Por Patrick Bond
Apesar de amantes do futebol [torcedores], há cínicos que há muito tempo previram os problemas que agora se agravam na África do Sul devido às suas obrigações como anfitriã do Mundial [Copa]:
– Perdas importantes de soberania a favor da organização mundial do futebol, a FIFA,
– Agravamento rápido das desigualdades de rendimentos,
– Futuras calamidades económicas, quando chegar a hora de pagar as dívidas,
– Aumento dramático das emissões de gases de estufa (mais do dobro dos da Alemanha em 2006), e
– Humilhação e desalento pelo facto de a selecção nacional Bafana Bafana (em 90º lugar no ranking no começo do torneio) se ter tornado a primeira equipe anfitriã a sair da competição antes da sua segunda fase.
Em breve, ao que parece, poderemos acrescentar a esta lista um problema que aterroriza os progressistas aqui e em toda a parte: mais uma onda de xenofobia da parte do Estado e da sociedade.
A questão crucial, nas próximas semanas, será verificar se, em vez de oferecer alguma resistência vinda de baixo, a exemplo da enérgica manifestação de 1000 pessoas da rede do Fórum Social de Durban, em 16 de Junho frente à sede do município, os perdedores feridos da sociedade irão adoptar sentimentos populistas de direita e apontar culpas aos estrangeiros.
Não se trata de uma preocupação sem fundamento, pois as páginas Facebook de gangues de jovens descontentes de Joanesburgo deram largas ao entusiasmo xenofóbico após a derrota dos Bafana pelo Uruguai, na semana passada. Um dos jovens punks, Khavi Mavodze, escreveu: “Estrangeiros, saiam da nossa terra, ficam avisados, xenofobia é o nosso nome próprio”.
Até o comité executivo nacional do African National Congress [ANC, partido no poder], habitualmente defensivo, e o governo exprimiram recentemente a sua preocupação com a possibilidade de reedição das violências de Maio de 2008, que causaram a morte de 62 pessoas e mais de 100.000 deslocados.
Isso ao menos é um progresso, pois há 30 meses atrás o painel de eminentes personalidades do Africa Peer Review Mechanism lançou um alerta que pouca atenção mereceu: “A xenofobia contra outros africanos está neste momento a crescer e tem de ser sufocada no ovo”.
O então presidente Thabo Mbeki, visivelmente mal informado, replicara que isso “simplesmente não é verdade”, e quando a calamidade xenofóbica começou, seis meses mais tarde, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Aziz Pahad considerou-a “um fenómeno totalmente inesperado” – não obstante ter sido precedida de dezenas de incidentes.
Por isso, quando em maio o actual presidente, Jacob Zuma, disse ao [comité] executivo do seu partido que “os sectores do ANC têm de começar desde já a trabalhar para enfrentarem a questão da xenofobia”, foi deprimente ver um outro político a aliar o negacionismo aos estereótipos.
Respondendo que “não há provas tangíveis”, o chefe da polícia Bheki Cele acrescentou, dias depois: “Notamos que há uma tendência dos estrangeiros para cometerem crimes – tirando proveito do facto de nós termos um nível de criminalidade inaceitável –, assim manchando a nossa reputação e a nossa imagem”.
As generalizações contra os “estrangeiros” como prolíficos perpetradores de crimes não têm qualquer base de sustentação, não havendo qualquer “tendência” comprovada pois não há dados credíveis que confirmem se os tsotsis (delinquentes) imigrantes representam uma percentagem maior do seu total do que a dos tsotsis autóctones. (Aliás nem sequer sabemos ao certo, na ordem dos mais ou menos 500 mil, quantos imigrantes existem na África do Sul, dada a permeabilidade das fronteiras.)
O apontar do dedo de Cele contra os imigrantes não passa de uma estratégia do tipo “bode expiatório”. O Consórcio para os Refugiados e Migrantes da África do Sul considerou esta semana a xenofobia como uma “ameaça credível” em parte porque “alguns dos seus promotores parecem acreditar que têm o apoio táctico dos agentes políticos locais”.
Para além da sua persuasão moral, de processar os culpados de ataques xenofóbicos, de solucionar as lutas locais pela liderança baseadas em preconceitos xenofóbicos, e de estabelecer mecanismos automáticos de intervenção, o Estado tem a obrigação de se preocupar com as causas profundas das tensões sociais que frequentemente se exprimem como xenofobia: desemprego massivo, falta de habitações, concorrência feroz no comércio local dos bairros pobres e interesses sul-africanos de geopolítica regional que provocam mais refugiados do que prosperidade.
A verdade é que o Estado não vai atacar estes problemas de fundo porque, provavelmente, quaisquer progressos substantivos nesse sentido viriam a suscitar a questão das relações entre as classes e o próprio modo de produção.
Por exemplo: muitos observadores acreditaram (como eu) que a substituição de Mbeki por Zuma em Setembro de 2008 poderia significar mudanças na política externa de Pretória – como o fim do apoio dado à repressão no Zimbabwe de Robert Mugabe –, mas essa convicção foi pura ingenuidade, como se viu pelo modo como Zuma, há semanas em Londres, defendeu activamente o fim das sanções selectivas contra as elites do partido ZANU de Mugabe no poder.
A verdade é que os líderes sul-africanos pós-apartheid não querem inverter uma relação estrutural de exploração velha de 120 anos, por via da qual empresas sediadas em Joanesburgo – tais como as que estão envolvidas nos sangrentos campos diamantíferos de Marange, no leste do Zimbabwe, controlados pelo exército de Mugabe – vêm sacando os recursos da região. Marange é a maior jazida de diamantes encontrada desde a descoberta de Kimberley, na África do Sul, em 1867.
Como é que a coisa funciona? Veja-se o caso de uma vítima do conluio entre as elites sul-africana e zimbabweana da extracção mineira, o corajoso investgador da sociedade civil Farai Maguwu (antigo estudante de minas da Universidade Africana). Maguwu foi preso em 3 de Junho porque, segundo o seu relato (e ele costuma ser muito credível), um sul-africano chamado Abbey Chikane o designou à polícia de Mugabe para ser preso e maltratado.
Chikane foi um dos responsáveis pelo Processo Kimberley, um acordo estabelecido há exactamente 10 anos entre a indústria, o governo e as ONGs internacionais de vigilância através do qual se pretendia pôr termo ao comércio de diamantes “sangrentos”. A assinatura do monopólio De Beers era crucial, dado que a antiga companhia sul-africana (agora está sediada em Londres) precisava de lidar com o crescente excesso de oferta global de diamantes e de restaurar as suas relações públicas após um período de alguma depressão.
Num quarto de hotel na cidade de Mutare, no leste do Zimbabwe, em 25 de Maio, Maguwu deu a Chikane informações acerca de centenas de assassinatos em Marange desde 2006, perpetrados pelo exército de Mugabe.
Em vez de usar a informação para denunciar os factos de Marage, Chikane, à boa maneira dos agentes de combate ao narcotráfico, denunciou Maguwu à polícia do Zimbabwe. Quando a polícia foi ao apartamento deste, no dia seguinte, Maguwu passou à clandestinidade. Durante a busca, a polícia agrediu e torturou membros da família, o que levou Maguwu a entregar-se. Após uma semana de prisão, foi hospitalizado na sexta-feira passada em consequência de maus tratos e nesta quarta-feira um juiz pró-Mugabe recusou-lhe a liberdade sob fiança.
Esta história tem muito que se lhe diga, em muitos aspectos é emblemática da corrupção e da pobreza que, na África, decorrem da “maldição dos recursos naturais”.
O afluxo de dinheiro ilícito dos diamantes para os dirigentes militares (via Dubai, onde o Processo Kimberley parece ser ignorado) constitui a fonte principal do seu próprio emburguesamento, assim como do financiamento da campanha das próximas eleições nacionais do Zimbabwe. (O saque dos recursos do Estado tornou-se mais difícil para os homens de Mugabe desde Janeiro de 2009, altura em que o Zimbabwe ficou sem a sua moeda e, por isso, deixou de ter o Banco de Reserva do Zimbabwe, com a sua máquina de fazer dinheiro, instrumento da hiperinflação e do capitalismo de clientelas.)
Pouco depois, Chikane emitiu um relatório oficial onde considera que Marange obedece às normas do comércio internacional de diamantes, conseguindo assim que a reunião do Processo Kimberley, esta semana em Telavive, retirasse da agenda a continuação da exclusão do Zimbabwe. Por causa da sua indústria de lapidação e das ameaças das campanhas de boicote, de desinvestimento e de sanções, Israel tornou-se um forte apoiante do Zimbabwe, insistindo para que as pedras de Marange não sejam consideradas diamantes “de sangue”.
Segundo o conceituado jornal The Zimbabwean, várias empresas de mineração sul-africanas irão beneficiar se o branqueamento de Chikane prosseguir, incluindo a African Renaissance Holdings do seu primo Kagiso Chikane e a African Rainbow Minerals do magnata negro Patrice Matsepe – com quem trabalha o seu irmão Frank Chikane, sacerdote que foi um dos líderes do movimento anti-apartheid –, assim como duas financiadoras da mineira de diamantes Reclam, de Joanesburgo: a Capitalworks e a Old Mutual.
Com tudo isto, Abbey Chikane deu cabo da reputação do Processo Kimberley na monitorização dos diamantes “de sangue”, do mesmo modo que Mbeki-Zuma mancharam a de Pretória quando se tratou da justiça e da democracia no arruinado Zimbabwe. Durante a última década, vimos uma série de traições similares aos seus povos, por parte das elites da África do Sul e do Zimbabwe.
Perante estas relações, não surpreende que, na semana passada, o Alto-Comissário da ONU para os Refugiados tenha relatado que há neste momento 158.200 zimbabweanos que procuram asilo internacional formal, 90% dos quais estão na África do Sul. (Mais do triplo do país que vem em segundo lugar, a Birmânia, que é seguida por dois regimes apoiados por Washington: o Afeganistão e a Colômbia.)
Há pelo menos dois milhões de zimbabweanos na África do Sul, muitos deles ilegais e mal pagos, mas muitas vezes trabalhadores altamente qualificados, que não raramente se encontram sob forte pressão por parte dos desempregados autóctones. Uma solução autêntica das reivindicaçõs dos trabalhadores em toda a região teria de passar, não apenas por uma inversão da abordagem geopolítica de Pretória, mas também por políticas macro-económicas.
(As Estatísticas da África do Sul anunciaram, na semana passada, que mais 79.000 empregos foram perdidos no último trimestre, crescendo para quase um milhão o número de despedidos [demissões] desde que rebentou a crise mundial em 2008.)
É certo que o ministro dos Assuntos Internos Nkosazana Dlamini-Zuma fez algumas concessões aos zimbabweanos, consentindo-lhes uma permanência mais prolongada no país e autorizações de trabalho (o que também é bom para os impostos), mas ao mesmo tempo reduziu radicalmente o fluxo migratório do Lesotho para a África do Sul, mesmo sabendo que grande parte do PNB do Lesotho vem dos trabalhadores emigrados.
Se o chefe da polícia sul-africana Cele estivesse realmente preocupado com os criminosos estrangeiros, então deveria concentrar os esforços dos seus agentes numa equipa realmente perigosa: a FIFA. Exceptuando Wall Street e a City de Londres, em nenhum sítio se podem encontrar tantos gangues de ladrões como em Zurique, tanto nos bancos que financiaram o apartheid quando ninguém mais o faria, como na organização do futebol que tem o seu esconderijo temporário a sul de Joanesburgo.
Esta máfia está tão confiante nas suas relações com a mentalmente corrupta Polícia Sul-Africana do general Cele que, na sexta-feira passada, o secretário-geral da FIFA, Jerome Valcke, se vangloriou de como vão tirar daqui 3.200 milhões de dólares de puro lucro (mais 50% do que os 1.800 milhões trazidos da Alemanha há quatro anos).
A FIFA não paga impostos, ignora os controlos de divisas e, de caminho, prepara-se para deixar a África do Sul à beira de um crash cambial.
Para o saque ser completo, a polícia de Cele está obviamente em campo, concluem confidencialmente alguns observadores – mas não porque haja provas do trabalhinho da famosa trupe da FIFA. Não, basta o enfraquecimento resultante da corrupção comercial e contratual que está à vista de todos nos dias mais recentes:
– Prestanto serviço à maior empresa de segurança presente nos jogos do Mundial [da Copa], a Stallion – uma firma que deveria ter sido banida no ano passado, como prometeu o ministro do Trabalho Shepherd Mdladlana, e que em 2001 foi responsável por uma cena de pânico em Joanesburgo que causou a morte de mais de 40 adeptos –, a polícia foi proteger o regime explorador de baixos salários da Stallion, lançando granadas atordoantes e gás lacrimogénio contra centenas de trabalhadores reclamando o salário, depois de um jogo noturno em Durban, e mesmo alvejando repetidamente um espectador na Cidade do Cabo com balas de borracha, em confrontos semelhantes
– Não é para admirar, uma vez que Linda Mti – a antiga comissária para as prisões, ligada ao conhecido campo privatizado de Lindela para imigrantes presos (e três vezes presa por conduzir em estado de embriaguês) – é a chefe de segurança do Comité Organizador Local da FIFA
– Em defesa dessa irritante cerveja estadunidense, Budweiser, o polícia esteve mais uma vez ao serviço da FIFA quando, durante o jogo Holanda-Dinamarca, prendeu duas holandesas por estarem a fazer “publicidade disfarçada” ao envergarem duas camisolas cor-de-laranja onde se via um minúsculo logotipo de uma cerveja bávara
– Nesta segunda-feira, num Festival de Adeptos na South Beach de Durban, a polícia prendeu a ambientalista local Alice Thomson por andar a distribuir panfletos anti-FIFA acerca do desfile de protesto de 16 de Junho junto à sede do município
– Um homem apanhado com 30 bilhetes para os jogos “e que não deu explicação para isso” foi sentenciado com 3 anos de prisão, enquanto criminosos empedernidos deambulam livremente pelas ruas.
Apropriando-se e também patenteando abusivamente a cultura local, a FIFA e a empresa sua parceira Coca-Cola tentaram também roubar a alma da África, pagando ao cantor somali K’naan para animar as hostes com a letra foleira do seu “Wavin’ Flag” [Bandeira ao vento]. Mas não o vão conseguir, porque foram produzidas outras canções bem mais contestatárias que a FIFA terá dificuldade em digerir – e que podem ser livremente descarregadas [baixadas] na internet: “World Cup” dos artistas hip-hop Nomadic Wax, “The Beatiful Gain” dos Chomsky All Stars e, sobretudo, “Shame on the beautiful game” do [cantor hip-hop] Ewok de Durban.
Em 3 de Julho, mais uma concentração de protesto junto à Câmara Municipal [Prefeitura] – desta vez contra a xenofobia – permitirá a Durban exprimir um genuíno espírito ubuntu africano [1] que contrabalance a derrota dos Bafana [2].
Patrick Bond dirige o Center for Civil Society em Durban, que vem publicando diariamente actualizações do World Cup Watch [Observatório do Campeonato Mundial, ou Copa do Mundo], sobre a exploração político-sócio-económica, o Mundial, a “maldição dos recursos” e as ameaças de xenofobia.
Notas:
[1] Filosofia ética ou humanista a favor das relações e do intercâmbio entre as pessoas, termo originário das línguas bantu da África Austral, que inspirou o nome do mais conhecido sistema em programação aberta Linux (da Wikipédia).
[2] “Bafana Bafana” é o nome por que é tratada a selecção nacional de futebol sul-africana.
Versão original (em inglês) colhida no Pambazuka News, aqui. Tradução do Passa Palavra.
Interesante, mas nao consigo entender qual é a a relaçao entre o Campeonato Mundial e a volencia interétnica. Acho que esse é um problema bem mas antigo e grave. A ideia de que a perca da clasficaçao dos Bafana Bafana pelo Uruguai será causa de violencia acho que é um esagero. O esporte é esporte: quem joga, pode ganhar o perder. Pelo contrario, sou da opiniao que o Mundial amelhourou a imagen da Africa do Sul no mundo.
Saudaóes cordiais
Alvaro
Montevideo / Uruguai