Mario Castillo entrevistado por Duanee Suárez García

 

Desde há vários anos que tem lugar em Março o evento Observatório Crítico, apoiado pela AHS [Asociación Hermanos Saíz, uma associação cultural] da Província de Havana e coordenado por Mario Castillo (chefe da secção de crítica e investigação, coordenador da Cátedra Haydee Santamaría e investigador do Instituto Cubano de Antropologia). Em vésperas de uma nova edição, conversámos com o Mario.

Qual a origem do nome deste evento?

Mario Castillo

Partiu-se da necessidade de intervir num vazio existente na AHS da Província de Havana, e na AHS em geral, relativamente a um espaço de análise sócio-cultural do ambiente criativo e da própria criatividade jovem, entendendo esta última num sentido que ultrapassa o meramente artístico. A criação jovem como poesis, no sentido originário, totalizador. Por outro lado, a Cátedra Haydee Santamaría estava já a articular uma série de espaços e encontros com linhas temáticas que tinham a potencialidade de constituir, nas suas análises sócio-culturais, um núcleo que ultrapassasse os limites de Havana e os limites disciplinares.

O nome deve-se a Dmitri Prieto e Pavel Alemán, fundadores da Cátedra, que se inspiraram parcialmente noutro evento organizado pelo deletério Ignacio Ramonet, um intelectual que estava na moda nos mass media cubanos no início da década de 2000.

A maioria dos trabalhos expostos no evento poderia classificar-se como «críticas sociais alternativas», não tanto pelo tema que abordam como pela perspectiva «diferente» que empregam. Esta selecção de textos é deliberada? E qual o motivo que a impulsiona?

Sem dúvida que é deliberada. No que diz respeito ao «alternativo», o termo foi discutido por alguns no âmbito da Cátedra, porque o alternativo define-se sempre perante o espelho do comum, perante o dominante, e acaba assim por se converter numa nova mercadoria intelectual, num exercício oco, destinado a distinguir uma elite intelectual que, ao fim e ao cabo, nada cria para além de viagens e doutoramentos, etiquetas geracionais espúrias, etc.

Penso que um objectivo comum nos Observatórios que organizámos tem sido, mais do que cultivar o alternativo, gerar um espaço horizontal de construção não só de conhecimentos mas de interacções, de formas de relacionamento colectivo, e assim, a partir daí, observar os conhecimentos e as perspectivas de análise que se geram.

Interacções que têm sido mais ou menos eficazes, e futuramente devemos trabalhar melhor este aspecto, mas é assim que o prefiguramos: um espaço onde tem tanto valor analítico uma obra plástica como um projecto comunitário, uma investigação monográfica, um ensaio de crítica sócio-cultural ou um documentário. E conseguimo-lo sobejamente neste último Observatório.

Abandonámos definitivamente o hábito funesto de convidar personalidades para «realçar o nível do evento», as «palestras professorais», a leitura de teses. Na medida das possibilidades dos participantes, para o próximo Observatório pretendemos trabalhar melhor com os participantes na divulgação e na organização geral, de modo a que seja coerente com o resto.

Queremos um mundo não-hierárquico e participativo, e temos de o construir desde já. Neste sentido foi muito revelador o diálogo que tivemos com as companheiras vindas de Guantánamo.

Elas confessaram-nos a surpresa, e em certas ocasiões a perplexidade, que sentiram nas sessões do Observatório. Acostumadas a eventos académicos ritualizados, que a maioria dos jovens intelectuais assume acriticamente ou mesmo reproduz com entusiasmo, desde o vestuário até à organização das sessões, passando pelos temas, aquilo acabou por constituir para elas uma experiência inédita, a que se juntaram activamente, e isto tem efeitos muito frágeis e ao mesmo tempo muito poderosos, de ida e volta; tínhamo-las conhecido num espaço bem estabelecido dentro do circuito de eventos académicos como é o Festival da Nacionalidade em Bayamo, e olha os frutos que essa arvorezinha deu agora…

Achas que este tipo de análise define a jovem crítica cubana actual? Na tua opinião, quais são os principais elementos que a caracterizam?

Em muitos aspectos a jovem crítica cubana actual distingue-se pouco da velha crítica cubana actual. Quanto aos processos críticos, ocorreu uma actualização a partir de uma incorporação discreta das imensas contribuições de Pierre Bourdieu, Néstor García Canclini, Edward Said, Jesús Martín Barbero, Beatriz Sarlo, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, além de muitos outros, mas no melhor dos casos foram consideradas como uma actualização da moda académica e não como ferramentas destinadas a construir caminhos analíticos próprios; a partir dos problemas legados pela história cultural nacional, o que restou potencia essas renovações, quando elas ocorrem.

É que, como já há algum tempo Pedro de Oraa disse à geração dos artistas plásticos da década de 1980, «o actual não é só o presente, é o actuante», tanto aqueles elementos do passado que ainda continuam sem resolver, como os problemas e necessidades gerados pela própria acção, pela prática político-intelectual no tempo presente.

Por outro lado, acho que existe uma atomização muito grande entre quem pratica a jovem crítica cubana actual, tanto entre nós como entre os restantes criadores, excepto entre os artistas plásticos, onde surgiu a figura do curador, e entre os musicólogos, que cada vez mais têm uma presença mais sã e prometedora quando se trata de analisar os processos culturais do país.

Regressámos há pouco de Sancti Spiritus, onde organizámos o vídeo-debate itinerante América Profunda, um espaço que nos foi aberto na Cátedra Haydeé Santamaría para interagir com outros criadores no interior da AHS, com materiais que documentavam experiências de auto-organização de jovens na América Latina de hoje, para debatê-las, analisá-las, etc. Estiveram presentes outros jovens, mas ninguém da secção de crítica e investigação da AHS daquela província assistiu ao encontro! — excepto Yasmine León, a presidente da secção, que tanto se empenhou na organização. Isto decorre de processos mais vastos, que superam a Associação e perante os quais ela teve de se situar.

A crítica e a investigação têm estado a perder terreno em todos os níveis do ensino cubano, perante o predomínio da instrução, com um sistema de ensino estatal, que não peca por ser maciço, mas por ser uniformizador e centralista, e a que todos, tanto professores como alunos, queremos fugir, porque somos transformados em objectos. Trata-se de um sistema educacional que virou costas aos mais vigorosos projectos pedagógicos revolucionários dos séculos XIX e XX, desde a pedagogia libertária de Francisco Ferrer, Sébastien Faure, etc., até à educação popular de Paulo Freire, entre outras propostas, não permitindo que alunos, pais e comunidades tenham voz numa questão tão estratégica como é a educação.

A insistência estatal preferiu dedicar-se a aperfeiçoar o modelo positivista introduzido por Enrique José Varona na época da intervenção norte-americana, orientado para criar profissionais qualificados, prontos para a exploração assalariada por quem melhor lhes pague. Por outro lado, nós, os jovens cubanos, temos sido chamados desde há décadas para executar objectivos históricos, mas nunca para os formular. O resultado de tudo isto é o fenómeno sociológico do abelardito, o jovem licenciado estudioso que não participa em nada e que rapidamente entra para a Associação para ver o que lucra com isso… Daí resulta o vazio da crítica, ainda que felizmente, como diz Rubén Blades, a vida esteja cheia de surpresas…

Como classificarias o evento sob o ponto de vista da instituição (AHS)? Existem outros espaços da instituição que sigam a mesma orientação?

Trata-se de um êxito da AHS e nosso. O Observatório Crítico é uma pequena maquete, de onde poderão sair relações mais sãs entre as colectividades e o Estado numa sociedade de transição para o comunismo libertário, que é o que já deveria ter sucedido há algum tempo em Cuba: um processo de transferência das funções estatais internas para as colectividades laborais e sociais. Quer dizer, nós organizamo-nos para preparar um evento e a nossa organização atribui-nos um orçamento, junto ao de que já dispomos, e agora, considerada a Associação como uma ONG, esta concepção aprofunda-se e amplia-se. Isto confirma a tese de que a AHS, apesar de tudo o que se possa dizer, é das poucas associações do país que funciona a partir do que organizam os associados de base, com a sua concepção de organização e os seus conteúdos próprios. É isto que procuramos ao defendermos que cada província desenvolva um programa de eventos próprios e identificáveis no conjunto nacional, com perfis próprios.

Isto é muito valioso, num contexto institucional verticalizado ao extremo como é o do nosso país. Este funcionamento de baixo para cima não foi reivindicado por ninguém, não é uma conquista de ninguém, nem sequer constitui uma parte integrante do discurso oficial da AHS; simplesmente, essa forma de organização tornou-se inevitável, se não a criança morreria antes de ter nascido.

Uma organização de criadores, que conceba a criação como um facto passível de ser doseado administrativamente a partir da cúpula dirigente, está condenada a morrer. O que nós consideramos útil em tudo isto é a necessidade de levar esta mesma perspectiva à integralidade da sociedade cubana, se quisermos retomar o caminho da Revolução, ultrapassando a palavra-de-ordem que serve para disfarçar os interesses especificamente estatais da sua auto-reprodução, dissimulando-os sob um conceito prestigiado.

Uma revolução social é uma criação colectiva, onde o artista são as colectividades soberanas auto-organizadas. Já há muitos anos que devíamos ter passado dos «Comités de Defesa…» para os «Comités de Desenvolvimento da Revolução»; e sob este aspecto o bloqueio não constituiu um obstáculo, mas uma oportunidade prática enorme, sequestrada por aqueles mesmos que desde 1982 formularam a «doutrina da guerra de todo o povo», pela qual, com outras palavras, reconhecem que as colectividades organizadas de maneira local e descentralizada constituem a melhor defesa contra a agressão imperialista, e a isto nós acrescentamos: e para a criação de uma cultura socialista autêntica, plural e rica, nascida das necessidades mais primárias da defesa militar, da alimentação e da vida colectiva. A «nova sociedade» começa aqui, agora e em cada momento, senão nunca nascerá, e para isso não é de somenos a contribuição que possa ser dada pela experiência da AHS.

A partir das coordenadas que descreveste, onde situarias os teus trabalhos de pesquisa? E porquê?

Os meus trabalhos de pesquisa têm como objectivo desvendar os traços das lutas de classes no processo cultural cubano, analisar a cultura como o cenário silencioso, mas duradouro, onde se expuseram os grandes conflitos que rapidamente as políticas formais tentaram resolver no âmbito dessas mesmas lutas de classes.

Uma perspectiva classista da cultura é um instrumento poderoso para suscitar a compreensão dos fenómenos sociais que estão a ocorrer hoje em Cuba, sobretudo porque os vários sectores sociais que hoje se estão a articular em Cuba com identidade própria não podem organizar-se formal e explicitamente. As tensões entre «mikis» e «repas», por exemplo, revelam um conflito entre a juventude de classe média e alta de Vedado, de La Víbora, de Nuevo Vedado e os de San Miguel del Padrón, de Marianao, de Centro Habana… A cultura «miki» e «repa» são duas formas juvenis de articular a sua própria filosofia política do mundo, a partir de uma mesma situação de alienação perante a história e a cultura cubana precedente. O objectivo da minha investigação é desenvolver os instrumentos para abordar a realidade cubana contemporânea e para proceder a uma nova leitura da história de Cuba a partir desse futuro que já está por cima de nós.

Falemos do Prémio Calendário de ensaio. Na tua opinião, esta investigação é um expoente da crítica que a AHS promove e apoia?

Não sei o que possa haver de comum entre o meu ensaio sobre o exotismo oriental cubano e os outros trabalhos que ganharam este prémio anteriormente. Teria de se fazer uma análise mais profunda das relações existentes entre os trabalhos premiados para se poder começar então a responder a essa pergunta. Seria realmente interessante fazer esse trabalho.

Como imaginas um sistema educacional diferente, em Cuba?

Acho que, em primeiro lugar, criando as condições para um conjunto de mesas-redondas provinciais, municipais e por conselhos populares, onde intervenham alunos, pais, professores e comunidades para discutir o tema dos tipos de ensinos — no plural — que pretendemos; e que a imprensa sirva de meio para se conhecerem essas propostas e discussões. Para que não aconteça o mesmo que com os debates de intelectuais que se iniciaram na Casa das Américas.

O país está profundamente organizado para tudo isto, sabêmo-lo bem; o problema é que essa organização só é utilizada para decretar orientações estratégicas que mantenham tudo tal como está. Nesta altura do campeonato já compreendemos que ninguém, excepto a nossa capacidade de criar, errar e rectificar colectivamente, nos permitirá salvar-nos dos cenários do futuro que nós próprios gerámos, com a tendência para delegarmos responsabilidades em «quem sabe o que faz».

Especificamente na universidade, que conheço de mais perto, defendo que se coloque em prática o conceito de pluriversidade, que implica a criação de espaços de produção e socialização de conhecimentos, onde se parta do princípio de que este processo é multidireccional, de que coexistem múltiplos saberes e que, portanto, não é suficiente a triste e arrogante «extensão universitária»; e mais ainda, que esta não está a cumprir o que devia, como na época de Mella e de Alfredo López, tendo certamente sido este quem atraiu Mella, e não o inverso, em torno da ideia de que a universidade popular era uma versão crioula da escola racionalista do pedagogo anarquista catalão Francisco Ferrer i Guardia.

E no que diz respeito ao interior do âmbito docente universitário, penso que a organização do plano de estudos em cadeiras é fatal, pelo menos nas chamadas ciências sociais (partindo do falso pressuposto de que as outras não são sociais também). O que sucederia se em vez de haver cadeiras na universidade houvesse problemáticas? Por exemplo, a energia nuclear como problema, não como realidade naturalizada, atravessa um conjunto de especialidades constituídas e pode ser analisada a partir de perspectivas físicas, químicas, antropológicas, politológicas, sociológicas, estéticas, arquitectónicas, etc.

Ao contrário do que até agora sucedeu por todo o lado com os planos de estudos, que erguem delimitações e muros temáticos para as suas especialidades, instituindo fatais certezas disciplinares, tratar-se-ia de criar linhas temáticas de existência limitada, mas rigorosas, cujo efeito seria gerar novos campos de problemas e perspectivas de análise sempre renovadas, a partir da intereacção entre tradições disciplinares, linguagens e saberes.

O cinismo do mundo académico é tal que, quanto mais se fala de transdisciplinaridade e de multidisciplinaridade tanto menos se pensa em criar condições para esse processo nas instituições docentes; porque onde se põe em causa a universidade neoliberal, orientada para o mercado de trabalho, não se transcende a universidade estatal que obedece aos mesmos pressupostos académicos, com objectivos encobertos pela retórica do Estado nacional, mas onde a sociedade também não possui qualquer capacidade de intervenção. A universidade deve organizar-se em função dos interesses de toda a sociedade. Se continuarmos a cozinhar de novo o modelo da universidade tecnocrática, modernizante, e afinal capitalista, legada pelo iniludível Enrique José Varona, estaremos a reeditar a história de um fracasso.

Originalmente publicado em http://www.esquife.cult.cu/revista/68/05.htm
Tradução: Passa Palavra
As fotografias devem-se ao Observatório Crítico, excepto a última, que é de Janis Wilkens.

2 COMENTÁRIOS

  1. Bom saber que a “esquerda libertária” esteja de alguma forma se articulando em Cuba. Alguém tem mais algum material sobre isto?

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