De Melila à Polónia, de Chipre às Canárias, milhares de pessoas tentam quotidianamente abandonar os seus locais de origem e atingir o continente europeu confrontando-se, em todo o lado, com a mesma estratégia repressiva, as mesmas barreiras e perseguições, o mesmo racismo e a mesma violência. Por Ricardo Noronha

Poder-se-ia pensar que estas pessoas que atravessam oceanos, desertos e montanhas, territórios hostis e países estranhos, seriam vítimas de mal entendidos ou de excessos policiais, mas não é esse o caso. As e os imigrantes que procuram atingir a Europa confrontam-se com práticas, objectivos e instrumentos escolhidos no seio das instituições europeias e aprovados por indivíduos eleitos por cidadãos europeus. Resumindo, confrontam-se com dispositivos de violência desumana e com uma repressão que nos habituámos a associar a estados ditatoriais, mas tudo isto foi decidido «democraticamente».

a-1Chama-se «Frontex» e é o conjunto dos dispositivos de controlo dos movimentos migratórios para a Europa. Inclui os barcos de guerra que patrulham o litoral, as vedações em Melila e Ceuta, os centros de detenção espalhados por toda a Europa, as viagens de deportação a bordo de aviões de companhias como a Ibéria e a Lufthansa. Mas inclui também as perseguições aos imigrantes por todo o continente, desde os que vão buscar os filhos à escola aos que são baleados pela polícia nos subúrbios das grandes metrópoles, as rusgas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a imposição de testes de ADN [DNA] para efeitos de reunificação familiar. Inclui já, também e em crescendo, as relações diplomáticas com os Estados vizinhos da UE, para que sejam estes a assumir os aspectos mais odiosos da repressão sobre os imigrantes, com a multiplicação de centros de detenção no Magrebe e a prática de genocídio em curso, em Marrocos, nos últimos anos.

Um controlo dos movimentos migratórios desta amplitude nunca poderia ser efectuado por métodos meramente legais e institucionais, pelo que a repressão do Estado se cruza aqui com a tolerância, quando não cooperação mais ou menos subterrânea, relativamente ao crime organizado, de maneira a garantir que os imigrantes que passam pelas malhas apertadas deste controlo permanecem apesar de tudo invisíveis nos países onde se fixam, ilegais e dependentes, sempre receosos da deportação ou de represálias sobre as suas famílias, e obedientes.

A propaganda xenófoba da extrema-direita, o racismo mais ou menos subtil das instituições (a começar pela escola e a acabar nas autarquias) e o sensacionalismo dos media  [da mídia] encarregam-se do resto – dão o tom e orientam as mentalidades no sentido de legitimar todo o tipo de medidas repressivas sobre os imigrantes.

Tudo isto que vai ocorrendo na Europa e nos seus confins merece, sem qualquer exagero, a classificação de uma guerra em curso. Uma guerra em que o inimigo é permanentemente construído e caracterizado enquanto possível ameaça à paz social, elemento de perturbação, dotado de uma irracionalidade que o distingue dos cidadãos europeus.

A «fronteira» foi desde sempre, em simultâneo, uma linha traçada num papel, um efectivo poder militar e repressivo, um discurso de legitimação da violência baseado na superioridade dos colonizadores sobre os colonizados, uma permanente construção de identidades colectivas capazes de suportar relações sociais profundamente injustas.

a-5Os antecedentes históricos ilustram a natureza da «fronteira», mas são insuficientes para explicar os processos em curso. Pela sua dimensão, o fenómeno migratório actual assume aspectos novos e até aqui desconhecidos. Por outro lado, as técnicas de controlo, condicionamento e repressão estão mais sofisticadas do que alguma vez acontecera, dando à «fronteira» uma materialidade que ela nunca havia tido. Essa materialidade parece incontornável, o seu braço tão longo quanto for necessário, o seu olhar capaz de tudo abarcar, a sua legimidade inquestionável.

Talvez por isso os discursos sobre imigração que procuram combater a xenofobia e o racismo tendem a incorporar a linguagem do adversário e a aceitar as fronteiras como coisas más mas necessárias. Falam de direitos a negociar, de integrações a promover, de excessos a corrigir. Da necessidade que a «Europa» tem de imigrantes para «fazer os trabalhos que os europeus já não querem fazer» e para «equilibrar a balança demográfica». De respeito pela sua «identidade e diferença». Da necessidade de uma «política de imigração», capaz de associar a razão de Estado à solidariedade e respeito para com os imigrantes. Esses discursos bem intencionados, de pessoas honestas e, em geral, bastante corajosas, contrastam no entanto de forma cada vez mais insuportável com a realidade de uma guerra aberta contra os imigrantes. Remetem cada luta para uma posição defensiva e de expectativa, na qual se procura reivindicar direitos, apelando aos governos para a necessidade e conveniência de introduzir um pouco de «espírito cristão» no tratamento dado aos imigrantes.

Aquilo que a evolução dos dispositivos repressivos agrupados sob a designação de «fronteira» tem vindo a demonstrar é precisamente um amplo consenso das forças políticas na União Europeia relativamente à necessidade de controlar o fluxo migratório e ilegalizar os movimentos da esmagadora maioria das pessoas que procura entrar no continente. A «fronteira» é o instrumento que lhes permite regular o fluxo consoante as necessidades de mão-de-obra das empresas e serviços, mas também o argumento que permite ampliar os poderes policiais e multiplicar os «estados de excepção», criando zonas onde a legalidade é suspensa e as relações de força plenamente assumidas. A «guerra ao terrorismo», com a multiplicação de possíveis «ameaças à segurança interna» e uma exploração científica do medo e da xenofobia contra os muçulmanos, veio reforçar essa evolução e caucionar a militarização da fronteira a sul, tornando o Mediterrâneo num cemitério ondulante.

Mas com o reforço das fronteiras e dos poderes do Estado, é toda a sociedade que se militariza. A «fronteira» não é apenas o limite do território nacional, mas também uma polícia especializada em controlar os imigrantes e uma burocracia especial para lidar com os «estrangeiros». É este o seu desenvolvimento lógico: a banalização da separação, no interior de cada país, entre cidadãos e excluídos da cidadania, a banalização da concessão de direitos diferentes consoante a proveniência, a banalização de um «apartheid» cuja natureza se torna inteiramente explícita com a negação de nacionalidade aos filhos dos imigrantes que nasceram já no país «de acolhimento». A «fronteira» é todo um programa e o seu funcionamento percorre e investe o conjunto das relações sociais. Sem ela nada se compreende acerca da natureza do racismo, da xenofobia, da repressão policial, da natureza do Estado.

A destruição, em Setembro, de um acampamento situado em Calais (França), onde se refugiavam imigrantes do Médio-Oriente [Oriente Médio] e da Ásia Central em trânsito para a Grã-Bretanha, foi mais um triste episódio que veio revelar o cinismo dos discursos piedosos acerca da exportação da democracia e da legitimidade da presença militar da NATO [OTAN] no Afeganistão.

a-2O campo, apelidado de «Selva», foi erguido na sequência do encerramento de um centro de acolhimento gerido pela Cruz Vermelha. Tendo ordenado esse encerramento em 2002, por servir de «chamariz» a imigrantes ilegais, o governo francês, através do seu ministro do Interior, veio agora justificar-se com o argumento de que não se trata de um campo humanitário, mas de um feudo de traficantes. A lógica é cristalina – trata-se de dizer a pessoas que não têm para onde ir que não podem ficar onde estão, criminalizando na prática a sua existência.

A «selva» era aquilo a que se pode chamar um «não-lugar», igual a outros tantos acampamentos provisórios, erguidos clandestinamente por imigrantes clandestinos ao longo dos seus percursos de êxodo.

Ao destrui-la, o governo francês (a pedido do governo britânico) procura fazer dos seus residentes não-pessoas, indesejáveis que se faz transitar de um lado para o outro sem que lhes seja reconhecido o direito a fixarem-se, mesmo que momentaneamente e apenas para pensar qual será o seu próximo passo. Persegue-os como faria a animais selvagens, consciente de que a concentração traz consigo a comunicação e a cooperação, o que forçosamente produz uma comunidade e transporta consigo o risco de uma resistência. Revela, uma vez mais, a plasticidade do que se convencionou denominar «fronteiras» e que assume abertamente crescentemente o carácter de um dispositivo repressivo que opera a toda a largura do território.

Quem tomou semelhante decisão não pretende, ao contrário do que afirma, estancar os movimentos migratórios e muito menos combater os intermediários que lucram com a sua proibição.

Não existe uma porta a fechar, de maneira a deixar de fora a multidão acampada em torno das muralhas da cidade. Essa imagem, que estrutura a agenda conservadora e xenófoba das forças que governam a Europa, é tão falsa como os argumentos de que se serve o governo francês. A pretensão de transformar um continente numa fortaleza – ficção distópica que anima o debate político sobre a imigração – limitar-se-á a acumular cadáveres e tragédias, numa guerra cujo fim ninguém descortina.

Não são os viajantes que atravessam as fronteiras, mas antes elas que se atravessam no seu caminho. «Outras selvas irão emergir», disse aos jornalistas do Times um jovem afegão de 16 anos. Arrisca-se a ter razão durante tanto tempo quanto durar este cruel estado de coisas. Não será seguramente a democracia de Karzai que o fará desistir.

Neste contexto, o combate contra este processo não se pode contentar em denunciar este ou aquele abuso, em reivindicar este ou aquele direito, em defender este ou aquele grupo de imigrantes. É necessário rejeitar a lógica que está no âmago da «fronteira»: a separação dos indivíduos segundo a soberania dos Estados. Combater a opressão dos imigrantes implica ter presente que essa separação é desejada e constantemente construída pelo poder. Promover, em sentido inverso, a comunicação e cooperação entre aqueles que as fronteiras separam, implica rejeitar a posição defensiva de quem reivindica e assumir a posição ofensiva de quem constrói colectivamente um percurso próprio, impondo a sua existência e a sua presença, independentemente das lógicas institucionais. Desarmar o Estado colectivamente, desmontar a lógica da sua actuação, invadir o espaço público, tomar as ruas e tornar visível aquilo que a «fronteira» pretende manter obscuro. Há uma guerra suja em curso contra os imigrantes na União Europeia. Nela, todos somos potenciais alvos, mas também combatentes irregulares. Nela, todos somos ilegais.

«Nem fronteiras nem nações. Nenhum humano é ilegal. Pela livre circulação das pessoas»
«Nem fronteiras nem nações. Nenhum humano é ilegal. Pela livre circulação das pessoas»

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo – um convite para todos agirmos sobre essa questão.

    Parabéns pelas reflexões aqui apresentadas. Abraços.

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