A tarefa de levar o modelo de organização dos movimentos sociais para a periferia teve esse resultado imprevisível: nossa organização veio trazer respostas para a periferia, mas é a favela que está colocando nossos movimentos em questão. O texto que se segue pretende contribuir com um recomeço de conversa, que trate das novas oportunidades reveladas e encobertas por nossa estrutura organizativa. Por Carolina Malê
Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.
O que foi radical ontem se encontra paralisado hoje. Os movimentos sociais sobreviventes de duas décadas de reação neoliberal vivem agora seu último fôlego, sufocados por fora e deformados por dentro. A falta de rumo não é estática: ela se aprofunda e, pior, se naturaliza. Estamos virando caricaturas de nós mesmos: mística [cerimoniais colectivos] mecanicamente comovente, formação dogmaticamente questionadora, lutas previamente ajustadas ao limite da negociação. A resistência tem limite e os movimentos existentes não podem mais se superar em seus próprios termos.
Não podemos nos contentar com meras análises de conjuntura, quando é a própria lógica de funcionamento dos movimentos sociais que está perdendo fundamento material. O diagnóstico necessário – estrutural – passa, por exemplo, pelos princípios organizativos, que vêm sendo abalados pela história recente, um por um. Como falar em Autonomia, quando estamos quase totalmente dependentes de convênios com o Estado? Em Ação Direta Massiva, quando as bases se esvaziam, já que o povo percebe que as conquistas não saem e assim deixam de ver os movimentos como alternativas viáveis? Em Vínculo Orgânico, quando a relação entre base e militância não é mediada pela luta efetiva? Em Direção Coletiva, quando o isolamento agrava a precariedade organizativa que impede uma verdadeira formação de lideranças? Na ausência de um processo formativo politicamente orientado, a mais simples Crítica e Autocrítica se reduz a avaliação pessoal e a Divisão de Tarefas perde o caráter de distribuição de poder. Não se trata de idealizar o passado, como se antes tivéssemos coerência perfeita, mas sim de perceber que nossos princípios vão se tornando vazios de prática.
Ainda assim, não estamos num fim de linha vermelha. Os movimentos não se rebaixaram – ainda – à adesão descarada realizada pelos grandes partidos eleitorais e grandes centrais sindicais. Os movimentos contam com uma estrutura física e organizativa flexível o bastante para ainda não se dobrar por completo. Os movimentos ainda multiplicam militantes que dominam regras complexas de organização e, de norte a sul do país, temos muita gente experimentada em ocupações e ações ousadas contra o latifúndio, o Estado e, às vezes, contra grandes empresas. Além disso, os problemas contra os quais lutar não param de crescer. E, nunca esqueçamos, a nossa atual paralisia diz mais sobre a capacidade de articulação, ofensiva e cooptação da elite do que sobre a incompetência ou incoerência das direções dos movimentos sociais.
O detalhamento de nossas escleroses poderia seguir longamente, assim como a análise de nosso potencial remanescente. Mas, neste instante, cabe ressaltar que um dos traços mais graves dos movimentos sociais é que não fazemos o diagnóstico radical de nossos impasses nem percebemos bem as novas oportunidades que se colocam. Nosso corporativismo, nossa fragilidade material e os interesses particulares estreitam a autocrítica. Nossa experiência acumulada, nossas heranças e referências limitam a percepção sobre as mudanças na estrutura da sociedade. Giramos em círculo debatendo novos alvos e novas formas de luta, que não escapam de recolocar nossa prática convencional. Há dez anos atrás podíamos elaborar uma Nova Organicidade e sentir que ela era resposta ousada e adequada aos novos desafios. Hoje, nossa estrutura está cada vez mais entravando nosso entendimento sobre a realidade. Nossas organizações possuem grandes virtudes, às vezes tão grandes que nem deixam ver além. O texto que se segue pretende justamente contribuir com um recomeço de conversa, que trate das novas oportunidades reveladas e encobertas por nossa estrutura organizativa.
Entramos no assunto colocando em primeiro plano a aproximação entre os movimentos sociais e a periferia. Há uma década ou mais se espalham pelo país as tentativas de criar ocupações urbanas, assentamentos próximos de cidades, grupos de base em bairros de periferia. As direções perceberam o esvaziamento de suas bases e o inchaço urbano. O futuro passa pela periferia, concluíram. A militância foi então encarregada de levar para os bairros os métodos acumulados no campo. As experiências foram as mais diversas em diferentes regiões metropolitanas. Alguns bons frutos pareciam não compensar os fracassos e as frustrações, que se avolumavam. As avaliações eram recorrentes: a pobreza extrema dificultando a disciplina, o estranhamento com o trabalho agrícola, a juventude distante dos objetivos políticos, a veloz rotatividade fazendo a formação sempre recomeçar do zero. É um diálogo de surdos, dizia um dirigente. Não podemos admitir que nossas mobilizações virem clínicas de recuperação, dizia outro. A percepção geral é de que se trata de um povo degenerado – quase incapacitado para a organização social.
Ora, é essa a avaliação feita pelas direções nascidas e criadas no campo, nas pastorais, nos sindicatos, nas universidades, nos partidos políticos – enfim, é o ponto de vista dos movimentos progressistas dos anos 1980. Alheios à realidade da periferia, esses dirigentes necessariamente enxergam o problema pelo ângulo no qual se formaram. Acontece que existe uma militância que está se formando justamente a partir dessa divergência entre método e periferia e que necessariamente começa a avaliar o problema também pelo ângulo da periferia e não só de suas organizações. E que se recusa em ver ali uma simples degeneração.
Vejamos alguns exemplos básicos, porém contundentes, de como o trabalho de base foi adensando esse outro ângulo. Em primeiro lugar, o mais óbvio, uma vez que a militância em geral não tem grandes espaços de poder a preservar: o inquietante contraste entre base negra e líderes brancos. Em segundo lugar, aquilo que as recentes ações contra o agronegócio corajosamente trouxeram à tona: a desconcertante divergência entre luta radical de mulheres e direção cautelosa de homens. Esses dois desencontros gritantes são confirmados dia a dia, no trabalho de base.
Não temos palavras em nosso vocabulário, conceitos em nossas teorias, páginas em nossas cartilhas e espaço em nossas reuniões para assimilar a dilacerante realidade da periferia. A força de nossas ocupações não encontra meios de dialogar com a impressionante capacidade de sobrevivência da periferia. A militância que vem de movimentos sociais para trabalhar na periferia é levada, por suas próprias referências organizativas, a filtrar o que vê com expressões rasteiras – degenerados, degradados, lumpem, etc. “Esse povo não tem consciência nenhuma”, dizia um militante de movimento social. Mas esses rótulos são derrubados pela convivência, chave do trabalho de base. A força de vontade, o afeto e a inteligência do povo, quando é ouvido, rompem o preconceito e jogam dúvida sobre as referências organizativas. Então, algumas comparações muito elementares começam a ser feitas – e tem início a reflexão.
Toda a nossa solidariedade é despertada quando um de nossos camaradas é preso e ao mesmo tempo não temos nem leitura nem propostas sobre o descalabro do sistema prisional brasileiro. Ficamos orgulhosos em colocar nomes de quilombos em nossos assentamentos e ficamos impassíveis perante o pesadelo da massa de homens, sobretudo negros, enjaulados e também perante o pesadelo das mulheres, sobretudo negras, sustentando famílias desestruturadas. Celebramos as revoltas escravas e vemos as rebeliões atuais como coisa de bandido.
Os vigorosos ideais de justiça semeados pelos movimentos empalidecem com seu próprio silêncio diante das humilhações e do assédio sofridos pelas militantes mulheres cotidianamente, assim como diante da violência permanente sofrida pelas mulheres da base. Fica hipócrita a nossa reação indignada aos informes e estudos sobre repressão policial, quando a violência doméstica está à solta em nossas próprias fileiras e à nossa volta. Nada mais flagrante do que os repetidos casos de maridos que espancam esposas em ocupações e são expulsos – com a família inteira!
Em todo o país, as mulheres, principalmente as negras, se agitam contra o extermínio da juventude, que atinge seus filhos, irmãos e jovens maridos, enquanto nos movimentos só conseguimos oferecer propostas a serem negociadas com o Estado – como uma comissão de judeus que fosse negociar com o nazismo uma redução razoável do número de pessoas tombando em câmaras de gás.
Certa vez, uma companheira, liderança de base, mulher negra, foi vítima de erro médico, que a deixou com seqüelas. A primeira leitura da militância foi de classe: o caso é produto do neoliberalismo que sucateia serviços públicos e do desemprego que cria dependência de serviços sucateados. Ora, ignoramos toda a história do povo negro como cobaia da medicina civilizada; desconhecemos o descalabro da mortalidade materna; desconsideramos o tratamento de médicos que não tocam os pacientes negros e reclamam de seu cheiro. A conseqüência, então, é uma visão limitada à exploração do trabalho, que existe, mas não é tudo.
A grande surpresa, que vem passando desapercebida pelas direções, por mais que a militância insista nas reuniões, é que, no confronto entre os métodos dos movimentos e a realidade periférica, novas idéias e práticas começaram a ser demandadas. Por todos os ângulos, é gritante o desencontro entre a estrutura progressista dos movimentos sociais e a dinâmica assassina que impera na periferia. Nossa solidariedade tende ao formalismo e, sem diálogo com o povo, tendemos ao autoritarismo.
Já vivíamos há muitos anos o problema do limite dos movimentos sociais em termos de luta de classes. O caráter sindical, o corporativismo, o imediatismo das demandas segmentadas e econômicas sempre foram barreiras à radicalidade. É um impasse que permanece atual e que exige uma retomada dos clássicos da teoria da organização política formulada na Europa desde a Comuna até a Guerra Civil Espanhola – e além. Mas o que está sendo frisado neste texto é que a favela retoma essa exigência e a ela soma outras. Coloca-se a necessidade de que a dimensão de classe seja somada a outras duas dimensões, difíceis de nomear, mas que por enquanto atendem pelos nomes de racismo e patriarcado.
A tarefa de levar o modelo de organização dos movimentos sociais para a periferia teve esse resultado imprevisível: nossa organização veio trazer respostas para a periferia, mas é a favela que está colocando nossos movimentos em questão – para quem tenha disposição de perceber. Essa é uma de nossas relevantes oportunidades atuais. O filtro da periferia revela que os limites de nossas percepções se enraízam em algo que vai além de nosso corporativismo ou de nossas heranças. A história dos movimentos sociais no Brasil traz uma verdadeira inspiração para todos os povos e a contribuição de sindicatos, movimentos, pastorais e universidades é indispensável para a periferia. Não se quer renegar o muito já feito. Nossas referências em termos de luta de classes não são desqualificadas pela favela, que também não é berço da verdade. Tudo bem pesado, cabe atentar que racismo e o patriarcado desafiam nossos critérios de esquerda. O anti-racismo e o feminismo, bem combinados à luta de classes, podem carregar algumas das chaves de que carecemos hoje.
Pernambuco, abril de 2010
Excelente diagnóstico, companheira! De uma franqueza na autocrítica bastante rara de se encontrar.
Com efeito, depois da degenerescência do ativismo de bairro (incluo aqui o das favelas, que são mais bairros do que muitos dos bairros formais), dos sindicatos e dos partidos, as cidades brasileiras se tornaram um grande mistério com relação às possibilidades de mobilização da base. Movimentos sociais tipicamente urbanos só ressurgiram em meados da década de 90, e a maioria deles por iniciativa dos movimentos do campo. Foram importados, assim, métodos e valores culturais que pouco tinham a ver com aqueles das grandes cidades contemporâneas.
Na minha experiência de militância junto a algumas ocupações do Centro do Rio de Janeiro (uma fração que se iniciou com a ocupação Chiquinha Gonzaga, em 2004), percebo que há pouco tempo apenas os líderes orgânicos (ou seja, aqueles que vêm da base), que antes dependiam muito dos militantes da classe média, começam a assumir a dianteira da luta para além das ocupações, tanto no plano organizativo, quanto na formulação de um projeto. Cabe destacar que esta é uma fração do movimento dos sem-teto que não tem direções, e as organizações que mais estiveram envolvidas no começo se desfizeram, sobrando apenas alguns militantes “colaboradores”. É possível que essa falta de rigidez organizativa tenha sido benéfica à maturação de alguns elementos da base para a possível criação de uma organização desenvolvida verdadeiramente pelas bases urbanas… Acho tal desenvolvimento fundamental para o sucesso das lutas nas cidades, e gostaria de ter o relato de outros companheiros acerca de situações semelhantes.
Por fim, concordo plenamente com a sua crítica à insistência da militância ao referencial do trabalho, deixando para segundo plano as questões de raça, gênero e, acrescentaria ainda, de gerações (para jovens e idosos). Abdias do Nascimento já fez essa crítica há décadas, e sustentou que, para a realidade brasileira, a grande referência para a formulação de um projeto político deveria ser a multisecular luta dos negros e as suas criações históricas: os quilombos, as agremiações culturais, as resistências nas favelas e periferias etc. É a tese que ele defende em “O Quilombismo”, a qual deveríamos rediscutir com seriedade. A práxis do quilombismo está presente, entre as lutas atuais, no nome de ocupações como Quilombo das Guerreiras (escolhido pelos próprios moradores), em grupos de rap como Z’África Brasil, tendo uma capacidade aglutinadora incrível. Será que a esquerda não deveria levar mais a sério a tese do companheiro Abdias?
Saudações!
O texto é maravilhoso, não tenho nada a comentar sobre ele, porque vale para a realidade que analisa e tem inúmeros pontos de convergência com outras parecidas. Só tenho uma “nota de rodapé” nesta discussão, que não afeta em nada as conclusões a que chegou a autora, ou mesmo as do comentador anterior.
Me assusta às vezes encontrar esta avaliação de que “Movimentos sociais tipicamente urbanos só ressurgiram em meados da década de 90, e a maioria deles por iniciativa dos movimentos do campo. Foram importados…” etc.. Isto é algo que vale para os movimentos do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas não quer dizer, de forma alguma, que tenham validade fora deste eixo, e nem significa tampouco que os movimentos de luta por moradia sejam os únicos a atuar em determinado tempo e espaço.
Aqui em Salvador, por exemplo, o maior movimento de luta por moradia, o MSTB, não tem nada a ver com qualquer movimento de luta pela terra; a maior parte de suas lideranças iniciais vinha exatamente dos movimentos de bairro e sindical tidos como “mortos” no final da década de 1980, e estes que vieram do movimento sindical em sua maioria chegavam de lá após muita desilusão com a experiência. Sem contar que muitos destes “sindicalistas” sempre foram moradores de periferias urbanas e nunca deixaram de participar da vida política de seus bairros.
Além disso, quando os movimentos de bairro “morreram” no final da década de 1980 (o que não quer dizer que as “invasões” hajam diminuído em ritmo), tendo novamente Salvador como exemplo, outros movimentos mostraram-se igualmente combativos, como foi o caso do movimento de lavadeiras.
(Antes que venha a patrulha: por aqui o debate sobre o uso dos termos “invasão” e “ocupação” já existia muito antes de o MST pautá-lo nacionalmente, e “invasão” foi o termo considerado mais adequado pelos movimentos para descrever suas próprias ações. Tanto é que por muito tempo em Salvador chamamos de “invasão” ao que hoje chamamos “favela” por força de certa “carioquização” imposta pela comunicação de massa.)
Se partirmos para outras cidades, o histórico é bastante semelhante. Sempre há lutas acontecendo, e estas lutas, por mais particularizadas e setorizadas, trazem à tona outros conflitos sociais não diretamente ligados a elas. As lavadeiras, por exemplo, reivindicavam mais creches nos bairros e melhoria daquelas já existentes, pauta “típica” do movimento de bairro.
Sendo assim, por que, então, continuamos a fazer a história de TODOS os movimentos de luta por moradia surgirem da história de UM movimento, ou dois? (Sei bem que movimento é este que veio “importado do campo”, e sei também que não é só um, mas não me interessa dizer aqui quais são.)
Algo a se pensar.
Caro Manolo,
Não acho que a importação de métodos e valores do campo se restrinjam a uma ou outra organização, e muito menos ao eixo Rio-São Paulo. E esta importação não diz respeito apenas à iniciativa deliberada de uma organização específica, como no caso do MST em relação ao MTST, mas de diversos e variados militantes cuja experiência veio das pastorais da terra ou, então, mesmo que nunca tenham lutado no campo, tiveram como inspiração os métodos de organizações bem sucedidas de lá.
Você tem razão ao dizer que as lutas nunca desapareceram com a crise do ativismo de bairro a partir da segunda metade da década de 80 (e isso vale para o Rio e para São Paulo também!), mas acho que movimentos sociais com envergadura e com horizontes políticos para além do plano reivindicativo só reapareceram mesmo na segunda metade da década de 90.
De todo modo, acho que a importância do seu comentário está em colocar em evidência a falta de algo como um “inventário”, em escala nacional, deste período de transição das lutas urbanas que vai do final dos anos 80 até o presente, mostrando, ao mesmo tempo, a sua diversidade e alguns pontos de convergência. Só as variações lexicais já dariam bastante pano pra manga! Isso que você falou a respeito do termo “invasões” é muito interessante, e seria bom que tivéssemos acesso aos debates das diferentes frações dos movimentos sociais a respeito dos seus termos e conceitos. Em várias ocupações do Centro do Rio, por exemplo, há um grande esforço em afirmar o termo “ocupação”, pois eles entendem que “invasão” traz uma forte carga pejorativa. Mas, analisando a fundo, percebe-se também uma tentativa de diferenciação para com a experiência das favelas (que no Rio também chamam de invasões, mas em geral quando estão no começo) e das ocupações de edifícios pouco organizadas.
É claro que um trabalho como esse exige um esforço coletivo e, sobretudo, a participação dos militantes que animaram e animam os ativismos. O importante seria evitar tanto um olhar puramente acadêmico quanto a imposição do olhar de uma organização específica. É um projeto ambicioso, mas necessário. Fica aqui a proposta, além minha prontificação em cooperar.
Acho que por geralmente nos inserirmos mais nestes movimentos criados a partir da segunda metadade da década de 90, até por uma questão geracional, não analisamos as outras experiências de movimentos urbanos e de moradia que surgiram a UMM, fundada em 1987, e que continua ativa a seu modo até hoje.
Não creio assim que possamos afirmar que a maioiria dos movimentos urbanos surge inspirado nos movimentos do campo, já que estes movimentos urbanos foram centrais para formação do PT e ainda hoje estão presentes no cenário político. Ao mesmo tempo é inegável que há uma nova leva de movimentos urbanos que se inspiram no MST, talvez por que estes velhos movimentos urbanos não tenham a mesma aura de combatividade.
Ia ficar quieto mas não resisto.
O artigo da Carolina Malê, depois de 4 parágrafos de introdução, coloca “em primeiro plano a aproximação entre os movimentos sociais e a periferia” e finaliza com “o anti-racismo e o feminismo, bem combinados à luta de classes, podem carregar algumas das chaves de que carecemos hoje.” Bem simples, se não fosse de uma complexidade imensa, que não tem como adentrar num breve comentário, como os outros aqui já mostraram.
Antes de tudo, resumindo, quero dar minha contribuição aqui de São Paulo, e pegar carona com Legume, na sua breve contribuição. P. e., a questão geracional merece um aprofundamento, que por mais que não queiram , os movimentos anticapitalistas que se formaram no início do século, estão sentindo o efeito que atingem os movimentos que surgiram antes, de dificilmente conseguir renovar suas “quadras” (sic!), ficando à frente os/as mesmos/as de sempre.*
Como eu, tem como referência São Paulo que, pela formação e origens de sua massa trabalhadora e urbanização conseqüente, há suas peculiaridades que dificultam uma comparação com um Rio, um Salvador ou um Recife (que entendi ser a origem da autora), cada um com sua história de lutas, que às vezes são gritantemente diversas, tanto pela sua distância geográfica e tudo mais. Não tem como botar os Estados que formam a Federação num mesmo saco. São diferentes, da atuação do Estado e seus donos, até a formação histórica das massas. Quem ousaria colocar Polônia junto com a França, num mesmo saco? Não dá. Não tem como ficar nesta lógica generalizante, que é a lógica do capital, que tira do povo sua história, sua iniciativa e sua criatividade em resolver as questões que o interessa. A luta de classes não é algo abstrato, heróico pra entrar nos livros de (contra-) história, se dá ao nível do dia-dia.
Nem ao nível local de São Paulo, com seus imensos satélites, com uma população de 10, 20 a 35 milhões (dependendo do gosto) tem como tirar um fator comum, já que cada bairro, cada região, cada cidade, tem sua história de lutas, que repercutam nas reivindicações atuais.**
Muito importante é entender a política atual “geral” do capital de “retomar a cidade”, e inserir ela de volta ao mercado, dando um final à liberação geral dos últimos 20, 30, 40 anos, colocando a sua “ordem” e impor as suas regras de acumulação de “valores”, as mecanismos que ele usa, e, de contramão, as formas que “os/as atingidos/as” usam para se opor. A nova leva de movimentos urbanos que se inspira no MST, como aliás o próprio MST incentiva (e que nem é tão nova), por enquanto come as bordas do que com certa dificuldade é identificável como “a“ cidade. Curioso como a academia não falhou e descobriu este novo filé e já deu vários nomes ao fenômeno. Os movimentos urbanos, por sua vez, têm uma grande resistência de se aliar, por motivos mais de que óbvios.***
Só pra finalizar, não sei se concordo com a crítica que os movimentos seriam mais voltados à “demandas segmentadas” ou reivindicativos, claro que são. Seria bom se fossemos todos/as filósofos/as, estudiosos/as dos clássicos, mas não tem como negar que quem está no movimento de moradia, está nele porque quer moradia. Há quem quer saúde, educação pros seus filhos, matar a fome, transporte. Reivindicações que deram início aos movimentos “populares” – prefiro, ao invés de “sociais” – no sub-urbano (ou seja, na periferia) a partir dos 70, nas recém-criadas cidades-dormitório (política do Estado!), como Tiradentes, que acordaram de manhã sem serviço público algum. Há nesta “segmentação” um perigo? Há. É impressionante como, se tratando de uma população que nos “clássicos” é tratada como lúmpen (sem consciência de classe, reserva de mão de obra, etc.), nos últimos dez anos, houve um surgimento de movimentos “reivindicativos”, dos/as catadores/as de recicláveis e da população de rua, etc., há imensas dificuldades de se comunicar entre si e entre outros movimentos como de moradia, dos camelôs, etc., quando há quem está nos quatro! É igualmente impressionante como o Estado (junto com ong’s, faculdades, igrejas, empresas com “responsabilidade social”, etc.) caíram em cima para desviar suas reivindicações para um leito entre margens mais seguras.
Lembro que uns anos atrás, perguntei ao Gegê (que ontem celebramos que foi solto provisoriamente), porque a UMM com todos os seus ramais pela cidade inteira não organizava pelo menos um campeonato de futebol, e a resposta foi: “Pois é, está na luta por moradia”. Que me lembra da luta dos cortiços, outro assunto, que dificilmente há relação com o campo, por mais que houve (ainda há) pastorais envolvidos.
É isso, por enquanto, se está confuso é porque sou e com pouco tempo para elaborar algo melhor.
Brjs, Eric
* A vantagem pode ser que assimilaram uma boa dose do legado anarquista, que evita sua institucionalização e dá espaço para renovação e procura de outros caminhos, que não evita que a nave-mãe fica orbitando, já que nem anarquista é santo. Dou o maior valor a iniciativas como “A Outra Campanha” e outras, se não à base de uma análise profunda de nossa realidade, pelo menos pela intenção de criar coisas novas. E posso estar errado, mas o PassaPalavra faz parte deste esforço de não ficar estagnado.
** São Paulo no início dos anos 70 tinha algo como 1% da população morando em “favelas”, já nos meados dos anos 90, 25%.
*** Entra a antiguíssima questão do “reformismo”, que faz que aqui hoje boa parte da esquerda “tradicional”, se achando no “poder”, trabalha em função de que o Estado se torne menos cruel, menos repressivo. Prefiro nem entrar no assunto, já se mostrou um desastre em outras épocas.
Seria preciso aprofundar, a partir desse texto lúcido e inspirador, a reflexão do peso da igreja católica misógina e racista ( Bento XVI é Benedito em todos os países de língua espanhola) na origem de quase todos os movimentos sociais brasileiros. Com a exceção dos movimentos feministas, evidentemente. Nunca haverá uma pastoral feminista.
A urgência de articularmos o anti-racismo e os feminismos, revisando os discursos teóricos, entendendo o quanto a categoria “classe” nos fez ceg@s para “raça” pode ser um caminho fértil sobretudo se colocado nas perpectivas pós-coloniais. No Brasil, não nos esqueçamos, “classe” foi intituída como “raça”.
E “branquitude” é categoria invisível. Certamente, como o texto instiga, passa por essas questões a radicalização e a superação da atual paralisia dos movimentos.
Cara Ana Reis,
Eu não creio que a categoria classe nos tivesse deixado cegos para a categoria raça. Bem pelo contrário, parece-me que a categoria classe nos permite entender a existência de classes sociais antagónicas com a mesma cor de pele. Acerca deste assunto, recordo a série de artigos que o Manolo e eu escrevemos sobre o «Retorno a África», e nomeadamente este:
http://passapalavra.info/?p=26128
Isto sem esquecer que, por outro lado, com frequência a categoria classe serviu simplesmente de pretexto para instituir o racismo no interior da classe trabalhadora. É uma dialéctica complexa, que me parece que vai sendo clarificada pela luta dos trabalhadores não brancos que ao mesmo tempo se assumem como membros da classe trabalhadora e como membros de culturas até agora marginalizadas.
Quanto às consequências que a misoginia da Igreja Católica poderá ter tido sobre os movimentos sociais, parece-me que as suas observações são instigantes. Mas eu, que sou ignorante nestas questões, pergunto-lhe: na sua opinião, as Igrejas Evangélicas no Brasil têm uma postura diferente? Não me refiro à doutrina, mas ao posicionamento prático. Por que motivo as Igrejas Evangélicas crescem tanto entre as camadas mais pobres, em detrimento da Igreja Católica?
Caros João Bernardo e Ana Reis,
A questão da relação entre a misoginia estrutural da Igreja Católica e a sua influência sobre os movimentos sociais é complexa. Mesmo que nunca se tenha produzido algo como uma pastoral feminista, é preciso lembrar que as Comunidades Eclesiais de Base cumpriram um papel fundamental na emergência dos Clubes de Mães, os quais foram importantíssimos para a afirmação da mulher na vida política nos anos 70 e 80 (como mostrou, de maneira brilhante, Eder Sader em “Quando novos personagens entram em cena”).
É bastante provável que a derrota da Teologia da Libertação no interior da Igreja – e a subsequente afirmação da Renovação Carismática (seguida agora pela “Renovação” ultraconservadora do Ratzinger) – seja parte da razão pela qual a Igreja tenha perdido tanto espaço para os neopentecostais. Ela castrou seus próprios canais de articulação comunitária com as camadas populares, deixando o caminho aberto para novas igrejas que souberam muito bem articular valores comunitaristas com o imaginário capitalista.
Caro João Bernardo
não estou jogando “classe” fora. falo do lugar de mulher branca,classe média, que sempre se pensou “de esquerda” e achava que estava lutando e trabalhando por todos e todas as pessoas oprimidas. quando caiu a ficha da raça, vi que havia um enorme buraco cego na minha visão de Brasil e de mundo. essa ficha muda tudo, não é?
quanto `as igrejas, todas são misóginas, ferozmente patriarcais. o deus único e masculino já diz tudo… a católica tem um peso maior por conta da longa história e dos longos braços de poder que manejam sempre, apesar de serem, no Brasil apenas 17 mil padres. se comparar com a torcida do Corinthians….
pelo que me contou uma ex noviça, muito da teologia da libertação foi feita pelas freiras – um aspecto a ser investigado para entender o que aconteceu com esses discursos dentro da i. c.
emancipar os pobres tira o álibi do poder (sobretudo econômico) da hierarquia, não nos esqueçamos. o que fariam os padres sem os pobres?
Eduardo, o meu querido amigo Eder Sader falou dos clubes de mães. é preciso ver como esses novos sujeitos políticos se apresentam, do ponto de vista feminista. “mãe” como sujeito político é a reafirmação do papel de gênero, uma limitação que se vê até hoje sobretudo nos movimentos sob as saias dos padres. no último 8 de março em Salvador,por exemplo, as mulheres do MST estavam de um lado, as feministas com os cartazes defendendo a legalização do aborto de outro. elas nem sabiam que mulheres eram aquelas, apesar de abortarem e sofrerem a clandestinidade.
o que explica “movimento de mulheres” e “movimento feminista” não serem exatamente a mesma coisa? (sem falar nos feminismos negros não se identificarem com discursos dos feminismos brancos, que é outra conversa).
quanto `as outras igrejas, é tudo pior ainda. os exorcismos, a gritaria, continuam o domínio patriarcal sobre os corpos das mulheres, que, como diz Rita Segato, são o território das igrejas. outro dia vi na TV uma pastora ou bispa (são logo tod@s bisp@s..) dizendo”mulheres, submetam-se. deus quer que a mulher seja submetida a três homens: ao pai, ao marido e ao pastor”. já pensou o que vc sentiria ao ouvir um bispo te dizendo submeta-se `a sua mãe, `a sua mulher, `a pastora? nos anos 60 diríamos que isso é coisa da CIA. nunca mais dissemos isso…
o apelo do imaginário capitalista ainda é mais atraente que o do socialismo ou do anarquismo. seria interessante saber o que dizem hoje as pessoas que cresceram nos países ditos comunistas vivendo no mundo hollywoodiano do capitalismo imaginado virado real. por menos comunistas de verdade que fossem esses países, alguma coisa de melhor tiveram. mas o imaginário nunca transcendeu o mundo da posse, da ilusão do consumo. será culpa do pensamento patriarcal que não foi superado? a primeira propriedade não foi os corpos das mulheres?
quanto aos valores comunitaristas, será mesmo que são articulados por elas? vejo tanto individualismo nos discursos…
é o projeto político desse pessoal que me apavora. a folha de são paulo acha que é o maior jornal da America Latina. tem cerca de 300 mil exemplares . a Folha Universal 2 milhões e 300 mil. e o partido do bispo Macedo (que de puro escárnio se chama republicano) tem o vice presidente da república. e todo mundo diz com naturalidade” bancada evangélica”. socorro!!!!
Um comentário bem rápido de quem está um pouco cansado no momento, para escrever.
É sobre a discussão de gênero e racial, já que ela apareceu nos comentários também.
Claro, o artigo em questão é bom, faz críticas pertinentes. Porém a conclusão me surpreendeu, já que a questão de agregar a questão do racismo e machismo (ou patriarcado, como se queira) às questões da esquerda ou de classe, não é nova. Para dizer a verdade já tem uns séculos, o que portanto levaria a crer que a periferia deste milênio não coloca questões novas, se se o que se retira dela é principalmente isso, o que por sua vez contradiz o que seria a meu ver tese central do artigo.
Gostaria de poder comentar o texto com mais calma e profundidade, e pretendo faze-lo em breve. Mas por enquanto acho que o diagnóstico é perfeito, e muito fácil de ser percebido (só comparar uma letra de rap a um documento de partido ou movimento social), uma pena que infelizmente a esquerda aparentemente esteja mais preocupada com quais botões vamos apertar no começo de outubro.
Queria contribuir para a reflexão sobre uns aspectos do debate. Tenho a impressão de que quando comentamos sobre as formas que os trabalhadores da periferia se organizam, ou tentam se organizar, esquecemos que existe uma tensão permanente em um projeto burguês que se realiza todos os dias por esses cantos. De uma maneira geral, é impossível discutir as formas de organização de lutas na periferia sem entrar em pelo menos na analise de qual o papel, as tendências e os limites das três principais forças: o tráfico, a igreja e as associações de moradores.
Por mais que as tentativas vindas dos movimentos sociais de alguma maneira transportassem seus métodos (no caso do MST, um método voltado para disciplina no campo) de outras experiências (o que é lógico) isso por si só não explica a “falência” destes projetos. Isso só seria verdade se apenas as organizações de esquerda fossem os únicos sujeitos ativos e relevantes nesta esfera. Mas não é o que acontece. Em São Miguel Paulista, por exemplo, muitos “militantes orgânicos”, como falou alguém mais acima, são partidários do Maluf e isso não por mera ignorância, mas por respostas burguesas efetivas para a vida dessas pessoas. Penso que é importante pensar nessa dinâmica.
Em resumo, acho que é importante começarmos a levar em consideração que a burguesia tem planos integrativos pra periferia (baseado no binômio repressão-cooptação) que são bastante eficazes e ver como que o tráfico, a igreja e as associações de moradores se ajustam (ou não) a estes planos.
Gosto quando o debate segue para esse âmbito.
Pois é, Rodrigo, acho que você tocou num ponto fundamental para se pensar a luta nas periferias hoje, que é a relação concreta com as facetas que o capital assume no cotidiano desses locais. Você citou o tráfico, a igreja e as associações de moradores. A Carolina, em seu contundente texto, fala do racismo e do patriarcalismo e de como os métodos pré-concebidos dos movimentos sociais precisam ser repensados para essa realidade que a periferia impõe. Você cita o binômio repressão-cooptação como bastante eficaz nas periferias. Fiquei pensando nos exemplos que você deu, como o tráfico, por exemplo, oferece ascensão de poder, grana, muitíssimo veloz e “fácil” para aqueles que vivem num mar de misérias. De repente quem era o zé ninguém, vira “o” banbanban da quebrada, dinheiro fácil, drogas fácil, status fácil, poder de consumo (tão sonhado) fácil e, muito rapidamente, morte fácil. Aí é um lance de pensar também em mais um elemento que se soma a todos esses já citados, que é a própria indústria cultural que encontra terreno fertíssimo nas televisões de cada casa, de cada barraco, que ao mesmo tempo aparece como escape das desgraças e a projeção dos sonhos de outra vida, de outro consumo. A violência, então, come solta mesmo. Mas voltando aos três exemplos citados. Se pensarmos nas igrejas também é isso aí, tem os que vão pro tráfico, tem os que vão procurar a salvação ou a sociabilização nos cultos, muitas vezes o lazer oferecido na quebrada. E para os que se destacam como “líderes comunitários”, as associações de moradores aparelhadas pelos políticos/mafiosos da pior espécie é um prato cheio. Aí é mais uma coisa que se desdobra em outras tanto quanto complexas. As associações que podem aparecer forjando-se de espaços coletivos de luta dos moradores, são e estão na verdade, articuladas com todas as forças contrárias à luta do povo. Deputados, construtoras, donos de lotações, etc., etc., estão bem amalgamados por trás de inúmeras associações. Ou seja, tráfico, igreja, associações, que cooptando moradores sintetizam sempre saídas individuais nas periferias, e obviamente, todas muito bem dentro do sistema, ou melhor, aparecendo concretamente como o sistema, colocam inúmeros desafios para a esquerda, ou para aqueles que encampam suas lutas nas quebradas. Como mobilizar hoje nesses locais? Quais os canais de diálogo? Quais alternativas podemos apontar quando se tem uma esquerda em frangalhos, lutas setorizadas, fragmentadas? Como se coloca um horizonte de luta cotidiana novamente nesse cenário? Sei lá, algumas questões que sempre aparecem…