Por Manolo
A esta altura, quem quer que haja lido as quatro partes anteriores deste ensaio, em especial as partes 3 e 4, já estará de saco cheio com os vaivéns políticos do Fórum Social Mundial (FSM). Foi enfadonho, mas necessário. Ao contrário do que pode parecer numa análise mais simples, as divergências internas no FSM – que o constroem tanto quanto as convergências – não se dão no vazio; remetem a uma complicada correlação de forças na geopolítica, capaz de confundir mesmo os analistas mais atentos. É dela que se começará a falar agora. (Mesmo sob o risco de dificultar a leitura, me vi forçado a empurrar para as notas de rodapé uma série de afirmações importantes e discussões centrais para o conteúdo deste ensaio, ou, do contrário, o texto ficaria muito disperso.)
De um lado, há a geopolítica tradicional, baseada na relação entre países. Neste campo há uma concordância generalizada quanto ao declínio da hegemonia dos EUA, embora os analistas não concordem quanto ao resultado do processo de recomposição das esferas internacionais de poder pelo qual estamos passando. Para ficar apenas em cinco opiniões, o atual momento da geopolítica resultaria em: (a) uma ordem global transnacionalizada, a princípio hegemonizada militarmente pelos EUA, em processo de transição para outra ordem global baseada em instituições transnacionais e numa série de controles sociais difusos[1]; (b) uma ordem global com hegemonia compartilhada entre grandes firmas transnacionais e novos órgãos supranacionais saídos das instituições internacionais atualmente existentes[2]; (c) uma quase total incerteza quanto aos rumos do mundo, especialmente após a crise econômica manifestada em setembro de 2008, mas tendo como perspectiva a divisão do mundo entre a China e os EUA[3]; ou (d) ou um colapso definitivo da economia capitalista, que pode durar até cinquenta anos, após o qual o futuro seria definido pelas novas alternativas estratégicas formuladas pela esquerda[4].
Além disso, no caso da América Latina, há o incontornável surgimento, em certos países (Bolívia, Equador, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai e Chile), de governos cuja base de sustentação é o mesmo movimento contra o “neoliberalismo” que teria dado origem ao movimento “anti-globalização”; este fato colocaria o Fórum Social Mundial contra a parede, pois tais governos seriam os parceiros ideais para consolidar e fortalecer os movimentos que participam dos Fóruns.
Estas seriam, em resumo, as pressões geopolíticas que impulsionam as principais divergências quanto ao caráter do FSM, mas ocultam um fato de impacto mais profundo. No atual panorama geopolítico, têm demonstrado maior força justamente aqueles sujeitos políticos cuja ação não se encontra limitada por quaisquer barreiras nacionais[5]; a discussão dos avanços e retrocessos do movimento anticapitalista internacional feita até o momento pretende compreender, a partir das lutas sociais, um setor da geopolítica geralmente negligenciado, que é o dos sujeitos da geopolítica internacional cujo status jurídico é indefinido. Neste campo, além do movimento anticapitalista internacional, é preciso compreender igualmente as ações das empresas transnacionais, contra quem este movimento luta de maneira mais imediata, e das ambíguas organizações não-governamentais internacionais, que, ao sabor das conjunturas e do conteúdo das lutas, ora apoiam, ora refreiam o movimento.
O primeiro destes sujeitos a ser estudado são as empresas transnacionais. Através dos chamados investimentos externos diretos (IEDs) – ou seja, da abertura de filiais ou do controle acionário de empresas autóctones – as transnacionais concorrem, embora ainda em caráter modesto, com os Estados no papel de capitalização de economias nacionais. Em especial nos casos em que estes IEDs são feitos em países com baixo desenvolvimento industrial e tecnológico, como resultado da fuga de certas empresas dos países onde encontraram alto grau de mobilização e articulação dos trabalhadores[6], as filiais das transnacionais, devido à sua integração com os circuitos internacionais do capital com alta produtividade e tecnologia, polarizam o desenvolvimento capitalista de um país, fazendo orbitar em torno de si empresas locais e um métier burocrático[7]. O volume dos investimentos externos diretos nas “economias em desenvolvimento” representou, em 2008, 36,57% do total global de IEDs, contra 56,69% do total de IEDs nas “economias desenvolvidas”[8]; apesar do contraste entre os volumes de investimento, mesmo baixos investimentos em países de PIB baixíssimo como Timor Leste, Gâmbia e Haiti representam um altíssimo grau de influência e controle sobre seus destinos.
A série Relatórios de Investimento Global, publicada pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)[9], é uma excelente fonte para acompanhar o desenvolvimento geopolítico das transnacionais. Segundo o Relatório de Investimento Global 2009 da UNCTAD, existiam em 2008 cerca de 82.000 empresas transnacionais no mundo, com cerca de 810.000 filiais fora de seus países de origem. Elas empregaram, neste ano, 77 milhões de pessoas – número quadruplicado desde 1982, que representa mais que o dobro da força de trabalho total de um país como a Alemanha[10]; ainda em 2008, foram responsáveis por cerca de um terço do total mundial de exportações de bens e serviços[11] – proporção que se mantém estável desde 1993. As cem maiores entre estas empresas transnacionais são donas de 4% do Produto Interno Bruto mundial. As empresas transnacionais cuja sede está em “países em desenvolvimento” demonstram a importância desta nova geopolítica: os ativos das cem maiores entre estas empresas – ou seja, os bens e direitos que uma empresa tem, da qual futuros benefícios econômicos podem ser obtidos – cresceram 29% entre 2006 e 2007, enquanto suas congêneres com sede em “países desenvolvidos” cresceram apenas 19%[12] – isto explica, em parte, o desenvolvimento das economias dos cinco países convidados a ampliar o G8 após a 33ª reunião do grupo em Heiligendamm (2007).
Além do impacto geopolítico das transnacionais revelado por estes dados, há de se considerar também as transações entre duas ou mais subsidiárias de uma mesma empresa, o chamado comércio intra–firma. Na medida em que as empresas transnacionalizam sua produção, espalhando filiais por todo o globo, o comércio entre elas passa a ser parte significante da movimentação financeira mundial. Estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta que, em 1999, este tipo de comércio representou 39,4% das importações e 36,2% das exportações dos EUA; no Japão, o mesmo comércio representou, em 1999, 14,8% das importações e 28.6% das exportações[13]. No MERCOSUL o comércio de exportação intra-firma nas subsidiárias de empresas transnacionais localizadas no Brasil e na Argentina saltou de 2,5% em 1987 para 32,3% em 1997, enquanto o comércio de importação intra-firma entre estas mesmas empresas cresceu de 6,2% em 1987 para 14,4% em 1997[14]. No Brasil, a série de Censos de capitais estrangeiros publicada de cinco em cinco anos pelo Banco Central indica que este tipo de comércio representou, em 1995, 20% das exportações e 17% das importações[15]; já em 2000, as empresas com participação estrangeira eram responsáveis por 60% das exportações e 56% das importações totais brasileiras, sendo que o comércio intra-firma respondeu por cerca de 38% das exportações totais brasileiras e por 33% das importações[16].
Por força deste comércio intra-firma, os países onde se localizam as subsidiárias destas empresas, assim como sua matriz, ficam “progressivamente atados a um nó cada vez mais apertado de relações de comércio, na base das quais há um fluxo intra-firma de partes e bens intermediários entre subsidiárias de EMNs [Empresas Multi-Nacionais]. Países que não são destino para EMNs estarão envolvidos neste comércio apenas na medida em que ofertem matérias-primas ou atuem como subcontratados de segundo e terceiro nível”[17].
Somadas à proliferação de estratégias de gestão como a subcontratação, a franchising, os contratos de gestão, os contratos de transferência de tecnologia, as alianças estratégias etc., além de inúmeros outros instrumentos de gestão e repressão no processo de trabalho – e também fora dele – capazes ao mesmo tempo de mobilizar as energias de amplos setores da população mundial e colocá-los sob a orientação de suas perspectivas estratégicas[18], estas informações demonstram a consolidação das empresas transnacionais como um sujeito geopolítico de peso. As análises tradicionais da esquerda sobre o imperialismo não dão conta deste caráter por limitações históricas ou teóricas[19], mas as empresas transnacionais são hoje sujeitos geopolíticos de fato, quando não de direito[20].
Contudo, as empresas transnacionais não são os únicos “radicais livres” no cenário geopolítico internacional. Há de considerar também seu braço esquerdo: as ONGs internacionais.
Leia as demais partes: [1] – [2] – [3] – [4] – [6] – [7]
Notas
[1]: Michael Hardt e Antonio Negri. Império. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[2]: João Bernardo. “Sete teses sobre a actual crise”. Textos de Economia, Florianópolis, v.11, n.2, jul./dez.2008, pp. 9-19.
[3]: Esta é a linha por trás de todos os artigos da Exame CEO nº 3, abr. 2009, desde os Amartya Sen e Jeremy Rifkin até os de Paul Kennedy e Jeremy Jennings.
[4]: Immanuel Wallerstein. O declínio do poder americano: os Estados Unidos em um mundo caótico. Trad. Elsa T. S. Vieira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004
[5]: “São poucos os países que demonstram, nesse momento, capacidade de efetuar políticas ativas de qualquer natureza. Há certo consenso em torno de que a nova dimensão dos mercados financeiros amplamente internacionalizados pode abrir caminhos para uma distinta etapa no processo de reprodução do capital em nível mundial. Admite-se, também, que nos novos quadros que emergem tende a se ampliar a complexidade dos processos decisórios, com especial relevo no âmbito do que se entende mais amplamente por política pública”. Nelson de Oliveira. Neocorporativismo e política pública: um estudo das novas configurações assumidas pelo Estado. São Paulo/Salvador: Loyola/Centro de Estudos e Ação Social, 2004, p. 232.
[6]: Beverly J. Silver. “Movimentos de trabalhadores e mobilidade do capital”. Em Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005.
[7]: João Bernardo. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, pp. 176-178.
[8]: United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD). World Investment Report 2009: transnational corporations , agricultural production and development. New York and Geneva: United Nations, 2009, pp. 247-250.
[9]: Disponível, em inglês, em http://www.unctad.org/Templates/Page.asp?intItemID=1485&lang=1.
[10]: United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD). World Investment Report 2009: transnational corporations , agricultural production and development. New York and Geneva: United Nations, 2009, p. 17.
[11]: Idem, p. 17.
[12]: Idem, pp. 22-23.
[13]: Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). “Intra-industry and intra-firm trade and the internationalisation of production”. OECD Economic Outlook, nº 71, jun. 2002, p. 164. Disponível em http://www.oecd.org/dataoecd/6/18/2752923.pdf.
[14]: Mariano Laplane e Fernando Sarti. “Investimento direto estrangeiro e impacto na balança comercial dos anos 90”. Texto para Discussão IPEA, nº 269, Brasília, fev. 1999, p. 43.
[15]: Banco Central do Brasil. “Alguns resultados do Censo”. Censo de capitais estrangeiros no Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 1995. Disponível em http://www.bcb.gov.br/rex/Censo1995/Port/980527/result.asp?idpai=censo1995p.
[16]: Banco Central do Brasil. Censo de capitais estrangeiros no Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2000. Disponível em http://www.bcb.gov.br/?CENSO2000P.
[17]: François Chesnais. “Globalisation, world oligopoly and some of their implications”. Capítulo do livro organizado por Marc Hubert, The impact of globalisation on Europe’s firms and industries. London: Pinter, 1993. Traduzido para o português por José Ricardo Fucidji e disponibilizado na internet em http://www.fclar.unesp.br/eco/es-op2006.doc.
[18]: João Bernardo. Democracia totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
[19]: Cf., mais especificamente, as análises de Karl Marx (“A teoria moderna da colonização”. Em O capital: crítica da economia política, vol. 1. Trad. Reginaldo Sant’anna. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), Mikhail Bakunin (Estatismo e anarquia. Trad. Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário, 2003), Elisée Réclus (The earth and its inhabitants. New York: D. Appleton and Co., 1892; L’homme et la terre. Paris: Librarie Universelle, 1905-1908), Piotr Kropotkin (“A descentralização das indústrias”. Em Kropotkin – textos escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1987), Rosa Luxemburgo (A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do imperialismo. 2.ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985; A crise da social-democracia. Lisboa: Presença, 1974), John Atkins Hobson (Imperialism: a study. New York: Cosimo Classics, 2005) e Vladimir Ilich Lenin (O imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1979).
[20]: Embora Mário Pedrosa já houvesse apontado esta contradição entre a inegável existência das corporações como sujeitos sociais e políticos (“órgãos supremos do imperialismo”, em sua visão) e a sua difícil caracterização como sujeitos jurídicos em A opção imperialista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966), de lá para cá a indefinição continua; a julgar pela enfadonha polêmica no Direito Internacional Público sobre a natureza jurídica das empresas transnacionais como sujeitos internacionais de Direito, tal como compendiada por Celso D. de Albuquerque Melo (Curso de Direito Internacional Público, vol. 1. 15.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 568-574), esta indefinição continuará a facilitar a ação das transnacionais pela absoluta incapacidade de controlá-las somente através de instrumentos jurídicos e pela dificuldade de se construir mobilizações políticas permanentes contra suas ações internacionalmente integradas.