Este processo mostra que a eclosão de movimentos autônomos de base é plenamente possível. Mas os trabalhadores têm um grande desafio: lutar contra o patrão e ao mesmo tempo contra as burocracias sindicais. Por Professor Juka
Os servidores municipais de Suzano, cidade do alto Tietê próxima a São Paulo, estiveram em greve nos meados de abril – o que incluiu professores, saúde e outros setores (apenas a guarda municipal não parou, pois teve um aumento de quase 1005 reais, o que mostra que se valoriza mais a repressão do que qualquer outro serviço público).
Tal luta foi fruto de um estouro de descontentamento dos trabalhadores, que há mais de um ano arrastam discussões sem resultados com a Prefeitura, sobre um plano de carreira. Há cinco anos não recebem nenhum aumento e as perdas salariais ultrapassam os 40%.
Recentemente, a Prefeitura simulou uma consulta meramente formal aos servidores (apenas com os funcionários da educação; os demais servidores nem sequer viram o seu documento de plano de carreira), e depois tratou de impor a partir de cima um projeto de plano de carreira que retira direitos trabalhistas, estabelece uma meritocracia com bônus e avaliação de desempenho, e nada estabelece sobre aumentos salariais. Tal fato entrava em gritante contradição com o discurso de gestão democrática da Prefeitura, fato que os servidores perceberam, e foi decisivo para a greve.
Os servidores, ao receberem tal plano, ficaram indignados, ainda mais porque o Sindicato dos Servidores Municipais, controlado pela Força Sindical, nada fazia de concreto, demonstrando na verdade que há acordos com a Prefeitura.
Após o prefeito Marcelo Cândido (PT) declarar na mídia que “os servidores não terão coragem de fazer greve”, e apesar de o sindicato ter uma postura frouxa e de, antes mesmo de a greve começar, ocorrerem perseguições e ameaças de retaliação da Prefeitura contra os trabalhadores que mobilizavam o movimento, os servidores de fato entraram em greve.
O aspecto mais interessante da greve, e que a mídia oficial não mostrou, não estava na pauta que os servidores reivindicavam, mas no caráter da greve e sua forma de organização. Ante um sindicato burocrático, os servidores criaram uma Comissão de Mobilização, que obrigou o sindicato a tomar posturas e arrastou todo o processo, desde a mobilização até a produção de panfletos. Tal comissão teve a participação de trabalhadores da base, que acabaram assumindo a dianteira da luta, e procurou assembléias mais abertas e horizontais, nas quais muitas vezes a base atropelou a burocracia sindical.
A greve foi iniciada com uma manifestação em 12 de Abril, de pelo menos 2 mil servidores, na praça central, depois percorrendo as ruas de Suzano (isto num total de cinco mil servidores). Os servidores ocuparam as ruas, contrariando a vontade do sindicato, que queria confiná-los a meia-faixa sem interromper o trânsito, e marcharam por várias horas, inclusive protestando na porta de vários prédios da gestão municipal, para o desespero dos burocratas. Quando o sindicato tentou tirar os servidores da rua, uma trabalhadora gritou: “Eu marcho por onde eu quiser, ninguém manda em mim!”. E os servidores continuaram nas ruas.
Os servidores e a comissão garantiram que o microfone circulasse e fosse acessível a todos (isto ocorria nos primeiros dias da greve; mas, depois das truculências sindicais, já não ocorria mais) e muitos trabalhadores falaram, contrariando o sindicato, que chegou a mandar seus seguranças empurrarem pessoas, o que gerou indignação dos servidores. Havia no ato batuques e outras participações mais amplas de base presentes, como a aparição de alguns malabaristas.
Muitos dos servidores sabem que é ano eleitoral e que o grupo do deputado estadual Estevam Galvão (antigo prefeito, ligado ao DEM) pode tentar se beneficiar e se apropriar da greve com finalidade de disputa de votos com o PT. Mas igualmente o PT, que a nível estadual soube, através da APEOESP, pressionar o governo de José Serra com uma greve contra a meritocracia, bônus e avaliação de desempenho, está implementando a nível municipal as mesmas políticas – aliás, política nacional implementada pelo MEC sobre a educação dos municípios. A Prefeitura agiu com truculência ao ameaçar servidores que entraram no movimento. A secretária municipal de Educação (que fez mestrado estudando movimento sindical do funcionalismo público) ameaçou professores caso aderissem à greve. Os grupos políticos, rivais nos discursos ideológicos e campanhas, demonstraram confluir para o mesmo tipo de práticas gestoriais e autoritárias, quando no poder. Se, por um lado, a disputa política em torno da Prefeitura e das eleições poderia gerar confusões nos trabalhadores, por outro lado a similaridade de práticas dos grupos políticos rivais acabava por demarcar um segundo corte, ainda mais nítido, entre estes e a base, não deixando a esta dúvidas sobre a necessidade de lutar.
Os servidores também perceberam que o sindicato tem acordos com alguns vereadores que dizem apoiar o movimento, mas na prática não fizeram nada durante a luta. O movimento enfim cresceu, com desdobramentos interessantes, e mostrou que ao menos por um tempo extravasou o controle das burocracias sindicais e da prefeitura, antes da burocracia sindical se apropriar do movimento e haver o esvaziamento consequente.
Todo este processo mostra que a eclosão de movimentos autônomos de base é plenamente possível, uma vez que há uma crise dos sindicatos burocratizados, nos deixando, assim, muitas lições, principalmente a percepção de que a autonomia proletária está na ordem do dia e de que a expansão da lógica fabril para os serviços públicos tende a gerar reação dos trabalhadores. Entretanto, estes têm um grande desafio: lutar contra o patrão e ao mesmo tempo contra as burocracias sindicais. Isto requer por parte dos trabalhadores combativos a difícil tarefa de construir seu próprio projeto político, suas estratégias, e proceder a um forte trabalho organizativo, no sentido de construir a sua autonomia e serem capazes de conduzir suas próprias lutas, não permitindo que estas lhes sejam expropriadas. [1]
Alguns desdobramentos e análises
A greve, de uma forma ou de outra, iria acontecer. Algumas escolas (como é o caso da EMEIF Antônio Marques Figueira, uma das maiores da cidade) já haviam anunciado isso. Entretanto, o Sindicato dos Servidores Municipais de Suzano – Força Sindical – tratou de barrá-la, espalhando que a greve era “selvagem”; que, se acontecesse, havia o risco de todos serem exonerados; e que, se o órgão que representa a categoria não estivesse envolvido, ela seria ilegal. Tal fato mostra claramente o papel dos sindicatos burocratizados no enquadramento das lutas dos trabalhadores, subvertendo qualquer iniciativa autônoma das bases e confinando as lutas aos limites jurídicos.
Apesar de ter marcado uma assembléia para decidir o início da greve, o sindicato nunca demonstrou de fato seus reais interesses: resumiu-se em agredir o prefeito Marcelo Cândido pessoalmente, com músicas e faixas. Não viabilizou recursos para os comandos de greve de maneira efetiva, marcou várias vezes ações que não realizou, usou a comissão de greve para fazer o trabalho pesado de mobilização, fez questão que os panfletos, escritos por pessoas da comissão, tivessem seu logotipo, bem como conseguiu (talvez por uma passividade posterior das bases e por dispor de recursos como o carro de som) tomar a dianteira, uma vez que finalmente controlou o microfone, não deixando de usar mesmo de truculência e intimidações para isso.
A burocracia sindical fez tudo para levar o movimento para a justiça, para a luta meramente jurídica (inclusive o presidente do sindicato pediu uma salva de palmas para o Tribunal Regional do Trabalho; e também prometeu, inúmeras vezes, que o advogado deles iria conversar com os grevistas para esclarecer dúvidas, mas ele nunca apareceu) e conseguiu, no final. Houve uma audiência com um juiz em São Paulo, na Consolação, onde foi decidido o fim da greve.
O movimento se definhou e findou, ficando apenas o universo misterioso da negociação. Foi formada uma comissão de dois professores com o presidente do sindicato, que se reúne com a Prefeitura periodicamente. Os servidores obtiveram aumento nos benefícios, como no vale-alimentação, mas o reajuste e reposição das perdas ainda permanecem uma incógnita. A Prefeitura recuou em alguns pontos, mas em outros segue irreversível.
Nunca, na história de seus 61 anos, a cidade tinha vivenciado uma greve assim (exceto as que ocorreram em fábricas, que não tiveram grandes proporções, principalmente após a burocratização dos sindicatos nos anos 80), muito embora Suzano tenha sido governada, por quatro mandatos, por Estevam Galvão do DEM, um político “linha-dura”, acusado várias vezes de corrupção.
É tradição, em todas as cidades do Alto Tietê, que as elites governem com práticas coronelistas e procedam à repressão e desmobilização. Muitas lutas sociais acabam logo que começam, como já ocorreu várias vezes com lutas por transporte público e passe livre, em diversas levas de descontentamento de curta duração, ao longo de anos. O fator do medo é amplamente desmobilizador. É uma região muito conservadora. Por exemplo, Manoel Maria de Souza Neto, o Netinho, ligado ao MST, foi assassinado em 2000, sem que o crime até hoje tenha sido esclarecido.
Isto mostra que os trabalhadores de cidades interioranas, além da luta contra o gestorialismo do Estado e o imobilismo das burocracias sindicais, ainda têm que enfrentar o poder pessoal das elites antigas, que seguem no poder consolidadas. A dominação impessoal das tecnocracias capitalistas se mistura com a dominação pessoal e brutal de elites coronelistas, nos deixando apenas a dúvida sobre qual será a estratégia dos trabalhadores para construir sua autonomia num cenário de múltiplos inimigos.
Nota:
[1] Fica claro, com esta análise que fazemos, que o conteúdo das pautas de reivindicação, embora seja importante e represente uma luta em torno do valor da força de trabalho e do nível de exploração, não pode obscurecer as formas de luta e a compreensão do tipo de relações que os envolvidos na luta criam em seu processo, que são na verdade relações potencialmente transformadoras. Já a imprensa burguesa trata sempre de confinar as lutas apenas às reivindicações, nada falando sobre as formas de luta e organização. Quando fala algo sobre as formas de luta, quase sempre é no sentido de desqualificar e mesmo criminalizar a luta e o movimento. Outra dificuldade adicional das lutas é quando estas não se confrontam com um inimigo aberto e autoritário, mas sim com técnicas administrativas que apelam para estratégias de democracia participativa, o que deixa os contornos do conflito pouco nítidos. Entretanto, ante a eclosão de novas formas de luta e organização, estas mesmas formas administrativas mostram traços autoritários e entram em contradição consigo mesmas, fato que é logo percebido pelos trabalhadores.
Abaixo, assista ao vídeo
Democratizar ou Suzano vai parar!
por Anomalia Caótica
Depoimento de servidores públicos em greve na cidade de Suzano – SP em meados de abril de 2010. Mais de cinco anos sem aumento, péssimas condições de trabalho, falta de materiais básicos, uma administração pública nada transparente, imposição de um Plano de Carreira, uma fagulha de luta de classes, uma mini-TAZ (Zona Autônoma Temporária), um sindicato aproveitador, uma gestão pseudo democrática… eis os motivos da greve.
É pena ter acabado, é pena ter ido parar nas mãos da justiça…
Para entendermos essa greve de Suzano precisamos compreender as forças políticas da cidade. Não se trata de defender o prefeito, mas creio que seja preciso caracterizar melhor a oposição. Essa apesar de quase 6 anos fora do executivo, ainda influência muitos setores da cidade (imprensa, sindicato, empresas de transporte, empresas coleta de lixo e etc.).
Para entender essa greve também é necessário aprofundarmos o debate sobre a política salarial que o Marcelo Candido está implementando. Não há dúvida que houve um arrocho salarial nesses últimos anos. Mas precisamos ter claro se o Estatutos do Funcionalismo e dos Planos de Carreira, Cargos e Salários criando pelo prefeito avança ou não na luta dos trabalhadores.
Precisamos entender a escala proposta: Aumentos iam de 54% (ajudante geral com mais de 25 anos) até 10% (Médicos e engenheiros). O discurso do prefeito é que isso valorizaria as menores referencias e reduziria as diferenças salariais. Isso explica a fragmentação da greve, ou não?
Do ponto de vista da organização dos trabalhadores, o que mais preocupa, além de ter a frente um sindicato dirigido pela Força Sindical, é o encurtamento do direito de greve. Interdito, resoluções judiciais… É aqui que devemos nos esforçar e entender. Claro, se realmente pretendemos construir uma zona autonoma.
Parabéns pelo texto. Muito interessante.
Viva o sindicalismo de base! Abaixo a burocracia sindical!
Suzano carrega muitos resquícios estevistas, não há como negar. Entretanto, a atual administração não cumpriu várias promessas, deixou o salário com defasagem de cinco anos sem reajuste e quis empurrar o Plano de Carreira goela abaixo.
É bom frisar que Suzano está entre os 20 municípios que mais arrecadam impostos em São Paulo, arrecada mais que Mogi das Cruzes, cidade vizinha, maior e com muito mais habitantes. Outro fator, no mínimo estranho na cidade, é o número de secretarias, ao todo são 20 (existe até uma chamada Secretaria de Descentralização e Participação Popular, que nem o secretário, Rosenil Órfão soube explicar a função quando indagado pela Câmara), cada uma com seu devido secretário que ganha um salário no mínimo rasoável, sem contar seus acessores…Na verdade, tanta secretaria não passa de cabines de emprego.
É relativo o fato do escalonamento salarial, por exemplo os contadores que ganham acima de três mil reais, terão um reajuste de 15%, já os professores que ganham mil e duzentos reais, terão um reajuste de 10%, além de outras ‘coisas estranahas’.
É bom frisar que criticar o Cândido, não é, nem de longe, apoiar o Estevam, entretanto, a diferença entre eles, entre seus partidos e entre os partidos sendo de direita ou de ‘esquerda’, é cada vez menor, senão inexistente.