Para além da “guerra” contra o tráfico. Por María José Rodríguez Rejas [*]
1. As particularidades da militarização no México
O México constitui um caso paradigmático para o estudo do processo de militarização na América Latina. Nele aparece o conjunto de variáveis tanto externas quanto internas que podemos encontrar parcialmente em outros países da região, incluindo a Colômbia. Mas, além disso, a velocidade do processo não tem comparação. Em pouco mais de uma década deixamos de ser a exceção no que se refere a golpes de Estado, ditaduras militares e intervencionismo militar aberto [1], em relação com a maioria dos países da América Latina, e passamos a ser o exemplo de militarização regional junto com a Colômbia.
A militarização do país tem profundas raízes que se estendem muito além da chamada “guerra” contra o tráfico. Esta é a parte na qual a mídia centra a atenção do espectador, mas por detrás disto, o processo de militarização é o resultado de duas tendências que confluem e se retroalimentam: o Projeto de Defesa Hemisférica [2], que responde aos interesses geoeconômicos e geopolíticos dos EUA; e, por outro lado, à ortodoxia neoliberal que prevalece no governo e nas elites do país. Por razões de espaço, vamos focar neste segundo ponto.
Enquanto em outros países do continente diversas políticas distributivas entraram em cena, nós mantemos o mesmo rumo há trinta anos. Seguimos imersos em políticas altamente concentradoras que aumentam a desigualdade, a exclusão e a exploração. Tal nível de enriquecimento do capital nacional e estrangeiro só tem sido possível eliminando as mediações. Qualquer conflito acabou tendo, nos últimos anos, como última saída, o uso da força. Assim, é recorrente o apelo aos corpos armados e policiais em nome do Estado de Direito – que não é outro senão o das minorias enriquecidas – e do chamado “progresso”. Os exemplos são muitos e variados: Atenco, Oaxaca, Chiapas, etc. Desta forma, as Forças Armadas passaram a ser a garantia da governabilidade conservadora e do projeto das elites.
O balanço destes vinte e cinco anos de política neoliberal é de crescimento nulo, ao ponto que, desde 2007, nosso país obteve o pior desempenho da América Latina, e desde 2003 estamos abaixo da média latino-americana [3]. Mas tal deterioração se apresenta desde o início das políticas de ajuste estrutural. Assim, entre 1983-88, o crescimento médio foi de 0% e chegou a -6,2% em 1994 [4], para chegar novamente a -6,5% em 2009. No entanto, o capital financeiro foi adquirindo um peso central na economia – cresceu 18% entre 2000 e 2005 – [5], e o salário real perdeu 70% de seu poder aquisitivo [6]. A fuga massiva de capital é uma prática permanente da elite que coloca seu dinheiro em paraísos fiscais ou investe no exterior (em 34 anos cresceu 1797%) [7]. Entre fins de 2008 e inícios de 2009, a saída de capitais subiu a 50.000 mdd. [8], cifra que está acima do ingresso petroleiro e que duplica com a entrada de remessas. Quanto à dívida externa, duplicou-se numa década, para chegar a 216.000 mdd. em setembro de 2010. Quer dizer, o cenário é muito mais do que complicado, sem sermos retóricos…
Socialmente, este cenário econômico se traduz num nível de concentração da riqueza espantoso. De acordo com dados do próprio Banco Mundial, os 10% mais ricos concentram mais de 41,2% das riquezas nacionais, enquanto os 10% mais pobres apenas têm acesso a 1,2%. A pobreza atinge já 80 milhões de mexicanos [9]. Definitivamente, esta é a representação de dois projetos de vida e de país.
Este é o contexto, necessário para entender porque são eliminados os mecanismos de mediação, já que qualquer distribuição, por mínima que seja, afeta tão interessante taxa de lucro. Assim, o uso da força, através da militarização da política, é um recurso prioritário no marco da governabilidade. Daí que em apenas uma década, de 1995 a 2006, o número de efetivos aumentou 50,5%, e o orçamento da segurança e defesa duplicou entre 2006 e 2009.
Até agora, os grandes excluídos não são uma real ameaça à governabilidade, sua capacidade organizativa é limitada e se exprime a nível local, mas sem articulações regionais e nacionais. Porém, constituem um potencial crescente de ingovernabilidade que encaixa perfeitamente com a concepção da “segurança preventiva”, presente nas diretrizes de segurança e defesa nacional, na legislação e nos acordos com os EUA (ASPAN e Plano México). Esta tendência legaliza e legitima a governabilidade conservadora. No mesmo sentido, a luta contra o tráfico – para além de que este seja um problema real e muito grave – é funcional à dita governabilidade. Uma das particularidades históricas da situação atual é que, pela primeira vez, assistimos à criação de um aparato legal e institucional do processo de militarização, não só a nível nacional, embora este seja o foco deste trabalho, mas que também articula-se com a estrutura legal e institucional do Projeto de Defesa Hemisférico e, portanto, com os interesses de segurança nacional dos EUA na América Latina.
2. Transformações institucionais e legais no marco da militarização
As reformas legais em matéria de segurança, aprovadas nos últimos anos, colocam-nos numa situação sem precedentes até então, ao mesmo tempo em que se vão apagando as fronteiras entre segurança pública e segurança nacional.
As primeiras modificações podemos encontrar em 1996 com a criação da Lei Federal Contra a Delinquência Organizada, reformada e ampliada em 2004. Ela define, no seu Art. 2: “Quando três ou mais pessoas se organizarem de fato para realizar, em forma permanente ou reiterada, condutas que por si ou unidas a outras, têm como fim ou resultado cometer algum ou alguns dos delitos seguintes, serão punidas por esse fato como membros da delinquência organizada” [10]. Os delitos a que se refere são, entre outros, o de terrorismo, que foi definido na reforma do Art. 139 do Código Penal, como aqueles: “delitos que utilizando substâncias tóxicas, armas químicas, biológicas ou semelhantes, material radioativo ou instrumentos que emitam radiações, explosivos ou armas de fogo, ou por incêndio, alagamento ou por qualquer outro meio violento, realizem atos contra as pessoas, as coisas ou serviços públicos, que produzam alarme, temor ou terror na população ou num grupo ou setor dela, para atentar contra a segurança nacional ou pressionar à autoridade para que tome alguma medida” [11]; definição que é praticamente uma cópia da norte-americana. Na reforma de 2007 substitui-se o termo “segurança pública” por “segurança nacional”, o que remete, aliás, à Lei de Segurança Nacional vigente, reformada em 2005.
A amplitude da definição é tal que pode servir a praticamente qualquer expressão coletiva de descontentamento e não só às atividades delinquenciais, deixando clara a passagem dentro do mecanismo de criminalização do protesto.
Na Lei Federal contra a Delinquência Organizada também autoriza-se a infiltração de agentes, bem como as violações de “comunicações privadas” de todo tipo “de forma oral, escrita, por signos, sinais ou mediante o emprego de aparatos elétricos, eletrônicos, mecânicos, com ou sem fio, sistemas ou equipamentos informáticos, bem como por qualquer outro meio ou forma” [12]. O Art. 15 legaliza a possibilidade de que o Ministério Público disponha de uma ordem de registro em muito menos tempo e sem que a solicitação seja escrita.
A tudo isso somam-se novas leis como a Lei de Segurança Nacional, na qual se define a segurança nacional como “as ações destinadas de forma imediata e direta a manter a integridade, estabilidade e permanência do Estado mexicano, que conduzam a: I. A proteção da nação mexicana frente às ameaças e riscos que enfrente nosso país; II. A preservação da soberania e independência nacionais e a defesa do território; III. A manutenção da ordem constitucional e o fortalecimento das instituições democráticas de governo (…); VI. A preservação da democracia…” [13]. A redação alude sem dúvida às concepções de governabilidade da Carta Democrática Interamericana. Entre as ameaças se faz referência novamente ao terrorismo. O aceso à informação e às ações de inteligência estão reguladas no Art. 31: “Ao exercer atribuições próprias da produção de inteligência, as instâncias terão autonomia técnica e poderão fazer uso de qualquer método de coleta de informação sem afetar em nenhum caso as garantias individuais nem os direitos humanos” [14]. No Art. 33 se reforça a tendência: “Nos casos de ameaça iminente… O Governo mexicano poderá fazer uso dos recursos que legalmente se encontrem ao seu alcance, incluindo a informação anônima”. Quer dizer, estamos falando da legalização de práticas que facilmente podem se transformar em situações violadoras dos direitos humanos. Sem dúvida, nos faz pensar nos velhos mecanismos de contra-insurgência de décadas atrás.
A Lei da Polícia Federal abre a possibilidade de legalizar o uso de agentes secretos e da informação via satélite de diversos meios de comunicação como telefonia ou internet. No Art. 8, VI, autoriza-se “Coletar informação em lugares públicos, para evitar o fenômeno de delinquência, mediante a utilização de meios e instrumentos e qualquer ferramenta que resultem necessárias para a geração de inteligência preventiva”, e no Art. 8, VII, “Concretizar operações secretas e de falsos usuários para a prevenção de crimes”. Inclusive foram legalizadas as solicitações de georreferenciamento “dos equipamentos de comunicação móvel em tempo real…” [15]. Qualquer comentário aqui se faz desnecessário. O mesmo Art. 8 autoriza a intervenção nas comunicações privadas e a criação de um sistema de escuta por particulares: “Desenvolver, manter e supervisionar fontes de informação na sociedade, que permitam obter dados sobre atividades relacionadas com fenômenos delitivos”. Alguns especialistas vêem nisto a possibilidade de participação de agências privadas de segurança.
As reformas legais vigentes vão acompanhadas da criação de novas instituições: a Secretaria de Segurança Pública (2000), a Polícia Federal (2009),(antes Polícia Federal Preventiva) e o Sistema Nacional de Segurança Pública (2009) [16]. A criação da instância máxima do Sistema, o Conselho de Segurança Pública (CSP), é uma manifestação da identificação entre segurança pública e segurança nacional. Nele convergem todas as instituições encarregadas da ordem pública, do sistema de investigação e punição da Justiça e da Defesa: o Secretário de Segurança Pública, o Secretário da Defesa Nacional, o Secretário da Marinha, o Secretário de Governo (Ministério do Interior), o Procurador Geral da República, os Governadores e o Chefe de Governo do Distrito Federal. Uma estrutura muito semelhante aos Centros de Fusão da Inteligência dos EUA. Quanto à Polícia Federal, é um corpo militarizado treinado em tarefas especiais de intervenção.
Aliás, foram criados corpos especiais como o Corpo de Forças de Apoio Federal, no marco do Programa Setorial de Defesa 2007-2012. Entre seus objetivos está “atender o aparecimento de fenômenos e situações excepcionais que ponham em risco a segurança interior da nação, a ordem pública, a integridade e a vida dos cidadãos ou a estabilidade de qualquer parte do país” [17]. São um corpo militarizado, dependente da Secretaria da Defesa, para se encarregar da segurança interna ante distúrbios e sublevações.
3. A contra-insurgência incorporada à vida cotidiana: o triunfo cultural da dominação neoliberal
As concepções centrais de segurança e defesa que se refletem nas leis anteriormente mencionadas são: a guerra total, a guerra preventiva, a guerra permanente, o inimigo interno-externo e a segurança multidimensional. Todas elas encontram sua referência nas concepções de segurança e defesa dos Estados Unidos [18]. A definição atual do inimigo inclui desde as novas ameaças, entre as quais se encontra o crime organizado, o terrorismo, as catástrofes naturais ou a ameaça à chamada governabilidade democrática, até aquelas mais tradicionais como a rebelião, distúrbios civis e ameaça à ordem institucional [19]. Associa-se tal nível de perigo com um inimigo cujo confronto há de ser total, permanente e preventivo para neutralizá-lo antes inclusive que ele surja. A guerra total é ao mesmo tempo militar, ideológica, política, econômica e social, e portanto aspira à erradicação. A ambigüidade com a qual é definido o terrorismo cria uma situação de suspeita permanente; o inimigo é difuso, pode estar em qualquer parte e pode ser qualquer um. Isto, considerando a gravidade do crime, gera uma situação de temor tal que facilita a aceitação do uso da violência em troca da restituição da segurança do cidadão. Algo semelhante acontece com o crime organizado, que todos passam a identificar com o tráfico, o caos e a insegurança que lhe acompanha. Na prática, parece que terrorismo e crime organizado são a mesma coisa.
A linguagem usada nos documentos oficiais se refere à ideia de garantir a “segurança democrática” – ainda bem que o termo não tem sido empregado textualmente –, que não é outra coisa que a “governabilidade conservadora”. Quer dizer, a ordem social dominante no sentido mais pleno do termo. Como podemos ver, são as velhas concepções de contra-insurgência de décadas atrás, agora inseridas num marco histórico distinto.
Porém, a guerra não é concebida só contra o tráfico e o terrorismo, mas contra tudo aquilo que implique um risco para a governabilidade. Já em 1991, o Manual de distúrbios civis da SEDENA (Ministério da Defesa) retomava as velhas concepções da contra-insurgência. Nele, os movimentos sociais são definidos como “grupos antagônicos ou elementos subversivos que, aproveitando a situação imperante realizam ações de proselitismo em seu favor, com o fim de provocar desordem e desestabilização do governo legalmente constituído”. Perante a ingovernabilidade, corresponde às Forças Armadas restabelecer a ordem, frente a “distúrbios civis”, entendidos como “os tipos de desordens e levantes civis que ocorram em território nacional gerando violência ilegal por parte de pessoas civis, como resultado de protestos por diversos motivos, instigação de grupos subversivos nacionais ou estrangeiros (…) que produzem alterações na ordem pública, desorganizem os processos normais do governo e põem em perigo a vida e a propriedade”. De acordo com uma publicação de 2006, em que se faz referência ao Manual da SEDENA – desconhecemos se é o mesmo documento de 1991 –, as Forças Armadas estão autorizadas a disparar, utilizar franco atiradores e cães treinados contra a população para conseguir a “restauração da ordem em um distúrbio civil” [20].
Quer dizer, a fronteira entre segurança pública e segurança nacional se desmancha à medida que as Forças Armadas vão sendo incorporadas às atividades não só de “luta” contra o tráfico mas para fazer frente às restantes ameaças que já têm sido definidas e tipificadas legalmente. Portanto, a chamada guerra contra o tráfico é só a ponta de um iceberg que a mídia apresenta como se fosse o único tema de segurança; com o qual contribui a legitimar a presença das tropas em todo o território nacional. Isto não implica negar o problema do tráfico. Este existe e é um grande risco para o próprio Estado; porém, a complexidade do problema é muito mais profunda do que aparece na superfície. Estamos assistindo a uma das mudanças ideológico-culturais mais transcendentes deste tempo. A nova cultura dominante tem como bases o caos, o medo permanente e a necessidade de restituição da segurança em um ciclo que retroalimenta-se permanentemente. A refundação do sujeito no neoliberalismo não passa só pela interiorização de valores como o individualismo, a competitividade, a imanência do presente, a negação da mudança, resignação, etc. O medo e a anomia também são valores da dominação em que o sujeito vai sendo socializado. Assim, a decomposição social e a violência conduzem, em primeira instância, à desestruturação do sujeito enquanto cidadão e depois à sua neutralização. Daí que as concepções do inimigo e as estratégias que são aplicadas para combatê-lo, para além do problema da delinquência real, acabam sendo funcionais à dominação.
Como dissemos no início do texto, a ortodoxia neoliberal na qual vive o México, exacerba e evidencia o processo de militarização, e com isso também os valores socioculturais presentes desde o início na ideologia neoliberal, como o medo e a sua funcionalidade para o controle. Antes era o medo de perder o trabalho, o serviço público de saúde, a aposentadoria, etc. Agora é o medo de perder a vida e de viver no caos. Antes e agora, a função social é a mesma, só que agora com uma magnitude muito maior e uma conexão de sentido mais profunda, por isso ela é percebida como ameaça à própria existência.
Portanto, a complexidade do problema da militarização requer que possamos articular fenômenos que aparentemente parecem alheios entre si e inclusive contraditórios. Pelo contrário, estes operam simultaneamente e guardam uma estreita relação de sentido. A existência real do crime organizado, a corrupção dos aparatos de governo, os interesses do capital interno e externo, a concepção de segurança nacional que é muito mais ampla que o tema do tráfico, a relevância midiática do tráfico, o tipo de estratégias que são implementadas nesta guerra e os mecanismos de controle social numa sociedade crescentemente conservadora são, entre outros, alguns destes fenômenos.
Os resultados deste arranjo no combate ao tráfico são desastrosos, mas ainda assim continua-se militarizando o país. Estima-se que ingressam 275t de cocaína do México para os EUA, mas só são capturados 36t. Entre 2000-2006 foram detidas 60.000 pessoas por delitos relacionados ao tráfico, das quais só 15 eram líderes das gangues, 50 pertenciam às suas estruturas financeiras e 71 eram assassinos contratados [21]. O resto dos detidos são pessoas vinculadas ao tráfico no varejo. O número de mortos supera os 30.000; a partir 2006, entre “traficantes” e os chamados “danos colaterais” (as mulheres, crianças, estudantes e demais pessoas que estavam no meio do fogo cruzado), o número tem aumentado, ainda que, na verdade, nem sequer sabemos quantos são. Parece ser mais importante o espetáculo da guerra do que os seus impactos reais. No entanto, a criminalização da pobreza e do protesto social não constituem fenômenos de interesse público, apenas mais um elemento na construção social do medo. O outro fator que a mídia torna invisível é o das redes de corrupção na própria estrutura de poder do Estado. Não é possível entender a existência do tráfico e o fracasso desta guerra sem pensar nisto (e existem múltiplas formas de comprovação dos vínculos entre traficantes, classe política, empresariado, militares, policiais e juízes, tanto do lado mexicano quanto do lado norte-americano, coisa que sabe o cidadão de cor) [22]. O negocio do tráfico no México estima-se em 23.000 mdd. por ano [23].
4. As implicações da militarização: uma caixa de Pandora imprevisível
Um dos elementos mais preocupantes é a decomposição institucional que acompanha este processo de militarização. A partir da mudança de funções do Estado no neoliberalismo, vão-se destruindo, por um lado, as poucas instituições estatais de serviço social e, por outro, as instituições chave de governo, que são o campo para a corrupção, agora maior ainda com o dinheiro dos cartéis. As Nações Unidas calculam que o tráfico tem colocado os seus representantes eleitorais em cerca de um 60% dos municípios do país [24]. Neste contexto, as Forças Armadas eram praticamente a única instituição que mantinha certo prestígio social. Hoje, depois de tê-las incorporado às ações de luta contra o tráfico e ao controle do protesto social, foram afetadas pela corrupção e as acusações de violações aos direitos humanos. Esta situação é ainda mais preocupante quando estamos falando de uma instituição que tem à seu cargo o monopólio legal do uso da força; quer dizer, não é mais uma instituição. Talvez um dos exemplos mais escandalosos seja o daqueles militares que têm parte nas organizações criminosas e chegam a constituir o seu próprio cartel, como foi o caso do grupo Los Zetas, que formava parte de um dos grupos de elite do exército mexicano.
Ao mesmo tempo, assistimos a um processo crescente de autonomia militar em correspondência com a crescente absorção de funções que lhes são outorgadas. O orçamento da defesa não deixa de crescer, e existem âmbitos sobre os quais não existe uma clara prestação de contas, como as atividades concretas no marco do Plano México, e a justiça militar mantém plena autonomia em relação ao poder civil. A militarização perpassa o âmbito oficial e alimenta-se, aliás, com outros atores que tornam ainda mais complexa a trama: paramilitares, milícias urbanas e rurais e grupos de segurança privada. Neste momento, a disputa pelo território entre narcotraficantes, militares e este outro tipo de organizações armadas está redesenhando a cartografia nacional.
A dependência cada dia maior dos EUA e a inserção do México no esquema do Projeto Hemisférico através da ASPAN e do Plano México vão aprofundar o processo de militarização atual. É necessário recordar que o México tem um papel geopolítico e geoeconômico de primeira importância na estratégia hemisférica dos EUA para a América Latina. É a rota de acesso à América Central e Colômbia e conta com abundantes recursos naturais e estratégicos de fácil acesso para os EUA dada a proximidade geográfica. É o segundo produtor de petróleo da América Latina, para além da superexploração e da queda nas suas reservas. PEMEX é uma das principais empresas petroleiras do mundo e a segunda da América em lucros produzidos. Quanto ao gás, ocupa o segundo lugar da América Latina em reservas e tem uma posição média a nível mundial (15º lugar em produção e 26º pela quantidade de reservas). É o quarto país da região no que refere à produção de energia hidroelétrica e é o quarto país do mundo pela sua riqueza em biodiversidade. Está entre os 10 primeiros países do mundo em minerais estratégicos (2º lugar mundial em produção e reservas de fluorita; 2º produtor mundial de bismuto e 3º quanto a reservas; 2º lugar mundial em reservas de grafito; 7º produtor mundial de manganês; as estimativas de urânio realizadas pela Exxon o situam no terceiro lugar regional; 2º lugar mundial em produção de prata; 3º lugar mundial em reservas de cobre; 5º lugar mundial na produção de chumbo e o 6º lugar em reservas; 5º produtor mundial de zinco e 5º em quantidade de reservas). O principal destino de todos estes minerais são os EUA [25]. O corredor do atual Projeto Mesoamericano, conta com cerca de 37% dos recursos da biodiversidade da América Latina. Além disso, o Istmo de Tehuantepec é a rota alternativa ao Canal do Panamá para o século XXI.
A dependência com relação aos EUA se faz extensiva ao âmbito da segurança e da defesa, para além da dependência econômica e política. Como dissemos antes, as concepções de segurança do México e as suas expressões legais correspondem com as diretrizes dos EUA, desde a National Strategy for a New Centure, a National Strategy for Homeland Securite, a Declaração sobre Segurança das Américas, a Declaración de Nuevo León e a National Strategy for Combating Terrorism. Esta situação manifesta-se na crescente influência das agências de segurança e defesa norte-americanas em território mexicano, os acordos de Smart Border (Fronteira Inteligente), a formação de militares (calcula-se que entre 1996 e 2007 foram treinados 5.140 militares nos EUA [26]), a assessoria e coordenação com diversas agências norte-americanas (DEA, FBI), a criação do Centro de Fusão de Inteligência – um dos poucos que existem na América Latina -, ao que se somarão as aplicações específicas do Plano México.
Outro fator a considerar na tendência crescente à militarização a partir da relação com os EUA, é a trajetória do atual embaixador dos EUA no México, Carlos Pascual, que é um expert em segurança nacional e “estados falidos”. Sua área de trabalho tem sido sempre a segurança nacional. A forma em que definiu sua missão no país foi: fortalecer o sistema de justiça, a polícia e assegurar o Estado de Direto no México. Isto reflete não só a estratégia concreta dos EUA para o México, mas o peso central que tem nela o elemento da força [27]. Em 2005, Pascual escrevia: “Quando o caos prevalece, o terrorismo, o comércio de droga, a proliferação de armas e outras formas do crime organizado podem florescer. Quando as pessoas estão em grandes dificuldades, sujeitas à depredação e vendo negado o acesso aos serviços básicos, as pessoas chegam a ser suscetíveis às exortações de demagogos e instigadores do ódio (…) Tais esforços (para prevenir e manipular estes acontecimentos) implicarão não só adotar medidas de pacificação mas também exercer influência em relação às eleições que os países com problemas fazem sobre as suas economias, seus sistemas políticos, as regras legais e a sua segurança interna” [28]. O resultado destas medidas está sendo a “colombização” do país.
Por último, os jovens são os que estão padecendo com maior intensidade os custos desta tendência à militarização. Esses mesmos jovens nos quais recai demograficamente a possibilidade de mudança social são, por um lado, objeto permanente de suspeita e potencial ameaça. Em várias vezes a revista dos militares já terminou com a morte de algum jovem e foi conhecido o primeiro caso de “falsos testemunhos” no país (que podem nem ser o primeiro nem o único). Por outro lado, a inexistência de fontes de trabalho convertem muitos deles em potenciais empregados no negócio do tráfico e de gangs de extermínio. Outros integram-se ao exército, em procura de um trabalho fixo com prestações sociais. Em ambos os casos, candidatos a mortos nesta guerra, porque são também esses militares jovens os que estão morrendo nos enfrentamentos com os traficantes. Outros muitos se convertem em consumidores de droga cada vez mais cedo. Em qualquer caso, bucha de canhão desta guerra que neutraliza os sujeitos da mudança e destrói a cidadania. Mais uma vez, um circuito de decomposição e desestabilização que contribui para legitimar o uso da força.
Como vemos, a realidade está longe da simplificação que apresenta a mídia oficial. Os problemas do México e as raízes da militarização atual vão muito além da questão do tráfico; o qual, como antes dissemos, não implica negar o problema do tráfico. O esquecimento vai ganhando terreno à memória. A reivindicação da segurança não inclui a pauta da questão alimentar, o acesso à saúde, à educação ou a qualquer dos direitos sociais e políticos conquistados décadas atrás. A angústia do sujeito pela sua segurança, alimentada todos os dias pela mídia, o condena à amnésia. Ninguém lembra como começou nem como foi que chegamos aqui. Seria preciso reconstruir historicamente este momento para poder perguntar adequadamente à realidade. Porém, a imanência do presente nos impede identificar este momento como parte do ciclo conservador que iniciou-se na América Latina na década dos anos setenta e que no caso do México, podemos localizar um pouco antes, no fim dos anos sessenta.
A simplicidade avança como aprisionadora sobre a complexidade do raciocínio. É assim que só percebemos o aparente, o que é mostrado para nós a cada dia. O problema é que, depois de tanta repetição, acabamos por acreditar no aparente. A suposta necessidade desta estratégia de guerra para combater a insegurança e o caos teria que sustentar-se num diagnóstico da permanente crise econômica, social e política, bem como em uma revisão da profunda dependência em que estamos imersos. Para quem é necessária esta guerra? A quem é que favorece? Que custos humanos tem? Quais são as verdadeiras raízes do problema? Essas deviam ser perguntas centrais, que teríamos todos que responder. Habitar nossa condição humana exige obrigatoriamente resgatar e dignificar a vida frente a esta cultura da morte, não só em nossa condição de cidadania, mas no vínculo cotidiano entre as pessoas.
Tradução: Passa Palavra
Notas:
[*] Professora-Pesquisadora da Universidade Autônoma da cidade do México (UACM). Correio: [email protected].
[1] Para uma revisão histórica crítica do suposto não intervencionismo militar mexicano e as peculiaridades do sistema político durante o priísmo tradicional, pode-se consultar o capítulo sobre o México de: María José Rodríguez Rejas. Tese de Doutorado La espiral de la militarización política en América Latina: del Proeecto Hemisférico a la dominación neoliberal, UNAM, México, 2010.
[2] María José Rodríguez Rejas. La centralidad de América Latina en la estrategia de Seguranca Hemisférica de Estados Unidos, em Dídimo Castillo e Marco Gandásegui (Coords.). Estados Unidos: más allá de la crisis (en imprenta). Também pode consultar-se em Rebelión, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=115986
[3] Estudo econômico da América Latina no Caribe 2008-2009, Santiago do Chile, CEPAL, julho de 2009 e, La Jornada, México, 29 de dezembro de 2008.
[4] Marco Antonio González Gómez. Balanza de pagos e política industrial en México (1995-1999), em El Cotidiano, Set-out, Ano/Vol. 17, Nº103, México, UAM-Azcapotzalco, 2000.
[5] José Valenzuela Feijoo. México 2006: ¿una crisis maior?, CEDA, México, 2006, p. 19.
[6] La Jornada, México, 6 de setembro de 2004.
[7] Antonio Castellanos. México, urgido de capital foráneo de largo plazo, em La Jornada, México, 24 de março de 2008.
[8] Roberto González Amador. Por ‘ausencia de confianza’, salieron del país 50 mil mdd., em La Jornada, México, 12 de fevereiro de 2009.
[9] São 80 milhões os pobres que existem no país, em La Jornada, México, 21 de julho de 2009. Ver dados de INEGI, http://www.inegi.org.mx/
[10] Lei Federal conta a Delinquência Organizada, Diário Oficial da Federação, Câmara de Deputados, México, 7 de novembro de 1996; reformada em 21 de dezembro de 2004; reformada em 27 de março de 2007; última reforma em 23 de janeiro de 2009.
[11] Reforma ao Código Federal, Artigo 139. Ditames das Comissões de Estudos Legislativos, Gazeta do Senado da República, Nº 103, México, 26 de abril de 2007.
[12] Op. Cit.
[13] Lei de Segurança Nacional, Diário Oficial da Federação, México, 31 de janeiro de 2004; última reforma 25 de dezembro de 2005.
[14] Op. Cit.
[15] Lei da Polícia Federal, Diário Oficial da Federação, México, 1 de junho de 2009 (Grifos meus).
[16] Lei Geral do Sistema Nacional de Segurança Pública, Diário Oficial da Federação, México, 2 de janeiro de 2009.
[17] Decreto pelo qual se cria o corpo especial do Exército e Força Aérea denominado Corpo de Forcas de Apoio Federal, Diário Oficial da Federação, México, 8 de maio de 2007.
[18] A concepção e estratégia de segurança e defesa atual dos EUA remonta ao fim dos anos setenta, e podemos ver apresentada com toda clareza em documentos tão antigos como os Documentos de Santa Fé, I, II, e IV, o Tratado Maior de Segurança Democrática para a América Central, até documentos muito mais recentes como a National Strategy for a New Centure, National Strategy for Homeland Securite, National Strategy of the United States e a Declaração sobre Segurança das Américas, entre outros.
[19] Aos textos legais, base da segurança nacional e defesa nacional, seria necessário adicionar os documentos internacionais subscritos pelo México como a ASPN, o Plano Méximo ou a Declaração sobre Segurança das Américas, dos quais se deriva sua participação em programas específicos (Smart Border, Plano Maea-Jaguar para a América Central, Estratégia América Central-México, acordos de luta contra o tráfico com Perú que autorizam a presença de forças mexicanas em território peruano).
[20] Jorge Torres. Listo el Exército para el 3 de julio, em Revista Contralínea, Ano 4, Nº 58, 2ª quinzena de junho, México, 2006.
[21] Raúl Benítez Manaut. La Iniciativa Mérida: desafíos del combate al crimen e el tráfico en México, em Andean Regional Iniciative (ARI), Nº 130, 2007, Real Instituto Elcano, p.1, http://www.realinstitutoelcano.org/
[22] Luis Astorga. México, Colombia e las drogas ilegales: variaciones sobre un mismo tema, Conferência proferida na VIII Cátedra Anual de Historia Ernisto Restrepo, Colômbia, Outubro de 2003, http://catedras.ucol.mx/transformac/ponencia1.htm
[23] David Brooks. Narcos mexicanos logran en EU 23 mil mdd. al año, em La Jornada, México, 21 de setembro de 2007.
[24] El Universal, México, 29 de maio de 2009.
[25] Dados retirados de diversas fontes: Sistema de Informacção da Secretaria de Energia do Governo do México, Semarnat, The World Resources Institute, OLADE.
[26] Raúl Benítez Manaut. La Iniciativa Mérida: desafíos del combate al crimen e el tráfico en México, em Andean Regional Iniciative (ARI), Nº 130, 2007, Real Instituto Elcano, http://www.realinstitutoelcano.org/
[27] Llega el nuevo embajador de EU en México Carlos Pascual, em Terra TV, 12 de agosto de 2009, 18:12 horas, http://terratv.terra.com.mx/
[28] Stephen D. Krasner e Carlos Pascual. Adressing State Failure, em Foreign Affairs, Vol. 84, Nº 4, julho-agosto 2005.
Para os que leram e se interessam por este processo de militarização do México, e da América Latina, recomendo a leitura de recente texto do Subcomandante Marcos sobre o assunto: http://passapalavra.info/?p=36387