«Os sindicatos estão ocupados, você não pode fazer nada. Os sindicatos mais consequentes tiveram uma intervenção de não sei quantos anos. Na cúpula sindical não se podia fazer mais nada. Vamos fazer o que, então? Vamos nos organizar nas empresas. Trabalho de paciência, devagar, porque o inimigo está atento». Por Cláudio Nascimento
[Leia aqui a primeira parte deste artigo.]
Nos anos de chumbo da década de 70, o exílio e o banimento afastaram milhares de cidadãos brasileiros de seu país. A história do exílio tem dado ênfase àqueles que participavam das organizações revolucionárias da época. É correta a afirmação de Denise Rollemberg sobre o exílio brasileiro: “o exílio não chegou a ser um fenômeno de ‘massas’ como, por exemplo, no Chile. A maior parte dos atingidos era da classe média, escolarizada e intelectualizada, embora, evidentemente, também tenha havido camponeses, operários e pessoas com nível de instrução baixo”.
Mas entre os exilados encontravam-se operários que participaram das oposições sindicais e que fundaram, no exterior, o Grupo de Apoio à Oposição Sindical (GAOS), com sede em Paris. Esse grupo teve apoio fundamental da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT)[1]. Alguns destes operários das oposições sindicais se exilaram em 1973, quando a repressão prendeu centenas deles em todo o Brasil. Faziam parte de um movimento de articulação das oposições sindicais em vários estados. Já era um trabalho em cima da avaliação do caminho da luta armada. Um tipo de “volta às fábricas”!
A palestra realizada por Rolando Frati[2], com seu estilo irreverente muito próprio, na abertura do Encontro Internacional, em Bruxelas, nos refaz esse contexto:
“Bem, o que faz a classe operária, com a esquerda esfacelada em consequência do golpe, dividida em 50 pedações? Que, além da derrota oriunda do golpe, já estava em crise, numa crise muito profunda, decorrente da divisão entre a China e a Rússia?
Só quem estava no movimento sindical pode saber e calcular o quanto esta divisão foi nefasta para o movimento sindical. O quanto de prejuízo deu e está dando até hoje. Do que sobrou, do que não estava foragido, na cadeia ou no exílio, principalmente aqueles operários de vanguarda?
Mas o que se passa? Se volta novamente para as empresas. Os sindicatos estão ocupados, você não pode fazer nada. Os sindicatos mais consequentes tiveram uma intervenção de não sei quantos anos. Na cúpula sindical não se podia fazer mais nada. Vamos fazer o que, então? Vamos nos organizar nas empresas. Trabalho de paciência, devagar, porque o inimigo está atento.
Então, este trabalho leva a Osasco 68. A greve de Osasco em 68. Um desafio à ditadura em ascenso, foi aquela greve. Não era uma ditadura em crise, como hoje, era uma ditadura em ascenso. Que estava ainda muito empenhada para destruir as forças de esquerda. Então, surge essa greve.
A greve foi uma grande lição. Dela se extraiu grandes ensinamentos, principalmente aquele de que se pode lutar, se pode levar a classe operária à luta, mesmo que os sindicatos estejam ocupados pelas forças inimigas. O principal é que se enraíza o trabalho sindical dentro da empresa, o resto é consequência (…)
Depois que os grupos armados foram destroçados, a repressão se volta para o movimento operário, nas fábricas. Ela tinha visto Osasco e tinha aprendido: Ah! O negócio é ali na fábrica; Ah! Então, vamos acertar as contas com vocês.
Então, de 73 a 74, passaram pelo DEOPS, só da grande São Paulo (capital, Osasco, Guarulhos e ABC), 11 mil operários para serem ouvidos e interrogados. Alguns foram torturados. Outros tiveram condenação. A maioria foi solta. Depois de serem identificados, ficaram sem emprego. Enfim, passaram 11 mil!
Mas isso não destruiu o embrião. A coisa prosseguiu. Prosseguiu pela linha de organizar comissões dentro das empresas etc., e prosseguiu com um salto de qualidade. Já se começa a discutir com a classe operária a necessidade da autonomia, independência, de um novo sindicato, isto é, de um sindicalismo democrático.”
Esta fala de Frati adquire maior conotação quando, em 2005, o jornal O Globo publicou um texto do jornalista José Casado, intitulado “Repressão no pátio da fábrica”.
“Foi uma terça-feira atípica aquele 4 de novembro de 1969: o Corinthians batia o Santos por 2 x 0 e acenava com uma segunda vitória depois de 11 anos de absoluto jejum contra o time de Pelé. O corinthiano Luiz Ignácio Lula da Silva, então diretor-suplente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, estava preocupado com a bola no gramado. Continuou assim quando, no intervalo, os alto-falantes anunciaram que a polícia matara o terrorista Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional. Começava um novo ciclo na ditadura militar, com escalada repressiva e crescimento recorde na economia (9,5%).
Na manhã da terça-feira seguinte (11 de novembro), representantes de Volkswagen, General Motors, Chrysler, Firestone, Philips e Constanta se reuniram com o chefe do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) no ABC Paulista, Israel Alves dos Santos Sobrinho, e o major Vicente de Albuquerque, do IV Regimento de Infantaria do Exército. Na delegacia estiveram Evaldo Herbert Sirin, da General Motors; Mario de Souza Campos, da Chrysler; A. J. Vieira, da Firestone; coronel Evaldo Pedreschi, da Philips; major Adhemar Rudge, da Volkswagen; e Sinésio de Oliveira, da Constanta.
Chefes das seções de segurança interna dessas indústrias queriam acelerar o funcionamento do Grupo de Trabalho (depois chamado Centro Comunitário) que serviria de cobertura à colaboração entre empresas privadas do ABC Paulista, o DOPS e o Exército. Segundo a ata da reunião, debateram ‘problemas’ nas fábricas, decidiram a compra de ‘mapas do Grande ABC e outros artigos’, e estabeleceram um Centro de Coordenação no DOPS.
Estávamos defendendo nossas empresas dos terroristas, da subversão – conta Synesio de Oliveira, o representante da Constanta (empresa incorporada ao grupo Philips em 1998). E o esquema era: se houvesse um caso suspeito, comunicávamos à comunidade (de informações).
A cooperação entre empresas e ditadura militar foi permanente, intensa e quase sempre discreta, revelam documentos inéditos guardados nos arquivos do extinto DOPS paulista. Uma parte foi descoberta e entregue ao Globo pelo historiador Antonio Luigi Negro, autor de um excelente livro sobre a emergência do sindicalismo brasileiro depois da Segunda Guerra (Linhas de Montagem, Boitempo, 2004).
Outros papéis foram localizados em arquivos públicos e particulares de São Paulo, Buenos Aires e Washington.
O conjunto é eloquente na demonstração de um colaboracionismo muito além dos milionários donativos empresariais recolhidos pelo banqueiro Gastão Vidigal, o industrial Henning Albert Boilesen e o advogado Paulo Sawaia para custear a criação de um corpo de polícia dentro do exército (a Operação Bandeirantes). O intercâmbio entre empresas e órgãos de segurança ultrapassou o fornecimento rotineiro de Fuscas da Volkswagen, de Galaxies blindados da Ford, de caminhões da Ultragás, de refeições congeladas Supergel e de ‘gratificações’ às equipes dos porões do regime.
Grandes empresas recrutaram pessoal nas Forças Armadas e na polícia, mantiveram aparatos de espionagem dos empregados dentro das fábricas e nos sindicatos. A Volks e a Chrysler, por exemplo, repassaram listas de funcionários aos órgãos de segurança, às vezes com as respectivas fichas funcionais. Na semana passada, ambas negaram o envolvimento. A Volks ressalvou ter sido ‘sempre apolítica’. A Daimler Chrysler alegou total desconhecimento, ‘portanto não temos comentários’.
(…) O DOPS paulista acompanhou casos como o do metalúrgico Waldemar Rossi. Aos 37 anos contava com oito meses de emprego na linha de montagem da Volks-Ipiranga quando foi a uma assembléia sindical. Ali propôs uma ‘operação-tartaruga’. Não teve êxito, mas antes da jornada terminar estava demitido. No mesmo dia (11 de novembro 1970), o DOPS protocolou um relato da empresa, com a ficha funcional de Rossi”.
No Encontro em Bruxelas, Helio Bombardi, então militante da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP), afirma:
“Sempre então tiveram, em todos os estados brasileiros, ou pelo menos naqueles industriais, trabalhadores que, por não terem atuado naquele momento, porque o sindicato estava ocupado, ou pelas condições das fábricas terem piorado bastante, esses trabalhadores começaram a se organizar em pequenos grupos dentro das fábricas.
Marco disso é a greve no pior período do regime brasileiro, pouco divulgada, porque não se podia dizer antes, foi no final de 1973, quando na Villares (uma companhia num bairro de São Paulo, chamado Santo Amaro), os trabalhadores param, fazem greve[3]. Todos os operários que participaram da greve foram mandados embora, pelo menos a liderança sindical foi mandada embora, a liderança dentro da fábrica. (…) Agora, a partir de 74 começa a se avançar na idéia da organização dentro das fábricas. Essa organização que nós teremos mais condições de falar amanhã, com alguns exemplos mais concretos de como se organizou, faz com que o movimento operário passe a ganhar uma expressão dentro das fábricas e dentro dos movimentos populares”.
Notas
[1] Nota do Passa Palavra: central sindical francesa criada em 1964, quando a maioria dos membros da Confederação Francesa dos Trabalhadores Cristãos (CFTC) optou por abandonar o caráter confessional da entidade e assumir uma postura laica. Entre 1968 e 1974, aproximou-se do socialismo “autogestionário” expresso pelo Partido Socialista Unificado (PSU) de Edouard Depreux e Michel Rocard, até que a entrada de grande parte de seus membros no Partido Socialista (PS) transformou-a quase num apêndice do governo Mitterand. A tendência “autogestionária” seria progressivamente eliminada da central até que, após as greves francesas de 1995, ela apoiou o projeto de reforma da previdência social proposto por Alain Jouppé (do Reagrupamento para a República – RPR, de direita) e, em 1998, esta tendência foi definitivamente derrotada. Hoje a CFDT vê seus quadros reduzirem-se progressivamente, e toma como linha fundamental de ação “ter um olhar sóbrio para melhor trabalhar com os jovens por seu futuro”.
[2] Nota do Passa Palavra: o metalúrgico paulista Rolando Frati militou ativamente no PCB até ligar-se ao Agrupamento Comunista de São Paulo, liderado por Marighella – embrião do que depois viria a ser a Aliança de Libertação Nacional (ALN), da qual seria um dos dirigentes. Preso, foi trocado, com outros 14 companheiros de diversas organizações, pelo embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, em poder da ALN e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Banido do país, morou em Cuba antes de transferir-se para a Europa, onde organizou, juntamente com outros líderes sindicais exilados, uma entidade de apoio à luta contra a ditadura militar brasileira. Voltou ao país com a anistia e teve morte natural em 1991.
[3] Nota do Passa Palavra: a greve na metalúrgica Villares fez parte de um ciclo de greves ocorrido entre 1972 e 1975, resultante de uma série de fatores econômicos (escassez generalizada de mão-de-obra qualificada e semiqualificada facilitava a permanência dos trabalhadores no mesmo emprego por mais tempo), conjunturais (eleições presidenciais de 1974) e políticos (consolidação das oposições sindicais e autocrítica das organizações que optaram pela luta armada contra a ditadura, que levou a um retorno às atividades junto ao movimento operário). É considerado pela militância de esquerda da época como um ressurgimento do movimento operário, mesmo sob o período mais duro da vigência do AI-5, e uma preparação fundamental para o ciclo grevista de 1978-1980. Para maiores informações e uma análise mais detalhada deste ciclo, cf. o segundo e o terceiro volumes do livro de Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário (Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990/1991).
[Leia aqui a continuação deste artigo.]
Parabéns ao autor por trazer novamente à discussão este período histórico de ampla repressão, as formas de resistência que aconteceram, bem como alguns documentos para a análise dos mesmos.
Sem dúvida alguma os movimentos sociais revolucionários em períodos de “regime militar” sofrem em demasia com as limitações de se agir sem liberdade de organização, de reunião, de imprensa, de expressão, etc.. No “regime democrático” estas liberdades não existem em sua plenitude, a liberdade de expressão é limitada pela conjuntura e pela diferença do poder aquisitivo da burguesia e das organizações que expressem e lutem pela emancipação do proletariado, e por assim em diante. Em ambos os casos há a “ditadura do capital”.
E justamente na luta contra esta “ditadura do capital”, a luta de classes, algumas instituições servem a uma ou a outra classe. Considerando a classe dos gestores como uma classe com interesses antagônicos ao do proletariado, e em consonância com a relação capital, os sindicatos devem, portanto, serem vistos como uma instituição capitalista ( regulam o valor da força de trabalho), e não como uma instituição revolucionária.
Refaço aqui a “provocação” que fiz na primeira parte do artigo:
“o socialismo autogestionário é consoante com os sindicatos e a estrutura sindical?”.
Pelo sentido geral desta segunda parte, a atuação na base das fábricas, por fora dos sindicatos, foi escolhida por uma questão de conjuntura, já que «Os sindicatos estão ocupados, você não pode fazer nada. Os sindicatos mais consequentes tiveram uma intervenção de não sei quantos anos. Na cúpula sindical não se podia fazer mais nada. Vamos fazer o que, então? Vamos nos organizar nas empresas. Trabalho de paciência, devagar, porque o inimigo está atento». Nesta linha de raciocínio, tão logo as cúpulas destes sindicatos sejam desocupadas pelos militares, a vanguarda da classe deva ocupar estes espaços e guiar o processo revolucionário.