Centro de Estudos Sociais: Não apaguem a memória!

Seminário Lusófono

QUE FAZER COM ESTAS MEMÓRIAS?

Local: Centro de Estudos Sociais-Lisboa

Data: 5 e 6 de Março de 2010

Programa

Sexta-feira, 5 de Março

9:30 – 10:30| Abertura – Porquê um Seminário Lusófono sobre Tortura e Memória?

José Manuel Pureza, Representante do Centro de Estudos Sociais – Lisboa,

Raimundo Narciso, Presidente da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória,

Cecilia Coimbra*, Representante do Movimento Tortura Nunca Mais (Brasil),

Simonetta Luz Afonso, Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, CES-Lx

10:30 – 12:00| Projecção do filme “48”, de Susana Sousa Dias

12:00 – 12:30| Comentário pelo Dr. Afonso Albuquerque (Médico psiquiatra, autor de um livro sobre o impacto da tortura sobre presos políticos portugueses)

12:30 – 13:30| Debate sobre o filme, com a presença da realizadora Susana Sousa Dias

13:30 – 15:00| Pausa para almoço

15:00 – 16:30| Projecção do filme “Memória para uso diário”, de Beth Formaggini

16:30 – 17:30 |Comentário pelo Dr. Carlos Martin Beristain (Médico especialista em Saúde Mental, Universidade de Deusto, Bilbao) e por Alípio de Freitas (português, preso e torturado no Brasil.)

17:30 – 18:30 | Debate sobre o filme, com a presença da realizadora

Sábado, 6 de Março


10:00 – 11:30|
Projecção do filme “ Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”, de Diana Andringa

11:30 – 12:00 –  Comentário por Miguel Cardina, historiador, investigador do CES e Víctor Barros, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20).

12:00 – 13:00| Debate sobre o filme, com a presença da realizadora

13:00 – 13:30 | Sessão de encerramento: Como fazer da memória partilhada da tortura uma alavanca pela defesa da Cooperação e dos Direitos Humanos?, Secretário Executivo da CPLP, Eng. Domingos Simões Pereira*.

* A confirmar

> Sobre os filmes:

48, Susana de Sousa Dias

São rostos. E vozes. Apenas isso. Minimalista. Susana Sousa Dias leva-nos a olhar para as fotografias de presos dos arquivos da Pide e a ouvir as memórias que essas fotografias despertam neles tantos anos depois.

São 16 imagens para contar 48 anos de fascismo – tudo fala da sociedade, os rostos, as roupas, a forma de estar. Não estão identificados por nomes nem idades porque valem por todos os presos políticos da ditadura. “Todas as fotografias têm uma história por detrás. O que me interessava era perceber o que a foto nos está a mostrar e o que nos está a esconder”. Um rosto de mulher com um sorriso aberto em pleno arquivo da Pide, por exemplo, o que é que nos diz? É a própria que, em voz off, nos explica como aquela imagem, aquele riso inconsciente no meio de um lugar de sofrimento, a perseguiu toda a vida.

E o rosto daquele homem de cabelo claro? Por detrás dessa imagem estão já dias da tortura do sono – mas isso só ele próprio nos pode dizer. E aquela mulher que nos olha fixamente até a imagem se tornar quase abstracta, como uma pintura, e depois desaparecer no negro, apesar de os olhos parecerem continuar lá? “Há momentos em que olhamos para eles, outros em que eles olham para nós e outros em que olhamos para eles através do olhar deles”.

“O filme procura estender aquele momento, uma fracção de segundo, em que eles enfrentam o opositor, olhos nos olhos”, diz a realizadora. A expressão que têm, esse olhar de desafio, é o último espaço de liberdade que têm. “Nunca lhes daria o gosto de me verem com cara de sofrimento”, diz uma das vozes.

Susana achou que para contar toda a história das vítimas da Pide tinha que incluir também os africanos presos pela política política, mas como os arquivos de África desapareceram não há imagens. Por isso são planos negros, apenas com vozes, e os espectadores presos a essas vozes que falam de tortura e de sofrimento.

Memória Para Uso Diário,  de Beth Formaggini (Brasil, 2007)
por Rodrigo de Oliveira

Arquivos, como antes eram porões

Memória Para Uso Diário, e o nome não podia ser melhor. Mais que um filme para forçar o acesso emotivo a um passado coletivo submerso e dar voz a vítimas que se tornaram heróis, este é um projeto lindamente pragmático em sua militância: entre as diversas calhordices cometidas contra os revolucionários antiditadura militar e suas famílias, a mais grave foi certamente o apagamento da dimensão visível de sua história, e se há reparação possível, ela só pode se dar pelo “uso diário” do que sobrou desta gente – sua imagem, seus nomes, os signos associados a eles.

Em algum momento do filme, vemos uma parente de um dos militantes assassinados pelo regime falar sobre a perversidade embutida na invenção da expressão “desaparecido político”. É contra esse apagamento que Beth Formaggini investe, e o faz pelo desmascaramento, antes de tudo. A ditadura, como o cidadão brasileiro médio a conheceu, era a das imagens icônicas e da propaganda nacionalista institucional, largamente apresentada no prólogo do filme: não apenas os diversos cartazes e slogans repetidos à exaustão pelo regime, mas também a ostentação da caça e prisão dos vários “terroristas”, alardeadas nos jornais e na tevê como se aquele fosse um ambiente de faroeste, um “procura-se vivo ou morto” onde o rosto de um perseguido só tinha serventia até que ele fosse capturado – depois disso, o limbo, a morte secreta e o desaparecimento.

Uso diário é a experiência cotidiana desta memória, a ação corriqueira que nem por isso deixa de carregar todos os sentidos emocionais e políticos de que está preenchida. Numa das seqüências mais impressionantes do filme (e impressionante justamente por mostrar o caráter habitual da lembrança, e não o grande alarde profundo e pomposo que projetos dessa natureza costumam ter) acompanhamos a visita de Romildo a um cemitério no subúrbio carioca onde se suspeita que seu irmão tenha sido enterrado. Com a ajuda de uma amiga e também ex-militante, o homem começa a listar, de cor e com nome completo, dezenas de pessoas que faziam parte do mesmo aparelho de guerrilha do morto, montando um quebra-cabeça de identidades perdidas que surgem com a naturalidade de quem fala de amigos de infância. Romildo e a amiga não conheceram a maior parte daquelas pessoas em vida, e a única ligação que mantém com elas é a coincidência de terem participado junto com o irmão da luta armada. A memória é superficial e posterior, como a nossa, espectatorial, mas diferente de nós (e do filme), um nome dito é mais que a estampa de uma época, ele é o próprio reaparecimento, a alcunha perversa se desfazendo em nome do presente destas pessoas, mesmo que apenas oral e corriqueiro.

É assim, no limite de sua própria inviabilidade, que Memória Para Uso Diário vai se equilibrando. Porque há algo na sobrevivência dessa lembrança que está marcado por um irremediável senso de história íntima que nem todo o caráter coletivo da luta revolucionária pôde superar. Quando Tânia Roque visita a escola que leva o nome de seu marido morto pela polícia da ditadura, vemos uma celebração da figura de Lincoln Bicalho Roque que é marcada pelo reconhecimento emocionado para a família, enquanto nunca perde a sensação de valorização de uma ausência e de um vazio para os pequenos alunos e suas professoras. As crianças carregam faixas com o nome do militante, cantam enfileiradas o hino da escola, que exalta sua luta, fazem perguntas no microfone sobre quem foi e o que fazia aquele homem, mas, no fundo, nunca assumem estes discursos e essa celebração como sua propriamente.

Ponto de não-retorno definitivo é quando o filme leva um grupo de familiares dos desaparecidos pelas ruas de um bairro carioca para buscar endereços e placas que homenageiem ex-guerrilheiros (encontram no caminho, por exemplo, uma Praça Lamarca, ironicamente abandonada ao capim pelo poder público). É quando a mãe de Marcos Nonato da Fonseca encontra a rua com o nome do filho, mas, com uma placa enferrujada que impede o reconhecimento do nome, recorre a alguns dos moradores curiosos do lugar para que lhe dêem uma conta de luz que comprove a homenagem. Com a conta na mão, a mulher se dirige à câmera e mostra orgulhosa o nome do filho, enquanto um abismo se cria com o fundo do quadro, onde os moradores ainda não sabem direito do que se trata aquele fuzuê todo, e talvez nunca venham a saber ou se interessar. Não há chamado à memória e ao exercício da reparação que Beth Formaggini e o Grupo Tortura Nunca Mais (financiadores institucionais do filme) possam fazer sem que se esbarre neste abismo. A clandestinidade é a única marca da luta antiditadura que resistiu ao tempo, porque essa memória também é clandestina e, independente dos esforços de ambas as partes, ainda inviável.

Em Memória Para Uso Diário utiliza-se a estratégia do nome completo e do retrato 3×4 das vítimas, reforçados pelos letreiros finais que listam todos os ditos “desaparecidos políticos” do país, e ainda assim esta é apenas uma personificação de segunda ordem. É uma fissura da própria sociedade brasileira e sua incapacidade de lidar efetivamente com o período militar que acaba se espalhando para o cinema, do qual o filme de Formaggini acaba não deixando de ser um louvável retorno à regra. Não houve julgamento dos torturadores, não se prenderam os responsáveis pelas mortes, e as vítimas vão sendo indenizadas na surdina, em processos lentos e financeiramente desproporcionais. Do mesmo modo, este cinema brasileiro que fala da ditadura nunca conseguiu nem sequer levar a cabo a máxima godardiana de que as vítimas são sempre filmadas de frente, enquanto os carrascos aparecem sempre de costas.

Este acordo tácito pelo esquecimento torna mesmo a filmagem das vítimas um problema – e não só porque, como neste caso, o que resta delas é um retrato ou uma placa de rua. Mais do que a forçosa relação entre os desaparecidos dos 60 e os desaparecidos dos 2000, que o filme faz ao propagandear as ações do Grupo Tortura Nunca Mais contra o abuso policial sobre jovens da periferia e das favelas cariocas, o que Memória Para Uso Diário faz de realmente novo e instigante sobre esta relação do país com seu passado é filmar não os personagens da tragédia, mas seu depositário. Em poucos planos dos arquivos públicos nacionais onde uma viúva tenta buscar provas de que seu marido foi morto pelo Estado e, portanto, merece uma pensão do governo, vemos finalmente materializado todo o horror da desimportância que tanto a ONG como o filme tentam combater. Confusos, sujos, improvisados, escuros, os arquivos são o retrato mais fiel da falta de retrato: pastas e mais pastas com nome completo e eventualmente fotos dos mortos e desaparecidos, sem que isso possa garantir que as histórias guardadas ali possam um dia ser verdadeiramente ouvidas e revisitadas.

Abril de 2009 [email protected]

Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta

Diana Andringa

Chamavam-lhe “o Campo da Morte Lenta”. Os críticos, naturalmente. Que as autoridades, essas, chamaram-lhe primeiro, entre 1936 e 1954, quando os presos eram portugueses, “Colónia Penal de Cabo Verde” e, depois, quando reabriu em 1961 para nele serem internados os militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné, “Campo de Trabalho de Chão Bom”.

Trinta e dois portugueses,  dois angolanos, dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência do que ali tinham passado. Famílias houve que, sem nada saberem o destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias funebres.

“Ali é só deixar de pensar. Porque se não morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos.” A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974.

No 35º aniversário desse dia, a convite do presidente da República de Cabo Verde, Pedro Verona Pires, os sobreviventes reencontraram-se para um Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal.

“Tarrafal: memórias do Campo da Morte Lenta” resultou desse reencontro. Durante os dias em que os antigos presos voltaram ao Tarrafal, gravámos entrevista após entrevista, registando as suas recordações. Trinta e dois presos, desde o português Emundo Pedro, um dos que o estreou, em 1936, aos angolanos e cabo-verdianos que foram os últimos a deixá-lo, no 1º de Maio de 1974, passando pelos guineenses que, ali cegados em Setembro de 62, saíram em 64 uns, em 69 os restantes. Um guarda, Joaquim Lopes, cabo-verdiano e convertido ao PAIGC. Uma das raras pessoas que testemunhou a vida no Tarrafal desde a sua abertura ao seu encerramento, Eulália Fernandes de Andrade, mais conhecida por D. Beba.

É um documentário feito à base de depoimentos e filmado quase sempre no interor do campo, afinal, o espaço em que os presos se moviam. Entre as raríssimas excepções, o cemitério, onde acompanhamos a homenagem dos sobreviventes aos que ali ficaram. Vozes, caras expressivas contra fundo de cela. Alguns objectos surpreendentes: as calças rasgadas  pelo chicote e puída pelo chão prisional, a planta do campo desenhada num osso de vaca, a bengala que testemunha o resultado da tortura. A alegria de se verem lembrados em duas exposições nas celas que tinham ocupado.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here