A transnacionalização conjugou-se com a manutenção das nações e com a formação de conglomerados nacionais, dando origem a um sistema contraditório, em que o dinheiro cumpre funções harmonizadoras. Por João Bernardo
O facto de as economias norte-americana e chinesa estarem a ser regidas por tendências opostas certifica que a recessão nos Estados Unidos não se tornou mundial. Por este motivo eu tenho insistido que se trata de uma crise no, e não do, capitalismo. Mas como é possível que num capitalismo globalizado uma recessão nos grandes países ricos não se mundialize? (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso português, chamo mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e bilião ao que no Brasil se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012.)
A transnacionalização da produção e o comércio mundial
A globalização não suscitou uma convergência económica entre os países nem uma harmonização dos ciclos económicos dos vários países porque a transnacionalização se conjugou com a manutenção das nações e com a formação de conglomerados nacionais, como a União Europeia. No artigo Perspectivas do capitalismo na actual crise económica mencionei as pesquisas de DeAnne Julius e de Dennis Encarnation, mostrando que uma grande parte do que as estatísticas registam como comércio entre nações é na realidade constituída por transferências operadas no interior das mesmas companhias transnacionais. Se não tivesse sido o receio de tornar ainda mais extenso um artigo já longo, teria citado também no mesmo sentido Robert Lawrence, da Universidade de Harvard e da Brookings Institution, e estudos parcelares posteriores que confirmam aquelas pesquisas. Não me parece necessário repetir aqui o que já expliquei antes, por isso prefiro chamar a atenção para outros aspectos.
A conversão das companhias multinacionais em verdadeiras companhias transnacionais e a difusão da transnacionalização estão intimamente conjugadas com a adopção do sistema toyotista de organização do trabalho. O toyotismo não se limitou a dissolver as grandes concentrações fordistas de mão-de-obra e a dispersar os trabalhadores. Este processo ocorreu num âmbito mundial e as companhias transnacionais localizam nos mais variados países os estabelecimentos responsáveis por cada fase de uma cadeia de produção, ou cadeia logística, seja de bens materiais ou de serviços, assim como angariam subcontratantes em qualquer lugar do mundo. Esta nova geografia económica rege-se unicamente pela conveniência de aproveitar os diversos graus de qualificação da força de trabalho e pela avaliação dos custos salariais comparativos não em valores reais, ou seja, em paridade do poder de compra, mas em dólares. Kei-Mu Yi, vice-presidente do Federal Reserve Bank de Filadélfia, argumentou que, contrariamente ao modelo de Ricardo, inspirado por uma época em que cada país se especializava em artigos acabados, hoje os países especializam-se em etapas de cadeias de produção.
Peças, componentes e partes semi-acabadas passam várias vezes as fronteiras, de um lado para o outro, seguindo a sequência dos processos produtivos. O desenvolvimento da transnacionalização amplificou o comércio mundial — ou antes, avolumou-lhe as estatísticas. Kei-Mu Yi defendeu que a especialização vertical das linhas de produção, se contribuiu para a grande expansão do comércio mundial na fase de prosperidade económica, contribuiu igualmente para agravar a retracção das trocas mundiais na fase de recessão. É certo que o comércio reagiu sempre mais do que proporcionalmente às flutuações do output [1], mas a globalização das cadeias de produção aumentou a desproporção.
Deve ainda considerar-se outro factor. Mesmo tendo em conta as técnicas de redução dos stocks [estoques] promovidas no toyotismo pelo just in time, ou gestão em fluxo tenso, a globalização das cadeias logísticas e a projecção da subcontratação no âmbito global multiplicaram os stocks de bens materiais em cada país, enquanto a stockagem [estocagem] dos serviços só é possível em certos aspectos do processamento de dados. Ora, Aaditya Mattoo e Ingo Borchert, dois economistas do Banco Mundial, chamaram a atenção para o facto de a stockagem de bens materiais aumentar as flutuações do comércio externo. Com efeito, em Abril de 2009 as importações de bens materiais pelos Estados Unidos foram 34% inferiores ao mesmo mês do ano anterior e as exportações foram 27% inferiores; mas tanto as importações como as exportações de serviços foram só 10% inferiores.
O aumento das tarifas aduaneiras num país prejudica os empresários desse país que gerem cadeias de produção mundializadas. E como as tarifas se baseiam habitualmente no valor bruto dos artigos que atravessam as fronteiras e não no valor acrescentado, a repercussão dos efeitos nocivos do proteccionismo é maior na especialização vertical. Por isso a transnacionalização da actividade económica e a constituição de cadeias logísticas de dimensão mundial evitaram a proliferação de medidas proteccionistas, que não aumentaram significativamente, segundo a Organização Mundial do Comércio, apesar das dificuldades actuais. Durante o último trimestre de 2009 e o primeiro trimestre de 2010, por exemplo, só cerca de 0,4% das importações mundiais totais foram afectadas por novas medidas restritivas. E, de acordo com o Banco Mundial, o aumento de tarifas aduaneiras e outras medidas proteccionistas foram responsáveis por menos de 1/50 da queda do comércio internacional ocorrida durante a recessão. Um caso flagrante é a indústria automóvel norte-americana, que deixou de reclamar pautas aduaneiras proteccionistas, já que depende de cadeias logísticas espalhadas por vários países. «Faz cada vez menos sentido falar da nacionalidade de um automóvel», comentou The Economist de 7 de Fevereiro de 2009. Nestas condições a indústria automóvel norte-americana passou a reivindicar subsídios explícitos, ainda que estes possam ter consequências funestas no plano das relações públicas.
A contradição entre transnacionalização e espaços nacionais
A transnacionalização ultrapassou os espaços nacionais sem os abolir, ficando relacionada com eles num sistema bastante contraditório.
Por um lado, o desenvolvimento do mercado interno pode estar na base de um crescimento económico sólido, como tem sucedido com os BRICs [2] e poderá suceder ainda com a África do Sul e outros países. A este respeito devo lembrar que o mercado interno não é definido só pela quantidade da população mas também, ou sobretudo, pelo enriquecimento populacional, mesmo que o nível de partida seja muito baixo. Além de facilitar a procura de bens, a magnitude de um país contribui para melhorar as condições da oferta da força de trabalho. A China, por exemplo, reúne uma multiplicidade de regiões económicas distintas, permitindo que o aumento da produtividade faça subir os salários nas regiões onde estão concentradas as empresas mais evoluídas tecnologicamente, sem que isto se repercuta nas regiões onde são fabricados bens em condições de menor produtividade. Assim se explica que as exportações chinesas continuem a incluir artigos como têxteis e calçado ao lado de uma quantidade crescente de artigos sofisticados, mantendo a competitividade numa vasta gama de produtos. E a mesma observação pode ser feita a propósito de qualquer outro dos BRICs. Estas características não bastam, no entanto, senão os Estados Unidos não teriam entrado em recessão e a sua economia não estaria hoje estagnada. A dimensão e a diversidade interna de uma nação facilitam o arranque económico, mas não garantem uma prosperidade contínua.
Numa perspectiva inversa, o crescimento sólido pode ser comprometido pelo facto de as grandes companhias transnacionais se estabelecerem em vários tipos de mercado e mudarem entre eles, tornando-se em grande medida imunes aos percalços económicos ou políticos ocorridos nos países onde têm as sedes, e podendo igualmente desinteressar-se do desenvolvimento económico desses países de origem. Observe-se o caso do Japão, onde estão localizadas as sedes de algumas das mais reputadas firmas transnacionais, incluindo aquela que em 2008 foi a campeã mundial de despesas em pesquisa [3], a Toyota. A economia nacional japonesa, todavia, arrasta-se em recessão, e depois em estagnação, desde 1991. Mesmo o período de relativo crescimento anterior à actual crise praticamente não se repercutiu nos rendimentos familiares médios, e em 2003-2007 o consumo privado nipónico aumentou a uma taxa anual de 1,1%, similar à que vigorara durante a recessão da década de 1990. Isto deve-se ao facto de nos anos anteriores à crise actual o número de trabalhadores precários e não sindicalizados ter aumentado na indústria até chegar a cerca de 1/3 da mão-de-obra, o que levou ao paradoxo de os salários descerem em 2007 apesar de a economia ter praticamente atingido o pleno emprego. Penso que para essa baixa dos rendimentos dos trabalhadores e, portanto, para a estagnação do mercado de consumo interno tenha contribuído a propensão das grandes companhias transnacionais para subcontratar aspectos da cadeia logística e para precarizar a força de trabalho. Se assim for, então as companhias transnacionais podem, sem que isto lhes afecte a prosperidade, não só alhear-se da situação económica nos países de origem como até contribuir para a sua degradação.
Mas não será que, apesar de tudo, existe um contra-efeito e as companhias transnacionais proporcionam uma certa solidez ao país onde se albergam as suas sedes? Admitindo determinados critérios, a economia nipónica encontra-se à beira da ruína. No último trimestre de 2008 a produção industrial caiu 12% e em 2010 a economia funciona bastante abaixo da sua capacidade. Segundo Richard Katz, chefe de redacção de The Oriental Economist Report, a diferença entre o output real e o output potencial japonês é de 7%, um grau de não mobilização das capacidades produtivas três vezes superior ao que fora desde o início da crise no país, em 1991. Quanto ao comércio externo nipónico, depois de ele ter descido 1/3 no primeiro trimestre de 2009, nos restantes três trimestres as exportações reanimaram-se, de acordo com a firma financeira JPMorgan Chase, e atingiram uma taxa de crescimento anualizada de 3,1%, acima dos Estados Unidos e da zona do euro. Estas flutuações a curto prazo não devem esconder, porém, a tendência definida a longo prazo, e se em 1986 o Japão havia sido responsável por 10% das exportações mundiais (o máximo que atingiu), já no final de 2009 a percentagem reduziu-se a menos de 5%. Há duas décadas atrás o Japão contribuíra com 14% da economia mundial, uma taxa que desceu hoje para 8%. Os indicadores apontam para uma crise profunda. Em Novembro de 2009 o governo japonês confirmou que, após um intervalo de três anos, os preços haviam voltado a descer, aproximando-se o perigo de deflação. Entre Abril de 2009 e Abril de 2010 os preços dos bens de consumo excluindo alimentos e energia, os core prices [4], desceram 1,5%. Ora, a deflação torna mais gravoso o pagamento das dívidas, dificultando a situação dos empresários, e retarda toda a actividade económica. O Japão arrasta-se nesta situação há duas décadas.
Se se aplicassem àquele país os mesmos critérios que se aplicam agora à Grécia e a Portugal, a sua economia estaria à beira da falência. A dívida pública nipónica aumentou incessantemente nas duas últimas décadas, até se aproximar de 200% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009, e todas as previsões indicam que continuará a subir. Em termos relativos, a dívida pública da Grécia era de quase metade, atingindo 115% do PIB em 2009, e no mesmo ano a dívida pública de Portugal ficou modestamente em 77% do PIB. Por que motivo os títulos japoneses sofreram várias desclassificações, sem que o país fosse vítima de uma crise de confiança como a Grécia ou como Portugal? Foi por causa das minúsculas economias grega e portuguesa, representando respectivamente 2,6% e 1,8% do PIB da zona do euro, que o mercado de capitais entrou em pânico. É certo que uma grande parte da dívida nipónica é interna, mas não creio que isto explique tudo. Se o Japão não albergasse as sedes de algumas das mais importantes e mais dinâmicas companhias transnacionais, a sua economia não beneficiaria de credibilidade.
E note-se que, segundo previsões de alguns economistas do Fundo Monetário Internacional emitidas em meados de 2009, a dívida pública nos dez países mais ricos, que havia sido de 78% do PIB em 2007, subiria em 2010 para 106% e em 2014 para 114%. Entretanto, e igualmente segundo uma previsão do Fundo Monetário Internacional, a dívida pública dos países emergentes membros do G-20, que em 2007 equivalera a 38% do PIB, haveria de descer em 2014 para 35%. Também os Estados Unidos, que são o maior devedor mundial, apresentam uma série pouco optimista de indicadores estatísticos, sem que isto os impeça de ser o ponto de convergência das poupanças estrangeiras e os seus títulos do Tesouro de serem procurados em todo o mundo. O dólar, que se havia depreciado bastante de 2002 em diante, valorizou-se de meados de 2008 até meados de 2009. Quanto mais a recessão norte-americana se agravava tanto mais o dólar se valorizava, e entre a falência da firma financeira Lehman Brothers, em Setembro de 2008, e o ponto mais baixo atingido pelas bolsas de valores, em Março de 2009, o dólar subiu quase 13% numa base trade-weighted [5]. Talvez nos ajude a compreender estes movimentos contraditórios saber que, enquanto os estrangeiros detinham em 2009 um montante equivalente a 4,1 biliões de dólares de títulos do governo dos Estados Unidos, firmas e cidadãos norte-americanos detinham no final de 2008 o equivalente a 6,6 biliões de dólares em acções estrangeiras e investimentos directos noutros países [6]. A credibilidade de que a economia norte-americana ainda goza não lhe vem do seu desempenho no país, mas do desempenho das suas empresas no estrangeiro. Ao mesmo tempo, não é por albergarem sedes de grandes companhias transnacionais que os Estados Unidos e o Japão conseguem manter nas suas economias nacionais a vitalidade que caracteriza muitas das suas firmas. Quando leio artigos sobre a situação actual dos Estados Unidos, as passagens optimistas dizem todas elas respeito a algumas empresas especificamente consideradas e as passagens pessimistas referem-se à economia global do país. Na recente recessão os lucros das companhias não desceram abaixo de cerca de 8% do PIB, uma queda menor do que nas recessões anteriores, e no segundo trimestre de 2010 esses lucros representavam já 11% do PIB. Isto não impediu o crescimento do PIB norte-americano de ter diminuído de uma taxa anualizada de 3,7% no primeiro trimestre de 2010 para 2,4% no segundo trimestre nem o desemprego de se ter mantido entre 9,9% e 9,5% durante os primeiros oito meses de 2010.
A contraditoriedade da conjugação entre companhias transnacionais e espaços nacionais ou conglomerados nacionais provém do facto de os espaços nacionais poderem ajudar a criar e desenvolver grandes companhias transnacionais, mas o êxito destas não assegurar, em retorno, a prosperidade dos países onde as suas sedes se localizam, porque as companhias transnacionais se expandem para outros lugares do mundo. A relação entre os espaços nacionais e as companhias transnacionais é em sentido único. De maneira similar, o facto de grandes companhias transnacionais disseminarem as suas cadeias logísticas por vários países não assegura o desenvolvimento destes países. As empresas de um dado país integradas em cadeias logísticas transnacionais estabelecem as suas relações principais não com empresas do mesmo país, mas com outras empresas da mesma cadeia, que podem localizar-se noutros países. A transnacionalização criou uma nova geografia económica, em que os espaços nacionais se fragmentam numa grande quantidade de micro-regiões e em que o desenvolvimento de uma destas micro-regiões contribui mais para acelerar o desenvolvimento de outras micro-regiões de outros países do que para suscitar o desenvolvimento integrado de um espaço nacional.
A vida económica contemporânea processa-se no quadro da contradição entre estes dois termos, os espaços nacionais e as firmas transnacionais, sem que exista qualquer instituição para os unificar ou sequer coordenar. Como é possível que a economia mundial funcione assim?
As funções do dinheiro
O dinheiro é um instrumento técnico antiquíssimo, que não tem nenhuma relação exclusiva com qualquer modo de produção ou sequer com os sistemas de exploração. O capitalismo adoptou uma das modalidades de dinheiro antes existentes e levou-a até limites nunca vistos, fazendo com que ela ou, mais tarde, diversas formas pecuniárias interligadas e reciprocamente convertíveis permeassem todos os níveis da sociedade e executassem todas as funções, o que nunca sucedera. O dinheiro, tal como o capitalismo o transformou e desenvolveu, tem como característica principal tornar homogéneo o que é diversificado. O racionalismo extremo, com o seu corolário, a redução das distinções de qualidade a diferenças de quantidade, são o quadro filosófico necessário a uma sociedade permeada por essa forma de dinheiro. No primeiro terço do século XIX os românticos criticaram a partir de posições políticas e ideológicas conservadoras o capitalismo industrial que começara então a tomar conta da Europa; e ao insurgirem-se contra a racionalidade jacobina, os românticos intuíram, por vezes apenas confusamente, mas em alguns casos com lucidez, que essa racionalidade provinha dos manipuladores do dinheiro. De pouco valeu, porque a nova filosofia avançou ao mesmo galope do novo mercado.
O capitalismo tomou conta do mundo, mas sem o homogeneizar, e o que Trotsky e outros marxistas denominaram lei do desenvolvimento desigual e combinado vigora hoje de um modo ainda mais cabal. Tem competido ao dinheiro a função de homogeneizar aquilo que o capitalismo divide. Não é por acaso que alguns autores comparam as operações do dinheiro às operações da linguagem. Em vez da definição clássica de uma das funções do dinheiro como repositório de valor, devíamos defini-lo como repositório de informação.
Destaco três esferas de acção do dinheiro, igualmente importantes e interligadas: uma social, outra geográfica e outra temporal. A forma de dinheiro característica do capitalismo homogeneíza no âmbito do mercado os membros das classes sociais. Não importa se alguém é proletário, burguês ou gestor, a sua nota de dez reais ou de dez euros vale tanto como a de qualquer outra pessoa. E o dinheiro torna operativa a mobilidade social, ascendente ou descendente, sem a qual não se efectiva a permanente instabilidade do capitalismo. O dinheiro homogeneíza igualmente os espaços e, sejam atrasados ou evoluídos, pobres ou ricos, nas relações entre eles o valor de uma dada quantia é igual para todos os intervenientes. Mesmo quando as fronteiras dividem zonas monetárias, são aplicadas taxas cambiais para converter as denominações pecuniárias. O dinheiro cumpre ainda uma terceira função homogeneizadora, lançando uma ponte entre o passado, o presente e o futuro. É o sistema bancário que opera essa ponte, e o resultado é a taxa de juro. A taxa de juro é uma previsão de crescimento, e quanto mais estreita for a relação entre a actividade económica num momento e a actividade futura tanto mais o dinheiro deverá cumprir funções de crédito. Um dos aspectos que distingue o capitalismo dos modos de produção anteriores é a incessante mobilidade, tanto espacial como temporal. O capitalismo pressupõe a permanente transformação económica de todas as regiões e a reprodução da vida económica sob a forma de taxas de crescimento, positivas ou negativas.
É o dinheiro que permite que a actividade económica não pare apesar das incertezas e das contradições, é ele que permite racionalizar a incerteza. Quanto à heterogeneidade social, o sistema de exploração nas economias mais evoluídas baseia-se na inexistência de uma demarcação nítida entre os fluxos de salários e os fluxos de despesas de consumo, o que exigiu a difusão de novas modalidades de dinheiro e de crédito. Quanto à heterogeneidade geográfica, a transnacionalização das cadeias logísticas, tanto de bens materiais como de serviços, e o recurso extensivo à subcontratação, requerem o dinheiro para articular e conjugar todas as fases da produção. Quanto à heterogeneidade temporal, nunca como hoje a actividade produtiva presente esteve tão estreitamente relacionada com a actividade futura, por isso na vida empresarial o uso de dinheiro e o recurso ao crédito tornaram-se praticamente indistinguíveis. E estas três dimensões de heterogeneidade são agravadas pela coexistência dos espaços nacionais e das companhias transnacionais. Tudo isto só é redutível a um conjunto operativo graças ao dinheiro e exige modalidades fiduciárias inovadoras e diversificadas. Daí o advento de novos tipos de bancos, capazes de actuar no âmbito transnacional e entre os quais não há lugar para delimitações consoante as especialidades, porque elas se imbricam reciprocamente. Como observou The Economist de 16 de Maio de 2009, «se um estabelecimento se comporta como um banco deve ser regulado como banco, o que quer que a sua tabuleta indique».
Os variadíssimos tipos de derivativo — contratos em que um pagamento futuro é derivado do comportamento dos preços de outro activo — e a negociação dos derivativos nasceram da necessidade de conter dentro de limites racionais a incerteza das taxas de crescimento. Os derivativos desenvolveram-se sobretudo a partir da década de 1970, tornando-se os instrumentos de uma economia em que a situação presente é cada vez mais função de uma situação futura que ignoramos, e em que existe uma pluralidade de taxas de crescimento imbricadas, a cuja influência está sujeito o desempenho das companhias transnacionais. Nestas circunstâncias dinheiro, crédito e racionalização da incerteza fundiram-se nos mesmos instrumentos pecuniários, indispensáveis à vida económica. Entre as 500 maiores companhias mundiais, tal como as regista a revista Fortune, cerca de 95% usam derivativos. Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais, num estudo publicado em Novembro de 2009, a negociação das variedades de derivativo não padronizadas, que é o tipo de negociação mais importante, atingiu um valor nocional de 604,6 biliões de dólares, entendendo-se por valor nocional aquele que representa o valor dos activos envolvidos. O valor nocional não está registado na contabilidade das firmas, mas indica o grau de risco implicado nas operações de derivativos. A recente crise financeira deixou bem visível esse grau de risco.
Apesar do risco, como essas modalidades pecuniárias são indispensáveis ao capitalismo contemporâneo, a crise mostrou a necessidade de regular de maneira mais estrita e sobretudo de coordenar o funcionamento das instituições financeiras transnacionais. Mas como efectivar a regulação numa economia que conjuga de modo arbitrário os espaços nacionais e as companhias transnacionais?
Notas
[1] Em economia, o termo output denota o conjunto dos bens e serviços produzidos numa empresa, num país ou num grupo de países.
[2] Chama-se BRICs ao conjunto formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China. Ver a este respeito o segundo artigo desta série.
[3] Denomino aqui, de maneira simples, «pesquisa» o que em inglês se chama «research and development», que vai desde a pesquisa pura até aos estudos acerca da aplicabilidade prática das descobertas e da sua rentabilização em processos produtivos.
[4] Os preços excluindo os alimentos e a energia, os core prices, são os que melhor medem a taxa de inflação ou de deflação a longo prazo.
[5] Taxa de câmbio real em que o valor médio do dólar é calculado em relação a um conjunto de moedas estrangeiras, proporcionalmente ao montante relativo do comércio dos Estados Unidos com esses países.
[6] Os investimentos externos directos são os investimentos típicos das companhias transnacionais. Eles asseguram o estabelecimento, por parte de uma empresa com sede num país, de filiais em outro país ou, pelo menos, de uma tomada de participação que permita uma influência decisiva na administração de empresas locais.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) O declínio dos Estados Unidos
2) A nova hegemonia
3) A China em primeiro plano
4) O problema da produtividade
5) Transnacionalização e espaços nacionais
6) A crise do neoliberalismo
7) Uma crise de regulação
8) A crise de regulação na zona do euro