Sob o lema “A terra é para aqueles que a trabalham” e seguindo a linha do movimento camponês brasileiro, agricultores sem terra da região do Chaco fundaram em 2000 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Bolívia. Por Fernando Molina Cortes
Acerca do Movimento dos Sem Terra da Bolívia e acerca das suas lutas
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Após cinco horas subindo e descendo colinas do altiplano boliviano, chegamos a Machacamarca, a cerca de 3.500m de altitude. Durante a caminhada não pude articular palavras, pois mesmo falar é um esforço físico que requer uma porção extra de oxigênio. Algo que se torna escasso a essa altura. Nos arredores desta cidade rochosa, comprovo as limitadas divisas de íngremes e pequenos minifúndios. “Aqui é onde cultivamos”, diz Alberto, “nesta chácara de poucos metros quadrados que não dão nem para quatro batatas”. A Terra tem poucos centímetros de profundidade e já se pode ver as pedras do subsolo, que dificultam o crescimento de qualquer raiz. Estou diante do panorama habitual dos camponeses do altiplano boliviano: minifúndios em miniatura que são chamados de surcofundios, porque são tão pequenos que se dividem em sulcos (surcos). Com eles, mal se consegue alimentar uma família. Mas hoje Alberto está feliz, porque ele e seu grupo pretendem iniciar um assentamento ao norte do departamento de Cochabamba, a uma altitude menor e com um solo mais fértil.
Assim como Alberto, milhares de camponeses e camponesas têm deixado seus lugares de origem em busca de terras. Muitos deles se organizam para ocupar fazendas privadas ou públicas, assegurando-se sempre de que não estão sendo trabalhadas por ninguém.
O problema vem de longe.
Em 1952 iniciou-se um processo revolucionário na Bolívia, que trouxe consigo uma reforma agrária: os fazendeiros do altiplano boliviano e da região dos vales se viram obrigados a ceder suas terras para serem repartidas entre os camponeses.
Iniciou-se também um processo de planejamento de assentamentos no leste tropical, até então habitado somente por povos indígenas. No entanto, ambos os processos não foram realizados da melhor maneira possível. Por um lado, aqueles terrenos repartidos no altiplano e nos vales ficaram pequenos depois de várias gerações os herdarem; e, por outro lado, o planejamento dos assentamentos no Oriente foi claramente desigual pois, 91% das terras ficaram nas mãos de 7% de famílias empresárias, enquanto 9% das mesmas foram distribuídas entre 93% de famílias camponesas. Sob o lema “A terra é para aqueles que a trabalham” e seguindo a linha do movimento camponês brasileiro, agricultores sem terra da região do Chaco fundaram em 2000 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Bolívia (MST-B), cujo grosso está constituído de camponeses deslocados de seus territórios. São os filhos ou netos daqueles que receberam terras após a reforma agrária da década de 50, e que, após sucessivas partilhas por gerações, foram deixados com pouca terra para cultivar ou com terras muito desgastadas. Alguns deles vêm de cidades a que migraram em busca de uma vida melhor, mas, após a desintegração das empresas públicas realizadas pelos governos neoliberais dos anos 80 e 90, muitos perderam seus empregos. Outros foram empregados em condições de escravidão do sistema produtivo quase feudal dos grandes latifúndios.
O principal objetivo do MST-B é alcançar uma distribuição justa e equitativa da terra, como refere a lei de reforma agrária. Trata-se de milhares de camponeses que lutam para recuperar a soberania sobre seu território, que inclui terra e recursos naturais, a base que sustenta o poder das oligarquias herdadas do colonialismo. Para isso, utilizam a ação direta nas áreas que se encontram inexploradas. Antes de cada ocupação, identifica-se as grandes propriedades que não estão sendo utilizadas e que, portanto, violam a exigência constitucional de que a terra deve cumprir uma “função econômica ou social”. Dirigem-se primeiro ao Estado, solicitando que a terra lhes seja entregue com seu título correspondente para poder trabalhá-la. Depois de um mês ou dois de espera sem resposta institucional é quando ocorre a ocupação. No entanto, no presente, e provisoriamente, tem havido uma trégua às ocupações pela força, para comprovar se o governo põe em prática a sua vontade de fazer uma verdadeira reforma agrária e dar terra para quem a queira trabalhar. O MST-B tem levado o tema da propriedade da terra para o primeiro plano da agenda política nacional.
Para buscar apoio, os Sem-Terra se coordenam com outras organizações indígenas e camponesas e sobretudo com os agricultores da região onde vão ocupar. Na verdade, o MST-B se abre com uma atenção especial aos moradores de municípios circunvizinhos, que muitas vezes até se incorporam à organização, pois conhecem melhor o local e dispõem de um apoio familiar e logístico próximo. Algo fundamental até que se consolide um novo assentamento. “Primeiro temos que ver a área, saber para que a terra está apta, plantamos nossas sementes e buscamos onde há madeira”, diz Anastasio Serrudo, coordenador do MST-B na região de Santa Cruz. E sempre desde uma perspectiva agroecológica “valorizamos nossos recursos que estão no território, nem sequer agredimos o meio ambiente”, acrescenta Anastasio. “Então garantimos produtos saudáveis para nossas famílias”.
O funcionamento das comunidades do MST se dá através de assembléias e as decisões são tomadas de baixo para cima. Todos estão coordenados entre si de forma solidária. “As outras comunidades têm que ajudar nossos companheiros que estão em processo de assentamento”, ressalta Anastasio. “Este ano, enviamos alguns quilos de arroz de Ichilo a San José de Chiquitos, para garantir a alimentação dos nossos companheiros que estão se assentando. Levamos o que é produzido aqui no Oriente para as comunidades do Gran Chaco e fazemos trocas. Do Oriente levamos batatas e verduras. No Chaco tem um bom milho. Não praticamos comércio entre irmãos, nos apoiamos. Acreditamos que no MST somos uma família e temos que nos apoiar. Não pode ser que em uma comunidade se tenha e em outra se esteja em sofrimento”.
Foram consolidadas, até hoje, 25 comunidades em todo o país, todas elas com seu título correspondente. No total, cerca de 600.000 hectares serão trabalhados de forma coletiva. E para isso tem sido fundamental não apenas o apoio de várias organizações sociais, mas também do atual governo de Evo Morales, que, apesar de manter a legitimidade dos latifúndios de muitos fazendeiros, escreveu na sua chegada ao poder a lei de renovação do direito comunitário, um ordenamento que fomenta a propriedade coletiva das terras, impedindo que se comercialize com elas e forçando as instituições públicas a gerar dotações básicas para as novas comunidades.
Com essa perspectiva, os Sem-Terra já pensam em um futuro produtivo para suas chácaras. Saisari Silvestre, coordenador nacional, recorda que primeiro vai “assegurar a venda dos excedentes no local, mas quando houver condições e decidir-se exportar, o compromisso do MST é fazê-lo para países com necessidades alimentares, seja por desastres, guerras ou bloqueio”.
Veja também em Desinformémonos.
Tradução Passa Palavra.
Fotografias de Argeo.