(Fragmento da primeira carta do SupMarcos a Don Luis Villoro, início da troca epistolar sobre Ética e Política. Janeiro-Fevereiro de 2011).

Parte 2 das 4 que integram a primeira carta, a mesma que aparecerá completa no próximo número da Revista Rebeldia.

“(…).

Como povos originários mexicanos e como EZLN podemos dizer algo sobre a guerra. Sobretudo quando esta se trava em nossa geografia e neste calendário: México, início do século XXI…

II. A GUERRA DO MÉXICO DE CIMA.

“Eu daria as boas-vindas quase a qualquer guerra

porque acredito que este país precisa de uma”.

Theodore Roosevelt.

E agora nossa realidade nacional é invadida pela guerra. Uma guerra que não só já não é longe de nós, para aqueles que costumam vê-la em geografias ou calendários distantes, como começa a governar as decisões e indecisões daqueles que pensaram que os conflitos bélicos estavam só nos noticiários e em filmes de lugares tão distantes como…Iraque, Afeganistão,… Chiapas.

E em todo o México, graças ao patrocínio de Felipe Calderón Hinojosa, não temos que recorrer à geografia do Oriente Médio para refletir criticamente sobre a guerra. Já não é necessário remontar o calendário até o Vietnã, Baía dos Porcos, sempre à Palestina.

E não menciono Chiapas e a guerra contra as comunidades indígenas zapatistas, porque já se sabe que não está na moda, (para isso, o governo do Estado de Chiapas tem gastado bastante dinheiro em conseguir que a mídia não o coloque no horizonte da guerra, mas sim dos “avanços” na produção de biodiesel, do “bom” tratamento dos migrantes, dos “êxitos” agrícolas e outros contos do vigário vendidos a conselhos de redação que assinam como próprios os boletins governamentais pobres em redação e argumentos).

A irrupção da guerra na vida cotidiana do México atual não vem de uma insurreição, nem de movimentos independentistas ou revolucionários que disputem sua reedição no calendário 100 ou 200 anos depois. Como todas as guerras de conquista, ela vem de cima, do Poder.

E esta guerra tem em Felipe Calderón Hinojosa seu iniciador e promotor institucional (e agora envergonhante).

Quem se apropriou da titularidade do Executivo Federal pela via de fato, não se contentou com o respaldo da mídia e teve que recorrer a algo mais para distrair a atenção e evadir o amplo questionamento de sua legitimidade: a guerra.

Quando Felipe Calderón Hinojosa fez seu o proclama de Theodore Roosevelt (alguns atribuem a frase a Henry Cabot Lodge) de que “este país precisa de uma guerra”, recebeu a desconfiança medrosa dos empresários mexicanos, a entusiasta aprovação dos altos comandos militares e o nutrido aplauso de quem realmente manda: o capital estrangeiro.

A crítica desta catástrofe nacional chamada “guerra contra o crime organizado” deveria ser completada com uma análise profunda de seus alentadores econômicos. Não me refiro somente ao antigo axioma de que em épocas de crise e de guerra aumenta o consumo de luxo. Tampouco só aos soldos extras que recebem os militares (em Chiapas, os altos comandos militares recebiam, ou recebem, um salário extra de 130% por estar em “zona de guerra”). Também teria que se procurar nas patentes, provedores e créditos internacionais que não estão na chamada “Iniciativa Mérida”.

Se a guerra de Felipe Calderón Hinojosa (ainda que tenha tratado, em vão, de atribuí-la a todos os mexicanos) é um negócio (e o é mesmo), resta responder às perguntas de para quem é um negócio, e que cifra monetária alcança.

Algumas estimativas econômicas.

Não é pouco o que está em jogo:

(nota: as quantias detalhadas não são exatas pelo fato de que não há clareza nos dados governamentais oficiais, razão pela qual, em alguns casos, se recorreu ao que é publicado no Diário Oficial da Federação e se completou com dados das dependências e informação jornalística séria).

Nos primeiros quatro anos da “guerra contra o crime organizado” (2007-2010), os principais setores governamentais encarregado (Secretaria de Defesa Nacional – ou seja: exército e força aérea-, Secretaria da Marinha, Procuradoria Geral da República e Secretaria de Segurança Pública) receberam do Orçamento da Federação uma quantia superior aos 366 bilhões de Pesos (cerca de 30 bilhões de dólares ao cambio atual). As quatro dependências governamentais federais receberam: em 2007, mais de 71 bilhões de Pesos; em 2008, mais de 80 bilhões de Pesos; em 2009, mais de 113 bilhões e em 2010 foram mais de 102 bilhões de Pesos. A isso devem se somar os mais de 121 bilhões de Pesos (cerca de 10 bilhões de dólares) que receberão este ano, de 2011.

Só a Secretaria de Segurança Pública passou de receber cerca de 13 bilhões de Pesos de orçamento, em 2007, para manusear um de mais de 35 bilhões de Pesos em 2011 (talvez seja porque as produções cinematográficas são mais caras).

De acordo com o Terceiro Informe do Governo, de setembro de 2009 ao mês de junho deste ano, as forças armadas federais contavam com 254.705 elementos (202.355 do Exército e da Força Aérea e 52.350 da Armada).

Em 2009, o orçamento para a Defesa Nacional foi de 43 bilhões 623 milhões 321 mil e 860 Pesos, aos quais se somaram 8 bilhões 762 milhões 315 mil e 960 Pesos (25,14% mais), no total: 52 bilhões de Pesos para o Exército e a Força Aérea. À Secretaria da Marinha: mais de 16 bilhões de Pesos; Segurança Pública: quase 33 bilhões de Pesos; e Procuradoria Geral da República: mais de 12 bilhões de Pesos.

Total do orçamento para a “guerra contra o crime organizado” em 2009: mais de 113 bilhões de Pesos.

No ano de 2010, um soldado raso do exército federal ganhava por volta de 46.380 Pesos anuais; um general de divisão recebia um milhão 603 mil e 80 Pesos por ano, e o Secretário de Defesa Nacional tinha uma renda anual de um milhão 859 mil e 712 Pesos.

Se as contas não estiverem erradas, com o orçamento bélico total de 2009 (113 bilhões de Pesos para as quatro dependências) se poderiam pagar os salários anuais de 2 milhões e meio de soldados rasos; ou de 70 mil e 500 generais de divisão; ou de 60 mil 700 titulares da Secretaria de Defesa Nacional.

Mas, obviamente, nem tudo o que é orçado vai para os soldos e os pagamentos. Precisam-se de armas, equipamentos, balas… porque as que estão em dotação já não servem ou são obsoletas.

“Se o exército mexicano entrasse em combate com suas pouco mais de 150 mil armas e seus 331,3 milhões de cartuchos contra algum inimigo interno ou externo, seu poder de fogo seria suficiente em média para 12 dias de combates contínuos, apontam as estimativas do Estado Maior de Defesa Nacional (EMADEN) elaboradas por cada uma das armas do Exército e pela Força Aérea. Conforme as previsões, o fogo de artilharia dos obuses (canhões) de 105 milímetros daria, por exemplo, para combater apenas durante 5,5 dias disparando de forma contínua as 15 granadas para dita arma. As unidades blindadas, segundo a análise, têm 2 mil 662 granadas de 75 milímetros.

Ao entrar em combate, as tropas blindadas gastariam todos os seus cartuchos em nove dias. Quanto à Força Aérea, assinala-se que existem pouco mais de 1,7 milhões de cartuchos calibre 7,62 mm usados pelos aviões PC-7 e PC-9, e pelos helicópteros Bell 212 e MD-350. Numa conflagração, esses 1,7 milhão de cartuchos se esgotariam em cinco dias de fogo aéreo, segundo os cálculos da SEDENA. A dependência adverte que os 594 equipamentos de visão noturna e os 3 mil e 95 GPS usados pelas Forças Especiais para combater os cartéis da droga ‘já cumpriram sua vida útil’.

As carências e os desgastes nas fileiras do Exército e da Força Aérea são patentes e atingem níveis não imaginados em praticamente todas as áreas operativas da instituição. A análise da Defesa Nacional assinala que os goggles de visão noturna e os GPS têm entre cinco e treze anos de uso e ‘já cumpriram sua vida útil’. O mesmo ocorre com os ‘150 mil 392 coletes antifragmentos usados pelas tropas. Cerca de 70% dos quais completou sua vida útil em 2008, e os 41 mil 160 coletes à prova de bala o farão em 2009. (…)

Neste panorama, a Força Aérea resulta ser o setor mais atingido pelo atraso e a dependência tecnológica do exterior, sobretudo dos Estados Unidos e Israel. Segundo a SEDENA, os depósitos de armas da Força Aérea têm 753 bombas de 250 a mil libras cada uma. Os aviões F-5 e PC-7 Pilatus usam essas armas. As 753 existentes dão para o combate ar-terra de um dia. As 87 mil 740 granadas calibre 20 milímetros para os jets F-5 para combater inimigos externos ou internos por seis dias. Finalmente, a SEDENA revela que os mísseis ar-ar para os aviões F-5 somam somente 45 peças, o que representa um único dia de fogo aéreo”. Jorge Alejandro Medellín em “El Universal”, México, 02 de janeiro de 2009.

Isso se conhece em 2009, dois anos depois do início da chamada “guerra” do governo federal. Deixemos de lado a pergunta óbvia de como foi possível que o chefe supremo das forças armadas, Felipe Calderón Hinojosa, se lançasse a uma guerra (“de amplo respiro” diz ele) sem ter as condições materiais mínimas para mantê-la, já nem vamos dizer para “ganhá-la”. Então, perguntemo-nos: Que indústrias bélicas vão se beneficiar com a compra de armamento, equipamentos e aparelhos?

Se o principal promotor desta guerra é o império das listas e das turvas estrelas (a contas feitas, na realidade, as únicas felicitações recebidas por Felipe Calderón Hinojosa vieram do governo norte-americano), não se deve perder de vista que ao norte do Rio Bravo não se outorgam ajudas, mas se fazem investimentos, ou seja, negócios.

Vitórias e derrotas.

Os Estados Unidos ganham com esta guerra “local”? A resposta é: sim. Deixando de lado os lucros econômicos e os investimentos monetários em armas, aparelhos e equipamentos (não esqueçamos que os EUA são o principal provedor disso tudo aos dois contendentes: autoridades e “delinquentes” – a “guerra contra o crime organizado” é um negócio redondo para a indústria militar norte-americana-), há, como resultado desta guerra, uma destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento geopolítico que os favorece.

Esta guerra (que está perdida para o governo desde que foi concebida, não como solução a um problema de insegurança, mas sim a um problema de legitimidade questionada), está destruindo o último reduto que resta a uma Nação: o tecido social.

Que melhor guerra para os Estados Unidos do que uma que lhes outorgue lucros, território e controle político e militar sem as incômodas “body bags” [bolsas para os cadáveres] e os aleijados de guerra que lhe chegaram, antes, do Vietnã e agora do Iraque e Afeganistão?

As revelações de Wikileaks sobre as opiniões no alto comando norte-americano quanto às deficiências do aparato repressivo mexicano (sua ineficácia e seu envolvimento com a delinquência), não são novas. Isso e uma certeza não só no comum das pessoas, como nas altas esferas do governo e do Poder no México. A piada de que é uma guerra desigual porque o crime organizado está organizado e o governo mexicano está desorganizado, é uma verdade aterradora.

Em 11 de dezembro de 2006, iniciou-se formalmente esta guerra com a então chamada “Operação Conjunto Michoacán”. Sete mil elementos do exército, da marinha e das polícias federais lançaram uma ofensiva (popularmente conhecida como “michoacanazo”) que, passada a euforia da mídia desses dias, resultou ser um fracasso. O comandante militar foi o general Manuel Garcia Ruiz e o responsável da operação foi Gerardo Garay Cadena da Secretaria de Segurança Pública. Hoje, e desde dezembro de 2008, Gerardo Garay Cadena está preso no presídio de segurança máxima de Tepic, Nayarit, acusado de conluio com “el Chapo” Guzmán Loera.

E, a cada passo que se dá nesta guerra, para o governo federal é mais difícil explicar onde está o inimigo a ser vencido.

Jorge Alejandro Medellín é um jornalista que colabora com vários meios de comunicação – a revista “Contralinea”, o semanal “Acentoveintiuno”, e o portal de notícias “Eixo Central”, entre outros – e tem se especializado nos temas do militarismo, forças armadas, segurança nacional e narcotráfico. Em outubro de 2010, recebeu ameaças de morte por uma matéria onde assinalou possíveis ligações do narcotráfico com o general Felipe de Jesús Espítia, ex comandante da V Zona Militar e ex chefe da Sétima sessão – Operações Contra o Narcotráfico – no Governo de Vicente Fox, e responsável do Museu de Enervantes localizado nas dependências da S-7. O general Espítia foi removido do comando da V Zona Militar após o fracasso estrepitoso das operações por ele comandadas em Cidade Juarez e pela pobre resposta que deu aos massacres cometidos na cidade fronteiriça.

Mas o fracasso da guerra federal contra o “crime organizado”, a jóia da coroa do governo de Felipe Calderón Hinojosa, não é um destino a lamentar para o Poder nos EUA: é a meta a conseguir.

Por mais que os meios de comunicação de massa se esforcem em apresentar como rotundas vitórias da legalidade as escaramuças que ocorrem todos os dias no território nacional, não conseguem convencer.

E não só porque os meios de comunicação de massa têm sido superados pelas formas de troca de informação de grande parte da população (não só, mas também pelas redes sociais e a telefonia celular), também, e sobretudo, porque o tom da propaganda governamental tem passado da tentativa de enganação à tentativa de burla (desde o “ainda que não pareça vamos ganhando” até o de “uma minoria ridícula”, passando por bravatas de cantina do funcionário de plantão).

Sobre esta outra derrota da imprensa, escrita, de rádio e de televisão, voltarei em outra carta. Por enquanto, e a respeito do tema que agora nos ocupa, basta lembrar que o “nada acontece em Tamaulipas” que era apregoado pelas notícias (marcadamente de rádio e televisão), foi derrotado pelos vídeos tomados por cidadãos com celulares e câmaras portáteis e divulgados pela Internet.

Mas vamos à guerra que, segundo Felipe Calderón Hinojosa, nunca disse que é uma guerra. Ele não disse, não é mesmo?

“Vejamos se é uma guerra ou se não é uma guerra: em 5 de dezembro de 2006, Felipe Calderón disse: ‘trabalhamos para ganhar a guerra contra a delinquência…’. Em 20 de dezembro de 2007, durante um desjejum com o pessoal naval, o senhor Calderón utilizou, até quatro vezes em um único discurso, o termo guerra. Disse: ‘a sociedade reconhece de maneira especial o importante papel de nossos marinheiros na guerra que o meu governo lidera contra a insegurança…’. ‘A lealdade e a eficácia das Forças Armadas, são uma das mais poderosas armas na guerra que travamos contra ela…’, ‘Ao iniciar esta guerra frontal contra a delinquência sublinhei que esta seria uma luta de longo respiro’, ‘…assim são, exatamente, as guerras…’.

Mas há ainda mais: em 12 de setembro de 2008, durante a Cerimônia de Encerramento e Abertura de Cursos do Sistema Educativo Militar, o autodenominado ‘Presidente do Emprego’, se soltou ao pronunciar em, pelo menos, meia dúzia de vezes, o termo guerra contra o crime: ‘hoje nosso país trava uma guerra muito diferente da que os insurgentes enfrentaram em 1810, uma guerra diferente da que os cadetes do Colégio Militar enfrentaram 161 anos atrás…’, ‘… todos os mexicanos da nossa geração têm o dever de declarar guerra aos inimigos do México… Por isso, nesta guerra contra a delinquência…’, ‘É imprescindível que todos nós que nos unimos nesta frente comum passemos da palavra aos fatos e declaremos, verdadeiramente, guerra aos inimigos do México…’, ‘Estou convencido de que vamos ganhar esta guerra…’ (Alberto Vieyra Gómez. Agência Mexicana de Notícias, 27 de janeiro de 2011).

Ao contradizer-se, aproveitando o calendário, Felipe Calderón Hinojosa não se corrige os erros cometidos nem se corrige conceitualmente. Não, o que acontece é que as guerras se ganham ou se perdem (neste caso, se perdem) e o governo federal não quer reconhecer que o ponto principal de sua gestão fracassou militar e politicamente.

Guerra sem fim? A diferença entre a realidade… e os videogames.

Frente ao inegável fracasso de sua política de guerra, Felipe Calderón Hinojosa vai mudar de estratégia?

A resposta é NÃO. E não só porque a guerra de cima é um negócio e, como qualquer negócio, se mantém enquanto esteja produzindo lucros.

Felipe Calderón Hinojosa, o comandante em chefe das forças armadas; o fervoroso admirador de José Maria Aznar; o autodenominado “filho desobediente”; o amigo de Antonio Solá; o “ganhador” da presidência por meio ponto percentual de votação emitida graças à alquimia de Elba Esther Gordillo; o dos desplantes autoritários que beiram a bravata (“ou descem ou mando por vocês”); o que quer encobrir um erro com mais sangue, o das crianças assassinadas na Guardería ABC, em Hermosillo, Sonora; o do autismo calculado diante dos assassinatos de Marisela Escobedo e Susana Chávez Castillo; o que distribui etiquetas mortuárias de “membros do crime organizado” a crianças, homens e mulheres que foram e são assassinados por que sim, porque coube a eles estarem na hora e no lugar errado, e não chegam sequer a serem nomeados porque ninguém os leva em consideração nem na imprensa, nem nas redes sociais.

Ele, Felipe Calderón Hinojosa, é também um fã dos videogames de estratégia militar.

Felipe Calderón Hinojosa é o “gamer” ‘que, em quatro anos, transformou um país numa versão mundana de The Age of Empires – seu videogame preferido -, (…) um amante – e mau estrategista – da guerra’ (Diego Osório em Milênio Diário, 3 de outubro de 2010).

É ele que nos leva a perguntar: O México está sendo governado no estilo de um videogame? (creio que eu posso fazer esse tipo de perguntas comprometedoras sem correr o risco de ser demitido por faltar a um “código de ética” que se rege pela propaganda paga).

Felipe Calderón Hinojosa não se deterá. E não só porque as forças armadas não iriam lhe permitir isso (negócios são negócios), como também pela obstinação que tem caracterizado a vida política do “comandante em chefe” das forças armadas mexicanas.

Façamos um pouco de memória: em março de 2001, quando Felipe Calderón Hinojosa era coordenador parlamentar dos deputados federais de Ação Nacional, houve aquele espetáculo lamentável do Partido de Ação Nacional quando se negou a que uma delegação indígena conjunta do Congresso Nacional Indígena e do EZLN fizessem uso da tribuna do Congresso da União por ocasião da chamada “marcha da cor da terra”.

Apesar de estar revelando o PAN como uma organização política racista e intolerante (e o é mesmo) por negar aos indígenas o direito de serem ouvidos, Felipe Calderón Hinojosa se manteve em sua negativa. Tudo lhe dizia que era um erro assumir esta posição, mas o então coordenador dos deputados panistas não cedeu (e acabou escondido, junto com Diego Fernández de Cevallos e outros ilustres panistas, nu dos salões privados da câmara, vendo pela televisão os indígenas fazerem uso da palavra num espaço que a classe política reserva para seus representantes).

“Sem ligar para os custos políticos”, teria dito então Felipe Calderón Hinojosa.

Agora diz o mesmo, ainda que hoje não se trate dos custos políticos a serem assumidos por um partido político, mas sim dos custos humanos pagos pelo país inteiro por essa teimosia.

Já perto de terminar esta carta, encontrei as declarações da secretária de segurança interna dos Estados Unidos, Janet Napolitano, especulando sobre as possíveis alianças entre a Al Qaeda e os cartéis mexicanos da droga. Um dia antes, o subsecretário do Exército dos Estados Unidos, Joseph Westphal, declarou que no México há uma forma de insurgência encabeçada pelos cartéis da droga que, potencialmente, poderiam tomar o governo, o que implicaria numa resposta militar estadunidense. Acrescentou que não desejava ver uma situação onde os soldados estadunidenses fossem enviados a combater uma insurgência “sobre nossa fronteira… ou ter que enviá-los a cruzar esta fronteira” rumo ao México.

Enquanto isso, Felipe Calderón Hinojosa, assistia a um treinamento de resgate num povoado, em Chihuahua, e subiu num avião de combate F-5, sentou-se no assento do piloto e brincou com um “disparem os mísseis”.

Dos videogames de estratégia aos “simuladores de combate aéreo” e “disparos em primeira pessoa”? Do Age of Empires ao Hawx?

O Hawx é um videogame de combate aéreo onde, num futuro próximo, as empresas militares privadas (“Private Military Company”) vão substituir os exércitos governamentais em vários países. A primeira missão do videogame consiste em bombardear Cidade Juarez, Chihuahua, México, porque as “forças rebeldes” têm se apoderado da praça e ameaçam avançar rumo ao território norte-americano.

Não no videogame, mas sim no Iraque, uma das empresas militares privadas contratadas pelo Departamento de Estado norte-americano e pela Agência Central de Inteligência foi “Blackwater USA”, que depois mudou seu nome por “Blackwater Woldwide”. Seu pessoal cometeu sérios abusos no Iraque, incluindo o assassinado de civis. Agora mudou seu nome para “Xe Services LL” e é o maior contratador de segurança privada do Departamento de Estado norte-americano. Pelo menos 90% de seus lucros vêm de contratos com o governo dos Estados Unidos.

No mesmo dia em que Felipe Calderón Hinojosa fazia piadas no avião de combate (10 de fevereiro de 2011), no Estado de Chihuahua, uma menina de 8 anos morreu ao ser atingida por uma bala num tiroteio entre pessoas armadas e membros do exército.

Quando é que esta guerra vai terminar?

Quando aparecerá na tela do governo federal o “game over” do fim do jogo, seguido dos créditos dos produtores e patrocinadores da guerra?

Quando Felipe Calderón vai poder dizer “ganhamos a guerra, impusemos nossa vontade ao inimigo, destruímos sua capacidade material e moral de combate, temos (re) conquistado os territórios que estavam em seu poder”?

Desde que foi concebida, esta guerra não tem fim e também está perdida.

Não haverá um vencedor mexicano nessas terras (à diferença do governo, o Poder estrangeiro sim tem um plano para reconstruir – reordenar o território), e o derrotado será o último reduto do agonizante Estado Nacional no México: as relações sociais que, dando identidade comum, são a base de uma Nação.

Ainda antes do suposto final, o tecido social será rompido por completo.

Resultados: a Guerra de cima e a morte de baixo.

Vejamos o que informa o secretário de Governo federal sobre a “não-guerra” de Felipe Calderón Hinojosa: “2010 foi o ano mais violento do mandato ao acumular 15.723 homicídios vinculados ao crime organizado, 58% mais em relação aos 9.614 registrados durante 2009, de acordo com a estatística divulgada nesta quarta-feira pelo Governo Federal. De dezembro de 2006 ao final de 2010 foram contabilizados 34.612 crimes, dos quais 30.913 são casos apontados como “execuções”; 3.153 são denominados como “enfrentamentos” e 544 estão no setor de “homicídios-agressões”. Alejandro Poiré, secretário técnico do Conselho de Segurança Nacional, apresentou uma base de dados oficial elaborada por especialistas que mostrará a partir de agora ‘informação desagregada mensal, em nível estadual e municipal’ sobre a violência em todo o país” (Periódico “Vanguarda”, 13 de janeiro de 2011).

Perguntemos: desses 34.612 assassinados, quantos eram delinquentes? E as mais de mil crianças assassinadas (que o Secretário de Governo “esqueceu” de citar na sua conta), também eram “sicários” do crime organizado? Quando no governo federal se proclama que “vamos ganhando”, a que cartel da droga se referem? Quantas dezenas de milhares mais integram esta “ridícula minoria” que é o inimigo a vencer?

Enquanto lá em cima tratam inutilmente de diluir os dramas em estatísticas dos crimes que sua guerra tem provocado, é necessário sublinhar que também está se destruindo o tecido social em quase todo o território nacional.

A identidade coletiva da Nação está sendo destruída e está sendo suplantada por outra.

Porque “uma identidade coletiva nada mais é a não ser uma imagem que um povo forja de si mesmo para se reconhecer como pertencente a este povo. Identidade coletiva é aqueles traços em que um indivíduo se reconhece como pertencente a uma comunidade.

E a comunidade aceita este indivíduo como parte dela. Esta imagem que o povo forja de si não é necessariamente o perdurar de uma imagem tradicional herdada, mas sim, em geral, é o indivíduo que a forja na medida em que pertence a uma cultura, para tornar consistente o seu passado e sua vida atual com os projetos que tem para esta comunidade.

Então, a identidade não é um simples legado que se herda, mas sim uma imagem que se constrói, que cada povo se cria, e, portanto, é variável e mutante de acordo com as circunstâncias históricas”. (Luis Villoro, novembro de 1999, entrevista com Bertold Bernreuter, Aachen, Alemanha).

Na identidade coletiva de boa parte do território nacional não está, como nos fazem crer, a disputa entre o lábaro pátrio e o narco-corrido (se não se apóia o governo, então se apóia a delinquência e vice-versa).

Não.

O que há é uma imposição, pela força das armas, do medo como imagem coletiva, da incerteza e da vulnerabilidade como espelhos nos quais esses coletivos se refletem.

Que relações sociais se podem manter ou tecer se o medo é a imagem dominante com a qual se pode identificar um grupo social, se o sentido de comunidade se rompe ao grito de “salve-se quem puder”?

Desta guerra não vão sair apenas milhares de mortos… e gordos lucros econômicos.

Também, e sobretudo, vai sair uma nação destruída, despovoada, irremediavelmente quebrada.

(…)

Valeu, Don Luis. Saúde e que a reflexão crítica anime novos passos.

Das montanhas do sudeste Mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos.

México, Janeiro-fevereiro de 2011.

Traduzido por Emílio Gennari.

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