Depois da morte aparente do projecto neoliberal personificado pelo ex-presidente Mbeki, Trevor Manuel, o “eterno” e poderoso ministro das Finanças desde o fim do apartheid, foi mantido pelo novo presidente Jacob Zuma com o fim de preparar uma rota de colisão com a sua principal base de apoio interna, os sindicalistas e os comunistas. Por Patrick Bond [*]
3. Das bolhas rebentadas às lutas contra a política económica
Com este tipo frágil de crescimento económico, submetido a uma enorme fuga de capitais, não é de admirar que, na segunda semana de Outubro de 2008, o mercado bolsista de Joanesburgo tenha desabado 10% (no pior dia, esvaíram-se em fumo US$35 mil milhões [35 bilhões]) e que o valor da moeda tenha caído 9%, enquanto na segunda semana caiu mais 10%. E não nos deixemos induzir em erro com a aparente morte do projecto neoliberal sul-africano em Setembro de 2008, personificada pelo ex-presidente Thabo Mbeki, cuja gestão pró-empresarial foi a causa do seu afastamento expeditivo do poder. O líder “populista” do partido do governo, Jacob Zuma, tinha o firme propósito não só de manter [Trevor] Manuel [o ministro das Finanças, actualmente ministro de Estado que preside à Comissão Nacional de Planeamento] por tanto tempo quanto fosse possível, mas também de preparar uma rota de colisão com a sua principal base de apoio interna, os sindicalistas e os comunistas. Tal como disse Zuma na Câmara de Comércio estadunidense em Novembro de 2008, “Orgulhamo-nos da nossa disciplina fiscal, da nossa sólida gestão macro-económica e, em geral, da forma como a nossa economia tem sido gerida. Isso requer continuidade” (Chilwane 2008).
Alguns dias antes, respondendo a uma pergunta do Financial Times (Lapper e Burgis 2008) acerca do impacto da crise mundial na África do Sul, Manuel aconselhara os seus eleitores a apertarem os cintos:
Ao mesmo tempo, as negociações conduzidas pelo Fundo Monetário Internacional, segundo o Artigo IV, com África do Sul vieram confirmar as pressões externas. Por ironia, o director daquela instituição, Dominique Strauss-Kahn (2008), proclamou nesse mesmo mês que agora o FMI apoiava um estímulo orçamental de 2% “onde quer que isso seja possível. Onde quer que haja alguma possibilidade de sustentar a situação de endividamento. Onde quer que a inflação seja suficientemente baixa para não haver alguns riscos de recaída inflacionária, esse esforço tem de ser feito.” Pretória tinha condições para obter esse beneplácito de tipo keynesiano, mas, pelo contrário, segundo a equipa do FMI (International Monetary Fund 2008, 3-12) que preparou o relatório das negociações anuais segundo o Artigo IV, Manuel deveria:
• obter um excedente orçamentário, isto é, “um aumento da poupança pública que permita nos próximos anos reduzir a zero o endividamento estrutural do sector público”, mas tendo presente que “as reduções dos impostos sobre os lucros das empresas poderiam incentivar o crescimento”;
• optar pela privatização nas “necessidades infra-estruturais e sociais”, incluindo a electricidade e os transportes, “apoiando-nos mais amplamente em parcerias público-privadas”;
• manter os actuais limites da inflação (ou seja, entre os 3 e os 6%, apesar de a inflação em 2008 ter ultrapassado 12%) e “subir ainda mais as taxas de juro se voltarem a verificar-se crises de oferta ou se as pressões da procura interna não acalmarem”;
• “abrir a economia a uma maior concorrência internacional”, suprimindo protecções contra a volatilidade económica internacional, em particular “uma maior liberalização e simplificação do sistema comercial”; e
• suprimir direitos laborais no mercado de trabalho, incluindo a “indexação salarial retroactiva” destinada a proteger da inflação.
É certo que Manuel não seguiu este conselho. A ala esquerda da Aliança (o Partido Comunista da África do Sul e o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos) é suficientemente poderosa para impedi-lo, se ele tentasse aplicar qualquer uma das cinco medidas, sobretudo antes das eleições gerais de 2009. Efectivamente, tal como sucedeu em todo o Ocidente, o banco central sul-africano deparou com fortes pressões para baixar as taxas de juro – 5% desde o fim de 2008 até meados de 2009 – e a taxa primária real caiu para a ordem de 2%, quando era de 15% uma década antes.
Surpreendentemente, o acordo com o FMI em 2009, no âmbito do Artigo IV, teve um tom bem diferente ao admitir que a estratégia da África do Sul era aceitável:
A postura fiscal expansionista é adequada, dadas as débeis perspectivas económicas, e estabelece um equilíbrio correcto entre o apoio à procura e a preservação da sustentabilidade a médio prazo. Se a produção for inferior à prevista pelos responsáveis, então dever-se-á permitir a acção dos estabilizadores automáticos em 2009-2010 e em 2010-2011 […] A orientação politica monetária foi a apropriada. A margem de facilitação talvez esteja esgotada se, tal como as autoridades pretendem, a inflação caia em 2010 até aos limites desejados (FMI 2009, 1).
Apesar de Manuel ter afirmado há pouco tempo (Fevereiro de 2009) que essas medidas evitariam a recessão, facto é que isso foi tristemente desmentido em Maio, quando os dados oficiais mostraram um declínio trimestral de 6,4% do Produto Interno Bruto, o pior desde os protestos anti-apartheid de 1984, quando o preço do ouro caiu e as sanções foram agravadas. Já no fim de 2008 se tornara visível que os trabalhadores iriam ter de apertar o cinto, com uma redução de 67% da média de horas de trabalho por operário fabril, o pior decréscimo desde 1970. Calcula-se que a economia tenha perdido um milhão de postos de trabalho em 2009, sobretudo na indústria e na mineração. Só em Janeiro de 2009 assistiu-se a uma queda de 36% nas vendas de carros novos e a uma redução de 50% da produção, a pior de sempre, segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Automóveis. O esperado aumento da actividade portuária também resultou no seu inverso, com uma queda de 29%, em termos anuais, no começo de 2009.
A perda de casas [por falta de pagamento das hipotecas] aumentou 52% no início de 2009, se comparado com o mesmo momento do ano anterior. A queda do primeiro trimestre de 2009 foi, no entanto, mitigada pela indústria da construção civil, que cresceu 9,4% graças aos colossais investimentos estatais em infra-estruturas: os estádios do Campeonato [Copa] do Mundo de 2010 (que ultrapassaram largamente o orçamento e que se prevê que não conseguirão suportar os custos [de manutenção] a seguir aos jogos); um serviço de combóios [trens] rápidos entre Joanesburgo e Pretória, destinado à elite; um complexo industrial (Coega) que, apesar de ser um fracasso, tem recebido generosos subsídios; obras de expansão em portos, aeroportos, estradas e oleodutos; uma enorme central eléctrica a carvão; e mega-barragens hidroeléctricas. Mas, se exceptuarmos estas grandes obras, o número de projectos de construção registados em 2008 já caíra 40% em relação a 2007.
[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.
Artigo inédito em inglês, tradução do Passa Palavra.
Referências
Chilwane, L. (2008) Economic policies to remain, Zuma tells US business. Business Day, 27 November.
International Monetary Fund (2008) IMF Executive Board Concludes Article IV Consultation with South Africa, Public Information Notice (PIN) No. 08/137, October, Washington.
International Monetary Fund (2009) IMF Executive Board Concludes Article IV Consultation with South Africa, Public Information Notice (PIN) No. 09/273, September, Washington.
Lapper, T. e T.Burgis (2008) S Africans urged to beware left turn. Financial Times, 27 de Outubro.
Strauss-Kahn, D. (2008) Transcript of a Press Briefing by the IMF Managing Director, Washington, 17 de Novembro,http://www.imf.org.