36 anos depois, no Porto

Uma no cravo, outra na guerra


Assim que terminou o fogo de artifício nos céus sobre a câmara do Porto, no terreiro em frente soou uma invasora voz masculina: “Calma! Calma! Somos tropas amigas! Servimos no exército da NATO e matamos para vossa segurança! Assassinamos crianças de longe para dar prosperidade às tuas! Matamos quem for preciso para garantir que nunca faltará gasolina ao teu carro...” Os olhos ao alto de quem, nesses primeiros minutos do dia 25 de Abril, 36 anos depois de um outro que prometia a Liberdade, andava pela baixa descobriram então que a voz era reproduzida através de um megafone detido por um imponente oficial liderando um séquito de soldados de penico camuflado na cabeça. Pairou a surpresa, enquanto os ouvidos se concentravam no discurso. Soltaram-se risos e as mãos abriram-se para receber a informação que completava o desfile.


A ideia nunca foi brincar aos soldados ou às guerras. Bem pelo contrário. A paródia apenas pretendia chamar a atenção para um assunto muito sério, para o absurdo que qualquer guerra representa e para o absurdo da existência de um exército supostamente de paz, como o da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte), do qual Portugal faz parte e que acolherá em Novembro, em Lisboa, uma cimeira decisiva para as suas futuras intervenções militares. A iniciativa foi preparada e realizada por elementos da PAGAN, plataforma anti-guerra, anti-NATO.


A data para a paródia não foi, obviamente, escolhida ao acaso, porque 36 anos depois é bom não esquecer que a razão fundamental para aquele dia de Abril foi a recusa generalizada de continuar a enviar soldados para uma guerra injusta e ilegal. Dissemos então nunca mais às guerras de agressão, às ocupações de territórios de outros, à conquista militar de matérias-primas e outras riquezas. E de repente, 36 anos depois, damos com o mesmo país a aumentar o seu contingente de tropas para o conflito militar no Afeganistão, um país que nunca agrediu nenhuma parte do mundo ocidental e que se mantém há nove anos sob ocupação da NATO.


Verdades escamoteadas e denunciadas na informação distribuída em forma de panfletos, enquanto o discurso prosseguia ao megafone: “Mataremos todos os que o teu consumo inconsciente condena à miséria e à procura desesperada duma vida melhor, longe da casa que ajudas a tornar inabitável. Mataremos todos os que tentarem fugir dos extremos climáticos a que o teu nível de vida os condena. Mataremos qualquer tentativa de alterar esta mistura perfeita de opulência e desgraça. Ocuparemos e destruiremos qualquer país que não actue em conformidade com os nossos interesses, pois nós somos os bons. Por tudo isto, estaremos em Lisboa, em Novembro, para decidirmos o futuro do planeta. Seremos os donos e senhores de toda a vida na terra...com a vossa ajuda!  Mantenham-se, pois, serenos e apáticos. Só assim poderemos concretizar os nossos objectivos. Vida longa à guerra. Vida longa à NATO.”


O discurso foi reproduzido várias vezes, já não junto ao edifício da câmara municipal mas pelas ruas da nova movida do Porto, onde uma juventude sedenta de distracção ultrapassava em muito o número dos que desceram à baixa para comemorar a revolução dos cravos.


Na manhã seguinte foi preciso reproduzir mais panfletos, a pensar na tarde, no regresso à Avenida dos Aliados e na banca de informação da PAGAN, entre a qual constava a petição que visa a retirada do Afeganistão dos soldados portugueses. O Sol brilhou mas continuaram a ser poucos os que saíram à rua. O exército da noite anterior despiu as fardas e personificou vítimas mortais tombadas após uma aparente explosão, no intervalo de duas músicas de quem, a meio da tarde, no palco montado no terreiro, animava a malta. A representação durou curtos segundos mas voltou a surpreender quem estava próximo. E mais panfletos foram distribuídos, explicando, nomeadamente, porque somos contra a guerra. Porque matar um homem em defesa de uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem. Porque a guerra só é possível porque é lucrativa. Duas razões apenas que aqui ficam registadas, entre 26 elencadas.


Impossível de deixar de registar, infelizmente não fotografada, foi a saudação em fogo preso que antecedeu o fogo de artifício logo pela madrugada, em letras condizentes com as cores da bandeira portuguesa: 25 DE ABRIL SEMPE. Não, a ausência do R não é gralha de quem agora escreve. Curiosamente, voltaram a esquecer o mesmo R que, há anos, nas comemorações oficiais de Abril, sob o governo de Durão Barroso, desapareceu da palavra Revolução e que, por coincidência, corresponde às duas iniciais do nome de quem comanda os destinos do Porto. Como nos deixamos enganar… 36 anos depois.

PAGAN – Plataforma Anti-Guerra, Anti-Nato

http://antinatoportugal.wordpress.com/.

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