaustão.
A atenção para esses fatos é muito importante pois do lado de lá se movimentam gestores estatais e empresarias com o objetivo de cooptar e enquadrar muitos movimentos. É assim que a Nike cerca os Racionais MCs e o governo patrocina movimentos que procuram enquadrar a rede de cursinhos populares, surge o “polícia cidadã” e vários outros exemplos, quando não é o caso de o empresariado criar diretamente, e orientados por cima, movimentos sociais, como é o caso do Todos Pela Educação, que tem tido enorme força em dar as diretrizes da reforma educacional em curso no país. Como no caso do movimento de luta estudantil da Unesp de Marília, em que estudantes moraram por 4 anos na faculdade para conquistar a moradia, os gestores pretendem apagar a origem de base de muitas lutas e colocar lá suas placas douradas, diretores, prefeitos, reitores, governadores, etc. Algo similar aos que, do outro lado, tudo atribuem a nomes famosos.
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.
Caro Ronan,
muito boa sua reflexão, principalmente a julgar pela forma escolhida de narrar, que considero mais intimista, a partir das suas experiências pessoais. Aproveito para compartilhar certo incômodo que também me causa a reiteração de formas romantizadas do passado, “centradas mais nos personagens que nos processos históricos”. No entanto, de minha parte, o que me causa muitas vezes muita desmotivação não é, ao contrário do que dizes, fruto do “paradoxo nostálgico (…) de somente dar atenção às lutas do passado”, mas do quanto, ficando presos a esses modelos, muitos militantes não abrem espaço para criar novas formas de luta e agregação – ao contrário da série de movimentos que vc citou. Além disso, me incomoda, como vc diz, a idealização de certos personagens, o que leva muitos a agirem conforme aqueles velhos modelos, se des-caracterizando como pessoa para dar espaço à construção de uma persnoficação desaraigada da realidade atual ou de qq realidade concreta baseada em experiências vividas, atravancando assim a luta. Exemplos desse tipo vejo, por exemplo, em certas formações grupais, como a JR, MNN e LER-QI, que aliás, vc não comentou. Terá sido por isso? Obrigada e abraços.
Ronan, parabéns pelo texto.
Tal sacralização se deve, muitas vezes, a uma abstração das reais condições concretas em que surgiram os nomes e as lutas. Quando não se consegue apreender isso, ignora-se que os cursinhos populares, os movimentos sociais, entre outros, são a própria concretude do processo.
Gostei muito do texto.
Abraços
Muito interessante sua reflexão Ronan. Tenho pensando muito sobre o
lugar da teoria, principalmente dos teóricos, nas existências
cotidianas das mulheres e homens que se movimentam, ou mesmo o papel
dos teóricos na transformação social.
O fato é que a reflexão sem movimento acaba sendo um elixir de muitos
intelectuais. Uma forma de sentar a bunda na cadeira, confortável é
claro, e não sentir o peso do mundo, afinal suas existências muitas
vezes está garantida.
Já os sujeitos que se movimentam, tendo como respaldo suas
sobrevivências e que não precisam citar, Marx, Lênin, Bakunin etc,
para através de suas práticas cotidianas repelir a estrutura social do
capitalismo, esses sim são os responsáveis em manter a utopia, a
capacidade de transformação, a revolução presente no imaginário de
muitos de nós.
abs
Letícia e Robson,
não tinha interesse em atingir nenhum grupo específico porque considero que esta romantização do passado está presente em amplos meios. No campo da esquerda ela acompanha o abandono das lutas e dos lutadores do presente. Em alguns casos, serve de base para a exploração de alunos e pessoas em situações várias. Também se tranforma numa espécie de capital simbólico, como se o fato de conhecer muito sobre lutas do passado fizesse de alguém melhor pessoa ou pessoa alheia às contradições sociais. O foco do texto é colocar que o aprendizado de alternativas se dá participando das lutas sociais e são os que fazem as lutas sociais que mantêm vivas as alternativas ao status quo. E nós não temos como saber quem serão e o que farão os que lutarão em 2015. Não temos como enquadrar em pré-requisitos estéticos, morais ou políticos toda uma gama de coisas que vão surgindo. É acompanhar os fatos. O olho tem que estar no futuro.
Quanto ao niilismo, devemos pensar que validade de crítica se constroí quando temos movimentos que surgem mais por ódio aos poderosos do que por amor aos excluídos, oprimidos e explorados. Fundamentar uma luta social somente no ódio é também condição para que não se veja os avanços e os feitos de muitos.
Quanto ao modelo de texto acho que livros como Lutando na Espanha, do Orwell, ou Memórias de um Autodidata no Brasil, do Tragtenberg, deveriam inspirar outras produções mais. Há toda uma experiência acumulada por muitos movimentos que não foi devidamente exposta.
Gostei do texto, uma ótima reflexão sobre uma verdade evidente.
A esquerda pendendo-se, para uma direita. Pois, as grandes conquistas são atribuidas sobre as autoridades. Que aproveitam da memoria fraca da nossa boçal população.
Não sei pq mas tenho a impressão q somos meio-irmão, não por causa dos nossos amigos em comum, mas por mais pessimista que eu seje, vc naum atingio meu pessimismo por ele esta pautado em outra discussão que não esta colocada por vc. E nem eu consigo negar o que vc nos diz, por mais que eu tente entrar na “onda da desconstrução da modernidade”. O chão é nossa referência principal, contudo eu sinto a necessidade de te responder, não neste momento, mas tenho certos pressentimentos ruins com relação as expectativas, que em alguma medida, é decorrência clara de seus apontamentos sobre os movimentos sociais, mas sei-la, eu ainda tenho medo de um certo “facismo do cotidiano”.