Impasses e potencial conexão de dois elementos constituintes da forma de exploração brasileira. A idéia de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil teve como motor o trabalho escravo é fato consolidado na historiografia oficial, mas o mesmo não ocorre diante da afirmação de que a atual desigualdade social brasileira tem no racismo um de seus eixos estruturantes. Por Rafael Litvin Villas Bôas [*]
Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.
As condições de reorganização das lutas sociais no período de redemocratização do país, após duas décadas de ditadura militar, potencializaram as lutas setoriais. No final da década de 1970 e início da de 1980 surgem o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Negro Unificado (MNU), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores, etc.
Duas décadas após o “retorno à democracia” podemos dizer que ainda são exceções à regra as iniciativas de cruzamento das bandeiras de luta e a incorporação de questões, em princípio não prioritárias, às bandeiras de origem dos movimentos. Por exemplo, nos movimentos sociais do campo são raras as iniciativas de discussão sobre racismo, assim como no movimento negro a reforma agrária não é um ponto chave da agenda de lutas.
O paradoxo é que, com exceção de iniciativas esparsas de articulação em fóruns nacionais de discussão e intervenção, o combate à forma monopolista e segregacionista do Estado brasileiro, operado pela classe dominante, ocorre em campos de batalha separados, embora a origem das causas que dão vazão às bandeiras dos movimentos sociais seja comum.
O propósito do texto é refletir sobre as conexões entre as questões agrária e racial, refletindo sobre impasses – como os pontos coincidentes da análise dessas organizações com a posição da classe dominante -, caracterizando a estratégia comum da classe dominante para o ataque aos dois flancos e mapeando perspectivas de articulação entre movimentos negro e de luta contra o racismo com os movimentos do campo.
Estranhamento como providência política
É compreensível que a posição da classe dominante brasileira sobre a questão de classe e o racismo à brasileira seja refratária, no sentido de recusar a legitimidade das lutas e reivindicações dos explorados e oprimidos, omitindo ou relativizando a causalidade histórica do processo de discriminação e extermínio sistemático.
O dado destoante é o fato de parte das organizações de esquerda utilizar, por vezes, a mesma artilharia para justificar seus receios em relação às consequências do aprofundamento dessa discussão, como a evocação do risco de que o afloramento da discussão sobre racismo vá incitar a divisão e o ódio racial entre os pobres. Por uma questão de princípio de segurança, essas organizações deveriam desconfiar de todo e qualquer argumento da esquerda que seja semelhante aos utilizados pela classe dominante.
Esse exercício de discernimento exige dos movimentos sociais um processo de análise sobre as semelhanças e diferenças de suas estratégias e táticas, situando as experiências historicamente e buscando pontos de convergência que fortaleçam os enfrentamentos em comum contra a classe dominante. Esse conhecimento articulado e comparado de nossas experiências é que pode nos levar a ver com nitidez a estratégia e as táticas de combate do poder hegemônico.
Desigualdade social, racismo e meritocracia
A idéia de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil teve como motor o trabalho escravo, ou a mercantilização da vida de seres humanos, é fato consolidado na historiografia oficial. Entretanto, o mesmo não ocorre diante da afirmação de que a atual desigualdade social brasileira tem no racismo um de seus eixos estruturantes.
Logo após a abolição da escravatura, o Estado e a intelectualidade brasileira tentaram sistematicamente apagar as marcas e os impasses estruturais que nos foram impostos pela adoção do sistema escravista na periferia para modernizar o centro do sistema mundial produtor de mercadorias, na época situado na Europa. Na memória coletiva não persiste a incômoda informação de termos sido o último país do mundo a abolir a escravidão.
A meritocracia, o discurso ideológico calcado na premissa da livre iniciativa, se consolida no Brasil por meio da importação do trabalho assalariado branco europeu como providência de substituição da mão-de-obra negra em condição escrava e depois “recém liberta” pela abolição. Portanto, o projeto de adaptação da ideologia do mérito no Brasil ocorreu no mesmo compasso em que se consolidava a iniciativa de embranquecimento do país, posto que a mão-de-obra “livre” fora importada majoritariamente de países europeus.
Até há pouco tempo prevalecia no imaginário coletivo o sentimento imperativo do orgulho diante da promessa de novidade que teríamos a oferecer ao mundo, diante da idéia de que a formação de nossa população teria ocorrido pela suposta integração harmônica entre brancos, negros e índios. É certo que a leitura romantizada do passado nefasto já não persiste como outrora. A ação do movimento negro em prol da implementação das ações afirmativas para afro-descendentes quebrou as pernas do mito da democracia racial, pois obrigou o Estado brasileiro a reconhecer a existência do racismo no Brasil, e mais do que isso, que o Estado tem responsabilidade no problema e que por isso tem que intervir para resolver o impasse.
De resvalo, a batalha pela implementação das ações afirmativas abalou a ideologia do mérito, pois no caso das cotas para afro-descendentes nas universidades públicas brasileiras, por exemplo, a média geral do desempenho dos cotistas afro-descendentes é superior à dos alunos não cotistas, ao contrário do que pregava o argumento racista de que a política de cotas rebaixaria o nível de qualidade das universidades.
No âmbito da disputa ideológica, a luta pela reforma agrária não logrou o mesmo êxito. A despeito das pesquisas acadêmicas que comprovam o caráter estratégico da agricultura familiar para a soberania alimentar, para a diversidade dos gêneros alimentícios e para a saúde e economia da população, a grande imprensa mantém intensa campanha de propaganda sobre o setor do agronegócio brasileiro como a ponta de lança do desenvolvimento nacional. Os governos, por sua vez, concedem linhas de crédito para os grandes negócios agrícolas proporcionalmente muito maiores do que aquelas direcionadas aos pequenos produtores. A divisão da propriedade da terra é uma ameaça ao projeto da terra como reserva de valor e do alimento como mercadoria, por isso a reforma agrária é encarada como uma opção regressiva, uma ameaça ao futuro.
Vínculo entre latifúndio e racismo
Existe uma articulação entre racismo, agronegócio e indústria cultural, e a análise das conexões entre esses fatores é necessária para a abordagem da realidade contemporânea que tenha em perspectiva a idéia de totalidade da experiência histórica.
O poder da classe dominante brasileira é sustentado pelo tripé “monopólio da terra + controle dos meios de comunicação + poder político eleitoral”. Apesar da irregularidade perante a lei, é comum que os políticos de maior influência no Congresso Nacional sejam proprietários de cadeias de meios de comunicação em suas regiões, e com isso se mantenham em evidência permanente e ataquem seus inimigos. O domínio dos meios de comunicação é um instrumento de coação e um instrumento de acumulação de riqueza e influência, a despeito do sistema de uso dos serviços de comunicação ser supostamente regulado pelo Estado por meio do sistema de concessão pública.
Não é mera coincidência que no parlamento brasileiro os políticos brancos da bancada ruralista sejam fortes protagonistas da reação às políticas de ação afirmativa para população afro-descendente brasileira. Com frequência, por exemplo, o senador Demóstenes Torres, do partido Democratas de Goiás, é requisitado para dar entrevistas pelas emissoras familiares que, não por acaso, integram associações do agronegócio no Brasil.
A despeito da maioria da população do campo brasileiro ser negra e viver em condição de miséria ou pobreza, não há volume significativo de pesquisas que articule questão agrária e questão racial, agronegócio e racismo, como conexões atuais do problema estrutural, que engrena um modo de produção agrícola voltado eminentemente para exportação, ao legado escravocrata brasileiro. A conjunção entre eficiência mercantil do modo de produção e barbárie social, esta movendo aquela, suprindo a modernidade do centro sob o ônus da fratura exposta do sistema, não é novidade dos dias atuais, pelo contrário, data do período colonial.
Para além dos limites corporativos e departamentais da academia brasileira, são os movimentos sociais de trabalhadores do campo que denunciam a face arcaica e brutal da promessa de modernidade brasileira, o agronegócio, dando visibilidade aos índices de criminalidade das cidades de fronteira agrícola do agronegócio, explicitando o caráter danoso para a natureza e humanidade (desmatamento e exportação ilegal de madeira, monocultivo até o esgotamento da terra, criação de pastagens para pecuária extensiva) desse modelo de produção, chamando atenção para a libertação de trabalhadores em condições análogas à escravidão em fazendas-modelo do setor agrícola, e expondo a crescente internacionalização das terras dos países do hemisfério sul.
Entretanto, mesmo com a intensa movimentação há limites no plano da formulação de estratégia, em função do não reconhecimento no plano histórico, teórico, e como providência de articulação da classe trabalhadora brasileira, das conexões explosivas entre terra, raça e classe. Florestan Fernandes, um dos principais intérpretes da formação do Brasil, pensador reconhecido e homenageado por diversos movimentos sociais brasileiros (embora seus estudos sobre classe e raça sejam, paradoxalmente, pouco lidos), questiona a invisibilidade dos vínculos explosivos entre classe e raça no Brasil: o fato nu e cru é a existência de uma imensa massa de trabalhadores livres e semilivres, na cidade e no campo. É, portanto, entre os de baixo, onde a luta de classes crepita com oscilações, mas com vigor crescente, que a raça se converte em forte fator de atrito social. Há problemas que poderiam ser resolvidos “dentro da ordem”, que alcançam a classe mas estão fora do âmbito da raça. A raça se configura como pólvora do paiol, o fator que em um contexto de confrontação poderá levar muito mais longe o radicalismo inerente à classe (1989, p. 42).
A pauta dos movimentos, a despeito de sua legitimidade, é em geral reativa ao avanço do modelo hegemônico e não organizativa. A maioria negra do campo é vista pelos movimentos somente sob o crivo da condição de trabalhadores rurais, sem que 350 anos de escravidão façam diferença na compreensão do problema e na formulação de estratégias para lidar com a questão. De modo geral, a interpretação política da esquerda brasileira expropriou a historicidade da classe trabalhadora, a saber: quando os negros em condição escrava foram libertos pela abolição da escravidão eles perderam a sua cor, sua memória afro-descendente, e entraram para a história como os despossuídos, os pobres, desempregados, mão-de-obra desqualificada para o trabalho, trabalhadores rurais, rurícolas.
Outra dinâmica de anulação dos vínculos emancipatórios entre classe e raça é o discurso homogeneizante da diversidade, que não reconhece a contradição na diferença, porque nega o caráter dialético do curso do processo histórico e se recusa a reconhecer os vínculos estabelecidos pela condição de classe entre os trabalhadores, a despeito de suas diferenças regionais, étnicas e de modo de trabalho. O discurso da diversidade inclui a todos no universo da cidadania, mas mantém os segmentos populares isolados uns dos outros, como adornos de um país miscigenado, pressuposto para a propaganda de nossa especificidade formativa. Nessa perspectiva, a questão racial não é negada, pelo contrário, ela é anulada ao ser afirmada como um elemento entre outros de nossa diversidade, e não como um dado estruturante da configuração das classes sociais no Brasil.
A dinâmica do capital nas terras brasileiras estabeleceu na relação entre exploradores e explorados, isto é, na questão de classe, especificidades que não podem ser ignoradas, como a desigualdade étnica e racial e de gênero, pois essas formas de discriminação são pressupostos para a reflexão sobre a consistência da desigualdade de classe no Brasil. Isto quer dizer que não se trata de categorias paralelas, se trata de problemas constituintes da forma de exploração brasileira e, por isso, devem ser pensadas de forma integral.
Há ainda, para além da existência dos espaços protocolares de articulação entre os movimentos sociais de diversos segmentos populares, a resistência ao debate sobre classe, raça e terra, sob a alegação de que esse debate pode incitar a segregação e a desarticulação das bases sociais. Sem perceber, esse medo é parente, ou herdeiro da “síndrome do pânico” [1] manifestado pelas elites brancas do país desde o período escravocrata; é a manifestação da introjeção de um preconceito sócio-racial que tem efeito regressivo perante a organização das classes populares brasileiras.
Outra causa possível do afastamento entre trabalhadores brancos e negros é a competição pelo trabalho, pelas mínimas condições materiais de reprodução da existência, no Brasil pós-abolição, que contrapôs negros livres sem recurso a colonos brancos e amarelos.
Não se faz hoje associação de causa e consequência diante do fato de sermos o país recordista na concentração de terras (46% das terras nas mãos de 1% de proprietários), o último a abolir a escravidão, e termos a maioria da população negra em condição de pobreza. A Lei de Terras, promulgada em 1850, é um marco para a compreensão do destino articulado da questão agrária e da questão racial do país. Quando a elite percebeu que a escravidão teria um fim datado na história mundial – haja vista que a revolução dos negros haitianos já tinha ocorrido (1804) e amedrontava os senhores de escravo brasileiros, e que a produção excedente de mercadorias exigia a expansão do mercado consumidor na periferia mundial –, adiantou-se e decretou que as terras poderiam ser compradas (a altos custos), herdadas ou concedidas pelo poder do Estado. Então, trinta e oito anos depois dos braços negros tornarem-se livres, as terras já eram mercadoria, com preços inacessíveis para a população negra ex-escrava, que até à abolição em geral não era remunerada pelo fruto do seu trabalho.
Latifúndio e racismo são desdobramentos do mesmo problema, embora hoje sejam tratados como problemas de ordem distinta. O poder hegemônico omite os elos históricos entre a questão agrária e a questão racial e aborda a luta dos trabalhadores rurais sem terra e do movimento negro como manifestações de ordem conjuntural, local, específica – coisa de desocupados e baderneiros, para a primeira questão, e da ordem do ressentimento individual ou de grupo minoritário para a segunda – e não pela dimensão estrutural que envolve ambos.
Os sistemáticos ataques da direita (com o ex-PFL na linha de frente e PSDB logo atrás) às bandeiras e conquistas dos movimentos sociais do campo e movimentos negros evidenciam duas questões: 1º) Que ao contrário do que pregam críticos de extrema-esquerda, as ações desses movimentos confrontam diretamente o poder hegemônico, daí as manifestações reativas da direita. Não se trata, portanto, de ações pontuais e fragmentadas, pois tocam na estrutura da propriedade no país e na questão da distribuição de renda, ambas ligadas diretamente ao princípio de acumulação desigual da sociedade capitalista. 2º) A observação da estratégia de resistência da elite às tentativas de políticas civilizatórias dos grupos subjugados leva a ver a falsidade das premissas que legitimam a república (universalidade, mérito, etc.). Argumentos como “negros vão piorar a qualidade do ensino superior”, “política de cotas vai quebrar a meritocracia” e “a ação dos movimentos sem terra é terrorista”, constantemente propalados pelos veículos da imprensa burguesa, se configuram na versão moderna da “síndrome do pânico”.
Unidade construída a partir da luta conjunta
A unificação da estratégia de vários movimentos sociais de massa em torno do objetivo de construção de um projeto popular para o país tem permitido alianças entre movimentos sociais que desde suas origens, com a redemocratização do país, vinham atuando em torno de bandeiras corporativas e por demais específicas. A pauta da educação, por exemplo, permitiu a convergência de movimentos negros de luta contra o racismo e de movimentos camponeses; isso pode ser verificado no artigo “Luta, organização e unidade dos jovens pela educação no Brasil”, escrito por dois dirigentes, Douglas Belchior e João Paulo Rodrigues, respectivamente da Uneafro e do MST.
O casamento da luta contra o racismo e contra o agronegócio, em torno da educação e de um projeto popular, tem um grande potencial de resistência à expansão do capital na cidade e no campo. É o mesmo capital que impõe a desigualdade racial para aumentar a exploração do trabalho da juventude negra e avança, por meio do agronegócio, sobre terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária. Paralelamente, ambos têm que lutar para garantir o acesso à educação, uma vez que o Estado não foi capaz de universalizar esse direito fundamental para a sociedade (2010, p. 02).
Essa articulação em torno de uma pauta comum de lutas gera indagações ao passado, em busca de conexões, de causalidades, capazes de elucidar impasses do presente e projetar perspectivas radicais para o futuro. Trata-se do esforço de reconstrução de pontes com o passado, de encontro dos sobreviventes com a tradição de expropriação que condicionou a situação abissal de desigualdade contemporânea. No mesmo artigo, Belchior e Rodrigues destacam:
A herança latifundiária brasileira (de propriedade jurídica) tem raízes na Lei de Terras de 1850, editada para perseguir os quilombos e estabelecer quem deveria ser dono das terras e quem não deveria. Essa ação do Estado, junto com outras intervenções, tornaram intrínsecas as lutas camponesas e a luta da população e da juventude negra das cidades. Num país onde a Independência manteve a escravidão e a abolição do escravismo manteve o latifúndio, podemos afirmar que os desafios dos negros e sem terra são duas faces da mesma moeda (Idem, Ibidem).
Notas
[*] Professor do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, pesquisador do grupo “Modos de produção e antagonismos sociais” e integrante do Coletivo de Cultura do MST.
[1] Expressão cunhada pelo sociólogo Clóvis Moura em Sociologia do negro brasileiro (São Paulo: Ática, 1988), para denominar a dimensão do pavor que afligia as famílias escravocratas diante da possibilidade de um levante insurgente da população negra em condição escrava no Brasil.
Referencial bibliográfico
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989.
RODRIGUES, João Paulo; BELCHIOR, Douglas. Luta, organização e unidade dos jovens pela educação no Brasil. São Paulo: Jornal Brasil de Fato, ano 8, nº 369, 25 a 31 de março de 2010.
As fotografias são, evidentemente, de Sebastião Salgado.
A ideia de juntar a questão agrária e a questão racial no Brasil é boa, mas não me parece que este artigo a desenvolva de maneira conveniente. O autor critica repetidamente aquela historiografia que trata um dos problemas esquecendo o outro, mas ele próprio não procede a qualquer esboço de relacionamento, a não ser afirmando que a relação existe.
Todavia, o que me parece mais pernicioso na argumentação do autor é a imagem de um Brasil arcaico, a que ele permanece apegado. O autor escreve que «o poder da classe dominante brasileira é sustentado pelo tripé “monopólio da terra + controle dos meios de comunicação + poder político eleitoral”», ou seja, o poder económico, o poder ideológico e o poder político. Mas nós não vivemos já no Brasil dos coronéis. O poder político é hoje controlado por grupos resultantes de uma enorme operação de promoção social efetuada no âmbito da antiga extrema-esquerda (para a actual nem será preciso esperar os vinte anos que se esperou para esta) e no âmbito dos sindicatos. O poder ideológico assenta em empresas de televisão que não estão muito atrás das norte-americanas no ramo da exportação cultural, já que as telenovelas brasileiras preenchem os serões de muitos milhões de pessoas desde o ocidente da Europa até à China. (A propósito, seria oportuno que aqueles que se mantêm tão preocupados com o imperialismo cultural dos Estados Unidos atentassem um pouco no imperialismo cultural do Brasil, a não ser que considerem um melhor do que o outro.) Quanto ao poder económico, é ilusório afirmar que ele se sustenta no «monopólio da terra» numa época em que a indústria brasileira — tanto no sector manufactureiro como no extractivo e na construção — se afirma como muito concorrencial por todo o mundo, em que o BNDES se revela como um instrumento financeiro muitíssimo eficaz para promover e acelerar a formação de empresas transnacionais de sede brasileira e em que o Banco do Brasil é considerado por vários economistas mundiais como um modelo de conjugação dos mecanismos estatais e privados. Quem quiser saber onde se sustentam hoje as classes dominantes brasileiras deve olhar para o BNDES e para os fundos de pensões sindicais e para-sindicais, que detêm posições de controlo nalgumas das grandes empresas do país.
Mas o inconveniente mais notório da perspectiva arcaizante em que o autor se coloca é o ataque ao agronegócio meramente a partir do ponto de vista da pequena produção familiar, desprezando a utilização das contradições internas do agronegócio para o desenvolvimento da luta anticapitalista. Seria uma grave injustiça pretender que o autor é o único a fazê-lo, porque no mesmo erro cai o MST, com consequências muitíssimo funestas. Ou o MST, enquanto representante da pequena agricultura familiar, estabelece como tarefa prioritária a articulação da sua luta com a luta dos assalariados rurais e especialmente dos assalariados do agronegócio, ou então o MST se condena à irrelevância e mesmo à extinção no prazo de uma ou duas décadas.
A este respeito, convém ainda recordar que, segundo o autor, devemos «desconfiar de todo e qualquer argumento da esquerda que seja semelhante aos utilizados pela classe dominante». Eu poderia perguntar por que motivo a regra não funciona em sentido inverso, ou ainda se o facto de a direita afirmar que a terra é redonda deve levar-nos a defender que ela seja bicuda. Deste modo o facciosismo dogmático é substituído à análise crítica, quando o importante não são as semelhanças formais mas as relações genéticas. É curioso que seja o autor a afirmar aquele princípio metodológico drástico, pois é ele mesmo quem enaltece o «caráter estratégico da agricultura familiar para a soberania alimentar, para a diversidade dos gêneros alimentícios e para a saúde e economia da população». Ora, a preocupação com a «soberania alimentar» caracterizou as doutrinas económicas da direita conservadora, e o panegírico de uma agricultura familiar voltada não só para a «soberania alimentar» mas para o que muitos chamam de respeito pela natureza encontra-se numa variedade de autores da extrema-direita. Vejamos um exemplo. Aqueles que hoje, na extrema-esquerda, falam nestes termos deveriam ler as obras de Walter Darré, que ocupou nos SS o posto de Obergruppenführer (a mais alta patente dos SS, inferior apenas a Himmler) e que em 1930 foi nomeado conselheiro de Hitler para as questões agrícolas. Desde o final de 1931, Darré ficou encarregado do Departamento Central de Raça e Colonização dos SS e em seguida, desde o Verão de 1933 até 1942, ele foi Führer dos Camponeses do Reich e ministro dos Abastecimentos e da Agricultura. Darré prosseguiu uma política consequente de protecção à agricultura familiar, que constituiu uma das bases organizativas e ideológicas do Terceiro Reich, procurando igualmente a soberania alimentar e enaltecendo a ecologia. Aliás, a noção do respeito pela mãe natureza deu origem à chamada Física Ariana, uma corrente científica — mais exactamente, pseudocientífica — oficial do Terceiro Reich destinada a substituir a Física Quântica nas universidades e nos centros de pesquisa. Seria conveniente que estas experiências históricas fossem conhecidas e estudadas por aqueles que, na extrema-esquerda, gostam de evocar o «caráter estratégico da agricultura familiar para a soberania alimentar, para a diversidade dos gêneros alimentícios e para a saúde e economia da população».
A pessoa que escreveu não sabe sobre o que está falando. Ou então quer usar o PassaPalavra como plataforma política para uma tese em disputa dentro do MST paulista. Tenho muitas considerações a respeito, mas prefiro listar somente algumas delas.
(a) Valmir Assunção é a mais visível liderança do MST na Bahia. Integrante da Articulação de Esquerda (PT), alçado a deputado estadual, foi quiçá o primeiro integrante do MST a assumir cargo de secretário de estado (Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza) em 2006, e agora em 2010 foi eleito deputado federal. Em seu discurso de abertura de trabalhos na Câmara dos Deputados, referenciou-se em Zumbi dos Palmares – nada a estranhar – e na falecida Lélia Gonzalez, histórica militante do movimento negro e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), ala do movimento negro com maior capilaridade entre todas. Em sendo Valmir a buscar estas referências, sabendo-se da enorme influência que tem sobre as bases do movimento (para bem ou para mal), e considerando outras oportunidades em que demonstrou conhecer a fundo o movimento negro nos níveis baiano e nacional, não acho que a relação entre MST e movimento negro seja tão distante quanto o autor quer dar a entender. E Valmir não parece ser um caso isolado no movimento.
(b) Não bastasse isso, aqui na Bahia a Secretaria da Promoção da Igualdade (SEPROMI) é uma daquelas “secretarias/ministérios identitários” criados para calar a boca dos movimentos “de identidade” (feminista e negro principalmente) que lutaram pela sua construção e colocar suas alas e facções para brigar entre si por cargos de confiança. A SEPROMI é tradicionalmente um cargo disponibilizado ao movimento negro; veja-se, por exemplo, o caso de Luiza Bairros na SEPPIR, “versão federal” deste órgão, e de Luiz Alberto na própria SEPROMI. Ora, a SEPROMI está sendo disputada entre o movimento negro e… o MST! Através destes dois exemplos, pergunto: como, então, pensar que o MST não pauta a questão racial ou não se relaciona com o movimento negro organizado?
(c) Além disso, é preciso ler estas questões não com os olhos da esquerda, mas também com os da extrema-direita. D. Bertrand Maria José Pio Januário Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança e Wittelsbach, Herdeiro do Trono Imperial do Brasil, Príncipe Imperial do Brasil desde 5 de julho de 1981, Príncipe de Orléans e Bragança, Comendador-mor da Imperial Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, Grão Dignitário-mor da Imperial Ordem da Rosa, e sobretudo conhecido pela arraia-miúda como D. Bertrand de Orleans e Bragança, é o especialista em questões agrárias da extrema-direita. Segundo ele, no livro A Revolução Quilombola, há uma “coincidência de métodos” entre movimentos de luta pela terra e movimentos quilombolas; de acordo com nosso régio especialista, para quem “o verde é a nova cor do comunismo”, “em vários documentos da esquerda nacional aparecem evidências de que o movimento quilombola é uma nova face do famigerado MST”. Mais direto, impossível. E isto para falar apenas da extrema-direita, que costuma ser desbragadamente sincera. Se quisermos saber o que pensa a direita tradicional sobre a relação entre reforma agrária e movimento negro, não é preciso outra coisa além de atenção aos noticiários: basta recordar a campanha dos parlamentares ligados à Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) contra a demarcação de terras quilombolas pelo critério da autodeterminação (ou seja, é quilombola quem se assume enquanto tal), que incluiu uma sequência de reportagens onde “jornalistas”, especialmente da Veja e da Globo, iam de quilombo em quilombo perguntando “você é quilombola?” de porta em porta para reunir todos os “nãos” possíveis e depois colocá-los à disposição de seus editores… Estes quilombos eram certificados e tinham suas terras demarcadas por ação conjunta do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Fundação Palmares, tradicional bastião do… movimento negro! Como, então, pensar ou afirmar que o movimento negro não pauta a questão agrária?
(d) Para piorar, o autor, tal como a quase totalidade daqueles que escrevem sobre o assunto, iguala “questão racial” e “racismo anti-negro”. Ora, esta é uma das muitas formas de racismo existentes no Brasil. Quem vai para qualquer cidade da Amazônia, por exemplo, sente a mesma coisa que senti quando estive na Bolívia: os trabalhadores braçais, os trabalhadores mais subalternos, os mendigos, em resumo, a base da pirâmide social é composta quase exclusivamente por indígenas ou mestiços, enquanto os trabalhadores qualificados, as burguesias grande e pequena, os gestores médios e altos, em suma, a classe dominante é acachapantemente “branca”. O racismo anti-índio no Brasil é tão arraigado que sequer é mencionado. E, para falar a verdade, o movimento de luta pela terra mais eficaz da última década no Brasil, sem sombra de dúvida, é o movimento indígena, com o movimento quilombola seguindo-lhe os passos de perto. Quando o autor omite este fato e preocupa-se apenas com o “racismo anti-negro”, não estaria ele, no mínimo, esquecendo que o Brasil é maior que aquilo que suas relações cotidianas permitem ver? Ou, em última hipótese, não estaria ele sendo, também, racista?
Por que eu ainda me espanto com comentadores agressivos???
Talvez seja o caso de lembrar o propósito do espaço proposto por Paulo Arantes e pelo coletivo do Passa Palavra – o espaço é de debate. Mas, talvez seja mais fácil aos comentadores o gesto da agressão.
O primeiro comentário começa assim: “A ideia de juntar a questão agrária e a questão racial no Brasil é boa, mas não me parece que este artigo a desenvolva de maneira conveniente.” O comentador desenvolve seu argumento sobre o que seria uma “maneira conveniente”. Mas, no frigir dos ovos, tasca-se lá a idéia de que estamos diante de um “argumento pernicioso”.
O segundo comentário completa a questão: “A pessoa que escreveu não sabe sobre o que está falando. Ou então quer usar o PassaPalavra como plataforma política para uma tese em disputa dentro do MST paulista.” Muito que bem, o comentador se desdobra para mostrar que ele sabe do que está falando e de que a experiência dele é, ela sim, aquela que conta. Não poderia deixar de comparecer,é evidente, o gesto primordial num debate sobre racismo: “Ou, em última hipótese, não estaria ele sendo, também, racista?”
Eu sugiro aos camaradas comentadores e ao autor do texto que, se for possível, se desapeguem de teorias da conspiração e esse tipo de pretensão máscula (pois os comentários, baseados em inicial argumentação ad hominem, só podem ser isso!) que acha que debater é dar tapa na mesa.
Por enquanto é só.
Temos, no Brasil (talvez em outras plagas também…) o péssimo hábito de confundirmos críticas com agressões. Pode ser uma suscetibilidade típica do nosso homem cordial; quem sabe?… Ora, achei os dois primeiros comentários muito bem argumentados, com um estilo contundente que eu dispensaria, mas que é direito de quem escreve empregar. Antes “pecar” pela franqueza do que pela ironia desarmante. Espero que o debate não se descaracterize daqui para a frente, pois eu o estava achando excelente.
Em política o ad hominem é inevitável, pois questões políticas não se debatem em abstrato, mas considerando exatamente quem as pauta, onde, com quem, contra quem, por quê e para quem. Não me parece que o PassaPalavra seja uma revista científica na qual exista “isenção científica” ou “verificação por pares pelo método duplo-cego” para que não se possa tornar concretas proposições abstratas; daí tirar as conclusões políticas a que me referi logo no início do artigo.
E isto por motivos simples, todos eles presentes nos fatos que listei. Nenhum deles sequer foi tocado pelo comentador “Em dúvida”, e afetam diretamente as duas teses do artigo:
(1) “…nos movimentos sociais do campo são raras as iniciativas de discussão sobre racismo…”: argumentei a respeito nos itens (a) e (b) de meu comentário anterior, não creio que seja necessário repetir tudo.
(2) “…assim como no movimento negro a reforma agrária não é um ponto chave da agenda de lutas”: argumentei a respeito no item (c) de meu comentário anterior, não creio que seja necessário repetir tudo.
Este é o núcleo argumentativo do artigo: o autor reconhece estes dois problemas e propõe articular as duas lutas. Contra-argumentei com exemplos concretos para demonstrar que esta articulação já existe, e que o autor não a enxerga.
Há algo a dizer contra os fatos que apontei? São falsos? Se houver, ou se forem falsos, bem, que se demonstre, que se diga.
Daí insistir: o autor, ao escrever o que escreveu, não sabe sobre o que está falando. Afinal, isto são fatos que qualquer pessoa ligada ao movimento de luta pela terra ou ao movimento negro sabe de cor e salteado, por serem questões candentes em ambos.
Daí também manter: caso o autor tenha conhecimento dos fatos que elenquei, o artigo é uma defesa de posição dentro do MST paulista, a julgar pela origem mais provável do autor.
E uma última coisa: o comentador “Em dúvida” deve duvidar tanto dos conhecimentos de retórica que demonstra ao criticar a argumentação “ad hominem” que talvez não tenha percebido que ao tratar de um provável e hipotético racismo do autor eu simplesmente usei um argumento “ab absurdum”. Mas isto feriu tanto esta pessoa “Em dúvida” (que, sob o manto do anonimato, pode ser o próprio autor) que o melhor, ao invés de uma explicação sobre este tipo de argumento, é pedir-lhe que releve este argumento e se concentre no que é importante.
Caro João Bernardo: Estou de pleno acordo que os movimentos sociais do campo devam priorizar a organização do assalariado rural inserido no agronegócio. Não obstante isso, o agronegócio deve ser criticado (e combatido) não apenas pelas relações sociais que ele encerra, mas também enquanto um sistema técnico específico que produz relações sociais e ambientais degradantes (ambiente entendido aqui como uma “natureza segunda”, indissociável do ambiente humanamente construído – característica da ruralidade). Do contrário, o risco é que uma eventual reapropriação, pelos trabalhadores, do sistema técnico hoje em posse dos capitalistas no campo acabe por reproduzi-lo. E não me parece uma consequência obrigatória à uma radical reorganização das relações sociais de produção o questionamento proporcionalmente radical de alguns elementos fundamentais da técnica capitalista. Para isso é necessário que tal questionamento seja incluído no programa de lutas dos trabalhadores e que seja posto em prática concomitantemente à reapropriação dos meios de produção.
De todo modo, não me parece que a ênfase sobre a agricultura familiar seja mesmo a melhor estratégia, mas eu sei que já começa a ganhar espaço dentro do MST a tese do desenvolvimento da agroindústria camponesa e cooperativista como contraposição ao complexo agroindustrial capitalista. Falta, realmente, disputar a organização dos trabalhadores “por dentro” do agronegócio, mas eu também não sei em que medida o MST discute isso. Talvez o autor do presente artigo possa nos trazer esclarecimentos a respeito…
Caro Eduardo Tomazine,
Desde há muitos anos que em livros, artigos e cursos eu tenho definido a tecnologia como materialização das relações sociais de produção, o que significa que a crítica às relações sociais tem necessariamente de ser uma crítica à tecnologia. Mas isto não implica que se deva negar a base científica em que a tecnologia capitalista assenta. A ciência avança de outro modo, através da sucessiva conversão de dados patamares científicos em casos específicos e da elaboração de novas teorias gerais. É funesto manipular a ignorância em que a maior parte das pessoas é mantida relativamente à ciência para estimular a histeria política e a caça às bruxas.
A crítica à tecnologia capitalista também não deve implicar a apologia de modos de produção pré-capitalistas. Por muito que certo tipo de extrema-esquerda tenha dificuldade em admiti-lo, o certo é que basta o conhecimento mais rudimentar dos dados empíricos para saber que a revolução capitalista nos campos e a reorganização sanitária das cidades efectuada pelo capitalismo implicaram um enorme crescimento demográfico e o aumento da esperança média de vida. Este foi um resultado das tecnologias capitalistas, apesar de todos os problemas que por outro lado elas acarretaram. E se ao longo da história analisarmos os efeitos secundários das tecnologias, verificamos que quanto mais primitiva é uma técnica, mais consequências nocivas ela produz relativamente aos resultados materiais obtidos.
O problema central das correntes agroecológicas é o mito da natureza. No seu comentário, você deixou claro que entende ambiente como «uma “natureza segunda”, indissociável do ambiente humanamente construído». Com efeito, o que chamamos natureza é o resultado de uma acção multimilenar das sociedades humanas, que de maneiras variadas remodelaram as espécies vegetais e muitas das espécies animais. O mundo que nos rodeia não é natural; é uma criação humana e uma reelaboração humana. É impossível no âmbito de um comentário desenvolver estes aspectos e as suas implicações, que abordei em livros e artigos, aliás parcialmente reproduzidos na internet, segundo creio.
Nesta perspectiva, entendo que o aspecto positivo do MST consiste na forma de luta colectiva que emprega, na nova sociabilização criada nas ocupações e nos assentamentos e na rotatividade dos cargos que muitas vezes ocorre nos escalões inferiores — embora, infelizmente, não ocorra nos escalões superiores. É nestes aspectos positivos, enquanto forma de luta, que o MST constitui uma das mais importantes antecipações actuais do que poderá ser uma sociedade socialista. Pelo contrário, a ideologia ecológica que o MST propaga é uma expressão, e ao mesmo tempo uma causa, da sua incapacidade ou falta de vontade para juntar a luta do pequeno campesinato assente nas explorações familiares à luta que ocorre no interior das grandes explorações capitalistas rurais e, como você bem notou, da incapacidade ou falta de vontade para desenvolver uma «agroindústria camponesa e cooperativista como contraposição ao complexo agroindustrial capitalista».
Por isso eu insisti, no comentário anterior, na conveniência de estudar a política agrária do nacional-socialismo germânico. Ela mostra que a apologia da agricultura familiar, a defesa da ecologia e a mitificação da natureza foram perfeitamente compatíveis com o modo de produção capitalista.
Há o livro que já não é novo, de Ricardo Abromavay, fruto de sua tese de doutorado, chamado ‘Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão’, do qual gosto bastante. Não encontrei nenhum crítica que desfizesse os agumentos do livro (não que eu as tenha procurado muito). Basicamente, entre outras coisas, ele mostra como a agricultura familiar foi fundamental para do desenvolvimento fordista na Europa e EUA, base sobre a qual foi possível o consumo em massa.
Mas como bem apontou o João Bernardo com o exemplo de se achar a Terra redonda ou bicuda, não é por isso que eu seria desfavorável à agricultura familiar em relação ao agronegócio (que a meu ver traz menos perspectivas socialistas, ou seja, levando em conta as relações sociais).
Sobre a “polêmica” levantada pelo Manolo, embora eu não possa dizer que possua contato com o MST, eu não chegaria à conclusão que o autor queira se utilizar do artigo em disputa política no MST. Chegaria à conclusão primeiro que trata-se de diferentes opiniões vindas de diferentes perspectivas. Se a experiência do Manolo faz ele achar que a questão racial e agrária não estão separadas na prática, a experiência do autor me parece que é outra. O Brasil é grande e possui realidades bastante distintas. E aí poderíamos entrar também nas várias teorias sociológicas sobre a coexistência da modernidade e o arcaico neste país, terra dos coronéis e dos conglomerados multinacionais. A tal da classe dominante também é bastante heterogênea, embora pareçam conseguir quase sempre convergir seus interesses.
1) não sou o autor, Manolo. fique despreocupado. no mundo virtual, temos que nos acostumar com a convivência com anônimos – o que não os impede de dar seus pitacos, né não? você já se deu ao trabalho de saber se todos os autores que estão publicando nessa série são “reais”?
na medida em que pensei, com sinceridade, em dizer o quanto acho ridículo a confusão de crítica com agressão (Eduardo: contundência coisa nenhuma: estar bem argumentado não dá direito a ninguém de dizer que o criticado não sabe do que está falando como premissa inicial do argumento; o que se quer com esse tipo de prosa é iniciar já inviabilizando o contendor…), enfim, ia dizendo, na medida em que achei a postura inicial ridícula, achei também que dizer isso não seria bem recebido. Ou seria melhor se eu começasse com: “os debatedores são uns idiotas, mal sabem o que dizem”? Farei isso abaixo, então.
2) acompanhar seus argumentos ao longo do site, Manolo, é ler um baiano (meu conterrâneo…) iniciar seus argumentos sugerindo que o contendor é paulista e, portanto, despreparado. difícil de levar a sério. certamente, a rodada pluralista que você sugere, da máxima importância, deveria sugerir também que sua experiência na Bahia, ou o que você vê por aí, é tão parcial quanto as demais – logo, indo ao ponto, outras experiências regionais que não somente a paulista devem dar a entender o quanto a relação entre racismo e questão agrária mantém-se distante em diversos espaços dos movimentos sociais. sua crítica seria mais pertinente se você dissesse, sem supor a você o ponto pleno de onisciência – postura essa que você pretende criticar no autor (supostamente paulista)-, que espaços ou setores dos movimentos sociais já superam essa pendenga e tal e coisa.
3) será preciso ser luxemburguista, ou leitor de ernst bloch, para reconhecer a articulação simbiótica entre arcaísmo e progresso como motor capitalista?
mas, enfim, Leo Vinícius falou disso tudo melhor do que eu, que apenas estou na dúvida se vale a pena entrar nesse debate. e, de qualquer modo, não acho que ninguém está agindo de má fé… mas, parece.
Digamos, então, para quem prossegue “Em dúvida” (e continua parecendo ser bem inteirado com o processo editorial desta série):
1) Se você é “meu conterrâneo”, deve saber bem do que falo. Só para tirar qualquer dúvida, disse, em meu comentário inicial: “A pessoa que escreveu não sabe sobre o que está falando. Ou então quer usar o PassaPalavra como plataforma política para uma tese em disputa dentro do MST paulista”. Se não é você a pessoa que escreveu, ou se é você mesmo travestido de “conterrâneo”, é questão em aberto. Como se pode ver pelo que escrevi em meu segundo comentário (que você solenemente igonorou), deduzi de onde vem o autor em razão da origem provável da maior parte dos autores da série. Agora, se você escreveu para a série e é “das bandas de cá”, pior ainda, porque isto que lancei como provocações são questões candentes nestas mesmas bandas. A não ser que o fato de você dizer “o que você vê por aí” (ou seja, um lugar outro além deste onde você está) indique que você não acompanha mais o que acontece policamente no mesmo lugar cuja origem você reivindica.
2) “Despreparado”, “difícil de levar a sério”, é interpretação sua. Leia o que escrevi e você verá que não falei disso. O que mencionei foi o aprofundamento da relação entre questão agrária e questão racial ser uma tese em disputa no MST paulista, sem dizer nada quanto à “preparação” ou à “seriedade” de quem quer que seja. Baixe a guarda e leia mais atentamente as coisas.
3) Justamente por pretender que um debate como este seja mais “pluralista”, reconhecendo as “pluralidades” locais, escolhi uma forma contundente de escrita. Porque o texto, tal como se apresenta, não abriu brecha para nenhuma das questões que apresentei. Toma o movimento inteiro como uma coisa só, como se todo o movimento carecesse de debate sobre a relação entre questão agrária e questão racial, e sequer aponta a questão quilombola como elemento fundamental da questão agrária na última década. Isto, por si só, seria um elemento chave para analisar o que foi escrito no artigo. A não ser que o MST, movimento analisado no artigo, seja o único a tratar da questão agrária no Brasil, e não houvesse quaisquer outras iniciativas fora dele neste campo, ou que não houvesse relação entre estas e o próprio MST.
4) “Onisciência”, mais uma vez, é interpretação sua. Apontei fatos concretos diante de um artigo que não demonstra conhecê-los. Como disse no comentário anterior: “Há algo a dizer contra os fatos que apontei? São falsos? Se houver, ou se forem falsos, bem, que se demonstre, que se diga.” Isto é o fundamento básico de qualquer debate politico: fatos. Debater teses, debater doutrina, debater ideias, pode servir interna corporis, mas uma publicação num sítio de acesso irrestrito, vocacionado para o debate aberto, e em especial para quem não conhece os debates internos de um movimento (qualquer que seja), pede um mínimo de explicação, de exposição, de argumentação. E infelizmente é disto que você se esquiva.
5) Não há nada de “superado” nos movimentos quanto à relação entre questão agrária e questão racial. Os elementos que indiquei apenas apontam pontos extremamente importantes acerca desta relação, todos eles bastante concretos, envolvendo inclusive aspectos institucionais importantíssimos, que sequer foram mencionados. A “superação” destes aspectos, ou qualquer proposta neste sentido, exige que, ao menos, sejam levados em conta. O artigo o fez? Em caso positivo, indique onde.
6) A relação entre “arcaísmo” e “progresso” é tema complexo demais para ser restrito a Rosa Luxemburg ou Ernst Bloch, e exige um tratamento bem mais amplo que um comentário permita. Mas pergunto: de onde veio esta discussão, que sequer estava no artigo, ou no meu primeiro comentário, ao qual você tanto se prende? Ou seja: você aproveita o argumento do último parágrafo do comentário do Leo Vinícius e o esgrime contra mim, como se eu não houvesse dito a mesma coisa, em outro contexto, em meu primeiro comentário: “Quando o autor omite este fato e preocupa-se apenas com o ‘racismo anti-negro’, não estaria ele, no mínimo, esquecendo que o Brasil é maior que aquilo que suas relações cotidianas permitem ver?”
Resumidamente: quem segue “Em dúvida” e talvez queira saná-las precisa ler as coisas com mais atenção. E sigamos debatendo.
Antes que me esqueça. É carnaval. Pode parecer banal, mas blocos afro em Salvador tradicionalmente são ligados ao movimento negro, que os têm como forma de ressaltar temas importantes para os negros, de reafirmar a identidade negra num contexto de racismo violento. Dentre estes, o bloco Os Negões, em particular, foi fundado, dentre outros, por militantes do movimento negro. É um bloco afro tradicional, que sai na avenida há pelo menos quinze anos. Sabem qual o tema do bloco este ano? Comunidades quilombolas. O bloco inteiro fantasiado com estampas homenageando a comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu. Reconheci imediatamente algumas das fotos estampadas como sendo a representação de algumas lideranças locais e de simbologias ligadas à luta da comunidade. Trata-se exatamente de uma daquelas onde “jornalistas” foram perguntar se “você é quilombola ou não”.
“Carnavalizando” ou não a questão — bakhtinianos podem ler esta afirmação como quiserem — o movimento negro parece estar pautando a questão quilombola em outros aspectos além do institucional, a que já me referi quando mencionei a Fundação Palmares e sua relação com as comunidades quilombolas.
Objetivamente falando, a questão quilombola é um “misto” de questão racial com questão agrária, que chega exatamente ao núcleo do artigo. Ao menos na Bahia, que é pontilhada por quilombos. E isto tratando-se apenas do combate ao “racismo anti-negro” através da luta por uma política fundiária que reconheça a posse destas comunidades sobre a terra onde vivem — cuja propriedade é do Estado, é terra pública. No caso das reservas indígenas, a questão fundiária tem sido resolvida de forma semelhante. E em outros lugares, como é? Igual, diferente? Como, de que formas, de que maneiras? O artigo aponta uma vertente, sem dizer de onde ela vem, como se fosse absoluta. É isto mesmo? Ou há mais a dizer sobre o assunto, que sequer cabe nestes comentários? Esta me parece ser a hipótese mais plausível. E é este o centro do debate que propus. E não as dúvidas, angústias ou birras de quem permanece “Em dúvida”.
Manolo, a discussão da modernidade e do arcaísmo foi levantada no comentário do João Bernardo, em que ele critica o autor por “arcaizar” aquilo que ele considera o tripé de sustentação da classe dominante brasileira: o poder econômico, ideológico e político, como se a hegemonia da atual formação social brasileira fosse ainda exercida pelos coronés.
É inegável que o Brasil congrega relações sociais arcaicas com outras modernas, mas dizer que é da natureza do capitalismo tal congregação não esclarece em nada a atual situação do país. Vivemos hoje sob uma hegemonia burocrática (ou gestorial) composta pelas elites do movimento sindical emergentes na década de 70 e articuladas aos quadros de grandes corporações, os quais pilotam poderosos instrumentos econômicos que dirigem quase todas as relações políticas e sociais no Brasil, subjugando, inclusive, as elites arcaicas, as quais estão a perder progressivamente as suas bases de sustentação pela promoção social maciça da população mais pobre.
Li uma entrevista do Gilmar Mauro na Caros Amigos (não me lembro do número, lamento…) em que ele polariza o projeto do agronegócio ao da agricultura familiar, projetando ainda uma conjuntura de acirramento dos conflitos no campo em decorrência do fechamento da fronteira agrícola brasileira. A estratégia que se subentende pela sua argumentação é a da intensificação das ocupações e da pressão pela regularização dos assentamentos enquanto a fronteira ainda está aberta, fazendo com que o projeto da agricultura familiar tenha o máximo de base possível para concorrer com o agronegócio… Ora, talvez o que deva-se considerar como mais urgente seja o solapamento das próprias bases sociais do MST proporcionado exatamente pela promoção social estimulada pela hegemonia gestorial. Com um mercado de trabalho unificado pelo território nacional, parece-me difícil que o projeto da agricultura familiar tenha força o suficiente para fazer frente ao agronegócio e a uma economia urbana florescente, a não ser por um investimento ideológico desproporcional sobre alguns valores que são muito facilmente convertíveis em um projeto conservador: a propriedade da terra, a família e o milenarismo.
Eduardo, concordo em parte com o que você diz. E, dentro daquilo em que concordo, digo mais: o avanço das lutas indígenas e quilombolas pela terra tem se tornado tão perigosa para o agronegócio quanto a reforma agrária tradicional, ou mesmo mais. Afinal, tendo como exemplo os casos da reserva Raposa/Serra do Sol e do quilombo de São Francisco do Paraguaçu, é impressionante nas lutas indígenas e quilombolas a quantidade de terras recuperadas do latifúndio, passando por cima de grilagens e outras formas de “acumulação primitiva” típicas do latifúndio brasileiro. O problema, nestes casos, é outro: não se trata de terras recuperadas para algum tipo de propriedade comunal, mas sim de terras transformadas em terras “públicas”, de propriedade do Estado. Na atual conjuntura, isto é uma condição destas lutas, mas que problemas esta condição acarreta, já, ou pode vir a acarretar no curto e no médio prazos? Esta é uma questão interessante para quem queira refletir sobre a interligação entre questão racial e questão agrária. Afinal, já está tudo acontecendo diante de nós, basta olhar e refletir.
Agradeço pelos comentários e abaixo dialogo com alguns deles:
Em diálogo com João Bernardo:
¬ quanto ao “inconveniente mais notório da perspectiva arcaizante”: salvo engano, João Bernardo tem uma ideia preconcebida de agricultura familiar, sustentada pelo preconceito muito disseminado pela hegemonia, da posição de que o projeto da reforma agrária é avesso à tecnologia, ao “progresso óbvio” do modelo do agronegócio, se não, vejamos:
1º) Os impasses do agronegócio, em seus próprios termos, foram citados no argumento (“índices de criminalidade das cidades de fronteira agrícola do agronegócio, desmatamento e exportação ilegal de madeira, monocultivo até o esgotamento da terra, criação de pastagens para pecuária extensiva, presença de trabalhadores em condições análogas à escravidão em fazendas-modelo do setor agrícola), não se trata de uma questão de dogma, mas de pesquisa, de comprovação científica.
Além disso, conforme dados apurados no Censo Agropecuário de 2006, divulgado pelo IBGE, nos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) estão quase 85% dos trabalhadores empregados. Embora a soma das áreas dos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) represente apenas 30,3% do total das áreas, eles respondem por 84,4% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores e seus parentes representam 77% do total de pessoas ocupadas. A agricultura familiar gera 15 postos de trabalho/100 ha, a não familiar gera apenas 1,7 pessoas/100 ha. A agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. Mesmo ocupando apenas ¼ da área, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção (R$ 54,4 bilhões).
O modelo defendido pelos movimentos ligados à Via Campesina não abre mão da apropriação da tecnologia, e se isso não ocorre tão agilmente, convém lembrar a serviço de quem está o Estado brasileiro antes de extraírmos juízo estático de uma situação dinâmica: apenas nas áreas do MST há cerca de duzentas agroindústrias, com toda dificuldade para linhas de crédito, etc. A agroindústria é meta do projeto de reforma agrária popular defendido pelo MST. Veja, a título de exemplo, entrevista publicada na página do MST http://www.mst.org.br/node/7748 no dia 28 de julho de 2009, com o presidente da Cooperoeste, “O potencial de nossas coperativas”.
2º) Interessante, a título de registro historiográfico, o dado sobre o uso do discurso sobre soberania alimentar e agricultura familiar pela extrema direita, pelo nazismo, mas o editor pretende daí comparar os movimentos sociais do campo brasileiro que defendem essas pautas com o movimento nazista? Isso caberia na revista Veja, que já comparou o MST com o nazismo por motivos como o uso de “uniforme”, a presença de forte ideologia, a ação organizada das massas, etc.
A crítica ao suposto arcaísmo do MST em quase nada se difere daquela feita pelos próceres do agronegócio. Caberia nessa seção de debate um artigo sobre os potenciais fatores contra-hegemônicos no campo da disputa pela matriz produtiva, levado adiante por alguns movimentos sociais, escrito por alguém que pesquise o tema.
¬ sobre a imagem de um país arcaico a que o autor supostamente tem apego: ok, bem colocado que há a questão mais recente dos fundos de pensão, das multinacionais beneficiárias dos empréstimos do BNDES e do sistema financeiro, e que há alterações significativas na estrutura do poder hegemônico em função de dados que levanta (que são foco de pesquisas do grupo “Modos de produção e antagonismos sociais”). Não fiz a devida ponderação e concordo com a ressalva, contudo, discordo da configuração dualista de teu contraponto. Aquela suposta velha classe dominante não foi descartada, basta ver quem são os caciques da direita no Congresso Nacional: na grande maioria são aqueles que constituíram seu poder pelo tripé citado, e que hoje acrescentam em seus patrimônios os dividendos de suas ações de mediadores lobistas do grande capital. A face arcaica é incorporada no novo ciclo de modernização conservadora, e além de não deixar de existir, segue sendo estruturante. Sobre a eficiência de nossas empresas de comunicação, concordo, somos recordistas em exportação de carne, soja e telenovelas, indício de quanto o caráter arcaico da estrutura do país é moderno. Enfim, não há dicotomia entre arcaico e moderno no Brasil, como negócio, aliás, o país já nasce como uma empresa bem sucedida…
– sobre a alegação da ausência dos vínculos entre as duas questões: procurei estabelecê-las em três frentes: das marcas originárias comuns (escravidão, lei de terras de 1850…), da posição da classe dominante frente às duas questões e das contradições prementes que já começam a render lutas articuladas (cito uma reportagem de dois dirigentes que justifica os motivos das lutas comuns no presente);
Sobre as conjecturas de Manolo: militantes não costumam usar sites abertos para debate sobre estratégia interna de suas organizações. O caso da Bahia, em termos de consciência vinculada de classe e raça, é exemplar, mas pelo que conheço, salvo engano, não há paralelo em nenhum outro estado brasileiro. Ponto C) sim, a direita vê bem as conexões, isso está no texto, bons os teus exemplos, o que chamo atenção é para o paradoxo: a classe dominante vê mais elos do que as organizações estabelecem em termos de estratégia de luta. Reforma agrária e demarcação de terras quilombolas são processos diferentes…
O apego que a maioria da extrema-esquerda tem à imagem de um país arcaico não se circunscreve, infelizmente, ao Brasil. Para empregar os conceitos marxistas, essa extrema-esquerda sente-se capaz de lutar em termos de mais-valia absoluta, mas não de mais-valia relativa. E assim fica ultrapassada pelo desenvolvimento económico e condena-se à marginalização e à irrelevância. Na resposta ao meu comentário Villas Bôas demonstra uma vez mais o arcaísmo de concepções, quando escreve que «basta ver quem são os caciques da direita no Congresso Nacional». Ora, só na letra das Constituições é que, em qualquer país, o parlamento continua a ser um centro da soberania. Desde há várias décadas os parlamentos ficaram desprovidos de poder e o poder político passou para os bastidores, para os órgãos tecnocráticos de decisão e de assessoria. O facto de no Brasil os ruralistas mais retrógrados concentrarem a sua força no parlamento confirma que chegaram a um elevado grau de debilidade política. Mas é outro o problema principal.
A afirmação, muito corrente, de que a agricultura familiar ocupa uma elevada percentagem da força de trabalho relativamente à área onde está estabelecida corresponde simplesmente a afirmar que a agricultura familiar é genericamente pouco produtiva. Não percebo por que motivo as pessoas que usam este argumento se limitam ao campo e não o aplicam também à indústria. As pequenas oficinas de tecnologia arcaica empregam uma percentagem muito considerável de mão-de-obra relativamente ao output que geram. Vamos, então, defender a desarticulação das grandes indústrias e a proliferação de pequenas oficinas? No capitalismo — visto que em tudo isto é de mercado capitalista que se trata — os ramos trabalho-intensivos são, por definição, os ramos com baixa produtividade. Enquanto o MST apresentar este tipo de programa económico, continuará a isolar-se da classe trabalhadora não só do agronegócio como igualmente da indústria. E é isto que, para mim, é verdadeiramente preocupante.
Se adoptarmos como modelo uma tecnologia agrária de carácter vernáculo, convém observar que em alguns estados da Índia e sobretudo em África, onde a agricultura e a pecuária familiares são muito disseminadas, o desmatamento e o esgotamento das terras atinge um grau muito elevado. É nessas regiões que devem estudar-se os efeitos a médio e longo prazo da generalização da agricultura familiar.
Sem dúvida que pode subsistir uma agricultura familiar aliada à modernização tecnológica e, portanto, com elevados índices de produtividade, como Villas Bôas defendeu no seu comentário. Mas será bom analisar as funções sociais deste tipo de agricultura na União Europeia, sobretudo em França, e nos Estados Unidos. O comentário de Leo Vinícius deu algumas indicações neste sentido, e a propósito é conveniente saber que Henry Ford, a figura que qualquer pessoa associa imediatamente à indústria de massas, foi também um incansável apologista da sociedade agrária. «Sou um homem do campo», afirmou ele em 1918, uma das muitas declarações do mesmo estilo que prodigou ao mundo. «Quero ver cada acre da superfície terrestre coberto por pequenas quintas, onde habitem pessoas felizes e satisfeitas». Aliás, Ford procurou desenvolver a agricultura familiar em relação com os seus complexos fabris. Estes devaneios ruralistas não eram politicamente inocentes, porque foram expostos em 1920 em The International Jew, uma obra que Ford assinou e que tanto contribuiu para divulgar o anti-semitismo pelo mundo, exercendo uma influência directa sobre o racismo alemão e nomeadamente sobre Hitler.
Quem pretende defender a agricultura familiar como um instrumento anticapitalista não deve ignorar os casos históricos em que a agricultura familiar serviu como reforço social e ideológico do capitalismo. Já agora, quem será que escreveu as linhas seguintes? «A teoria mais desastrosa é a que estabelece um contacto íntimo e uma harmonia entre as ideias modernas e as catástrofes delas resultantes, dizendo que “tudo são sinais de progresso”, porque, se realmente forem, então será de um progresso que conduz ao abismo. Ninguém pode assinalar um progresso efectivo no facto de que, onde os nossos antepassados usavam moinhos de vento ou hidráulicos, nós empreguemos motores eléctricos. Sinal de um verdadeiro progresso seria a resposta a esta pergunta: que influência essas rodas exercem sobre nós? Foi a sociedade da época dos moinhos de vento melhor ou pior do que a actual? Foi mais uniforme nos costumes e na moral? Tinha mais respeito pela lei e formava caracteres mais elevados?». O autor destas linhas evoca o «respeito pela lei» e Villas Bôas preocupa-se igualmente com os índices de criminalidade elevados que atribui à dissolução da agricultura familiar. Interessante convergência. Mas índices de criminalidade elevados verificam-se numa grande diversidade de circunstâncias, pelo que não devem, neste caso, ser empregues como argumento.
O que procurei afirmar no meu comentário anterior, e que reforço neste, é que a agricultura familiar, em vez de ser uma solução, é um nó de problemas. E se quisermos, no quadro da agricultura familiar, desenvolver uma orientação anticapitalista não só social mas tecnologicamente, temos de estudar as experiências históricas em que a agricultura familiar serviu, social e tecnologicamente, de suporte do capitalismo. Se em vez de uma reacção desabrida, em que me compara aos jornalistas da Veja, Villas Bôas tivesse aproveitado a minha indicação para ler as obras de Walter Darré e estudar a política agrária do Terceiro Reich, talvez passasse a entender melhor aquele complexo de problemas. Mas vejo agora que isso seria pedir demais.
Rafael, tenho alguns pontos a ressaltar, alguns deles já repetidamente.
(1) Acho que considerar “reforma agrária e demarcação de terras quilombolas” como “processos diferentes” faz parte exatamente deste “paradoxo” segundo o qual “a classe dominante vê mais elos do que as organizações [de esquerda] estabelecem em termos de estratégia de luta”. O “paradoxo” é tão grande que chega a aplicar-se a seu próprio artigo. Por alguns motivos:
(a) Se a reforma agrária é um projeto de distribuição das terras de um país de maneira mais equânime, tanto a demarcação de terras quilombolas quanto a demarcação de terras indígenas se enquadram no conceito.
(b) Pode-se igualmente, e com mais justiça, considerar que a reforma agrária envolve não apenas a redistribuição de terras, mas também toda a assessoria técnica à pequena produção resultante desta redistribuição, de acordo com os objetivos pautados pelos pequenos produtores. Do contrário, é a ante-sala do êxodo rural. E é exatamente este — assessoria técnica — um dos objetivos da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que representa comunidades quilombolas de 21 estados, Da mesma forma, para usar um exemplo mais próximo, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), que congrega 64 povos indígenas destes lugares, reivindica também assistência técnica e extensão rural para as comunidades indígenas. Se a conjugação entre democratização do acesso à terra e assessoria técnica (ou sua reivindicação) forem os critérios definidores de um processo de lutas por reforma agrária, a luta pela demarcação de terras indígenas e quilombolas entram neste critério e pode ser consideradas reforma agrária com folga.
(c) A única hipótese de não se considerar a demarcação de terras quilombolas e indígenas como processos integrantes da reforma agrária é a perspectiva da agroindústria popular, pois os movimentos indígena e quilombola, em sua maioria, exigem respeito aos modos de produção tradicionais. É este o critério que você emprega para diferenciar as coisas? Porque se for este, o que pode-se extrair como conclusão deste critério é que somente luta pela reforma agrária quem aceita e/ou propõe esta pauta, e só quem a propõe é o próprio MST. Ora, a realidade mostra que ele, não obstante sua enorme relevância no cenário político do país, não é o único a lutar deste lado da trincheira. Ou então, como outra linha de raciocínio, o que advém é exatamente o que você disse, mas com o tiro saindo pela culatra: que a esquerda, você inclusive, tem sido míope quanto a esta questão, a de considerar a luta pela demarcação de terras indígenas e quilombolas como parte da reforma agrária.
(2) Os dados do Censo Agropecuário 2006 citados são, tal e qual, incusive na ordem dos dados citados, aqueles das seis páginas dos “Comentários” divulgados pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Eles são o fundamento da palavra-de-ordem dos movimentos de luta pela reforma agrária, de que “a agricultura familiar é quem produz para a mesa do brasileiro”. (É preciso antes de continuar fazer uma ressalva: “a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção”, sim, como você diz, mas da produção agrícola, e não de uma produção “sem adjetivos”, que pode dar a entender que se trata da produção econômica brasileira em geral.) Apesar de servir para indicar a importância da luta pela reforma agrária para quem não a compreende bem, estes são dados que, apresentados soltos, não indicam problemas ainda mais sérios:
(a) Os setores da agropecuária sobre os quais tem avançado a agricultura familiar, originária ou não de reforma agrária, são exatamente aqueles deixados de lado pelos latifundiários e pelos agronegociantes ao longo do desenvolvimento da economia brasileira. A atual estrutura da agropecuária brasileira segue, em linhas gerais, o mesmo estilo de produção para exportação vigente desde a colonização, no qual grandes latifundiários produzem para exportação e pequenos agricultores produzem para subsistência e pequeno comércio. Você pode ver estas questões comparando dados dos Censos Agropecuários de 1970, 1975, 1980, 1985 e 1995/1996 com os dados de 2006, com o dificultante de a agricultura familiar só haver sido considerada em comentários separados neste censo mais recente.
(b) O Brasil em 2010 foi o terceiro maior exportador agrícola do mundo, mas apesar dos avanços da agricultura familiar e da agroindústria familiar, e apesar de o Brasil ter como carros-chefes de suas exportações exatamente produtos agrícolas, a representação da agropecuária no total do PIB brasileiro há muito tempo não passa dos 5%. O poder econômico do agronegócio é infinitamente menor que o poder econômico das classes que dominam os setores industrial e de serviços, em especial em relação ao setor industrial; tanto é assim que o setor industrial nem precisa disputar posições políticas no Congresso, porque tudo o que lhe diz respeito foi transformado em “questão técnica”, “questão procedimental”, e passa ao largo do parlamento, resolvendo-se pelo semi-automatismo dos “meios administrativos”. Ao invés de disputar votos para eleger representantes ao Congresso, basta-lhe disputar diretamente com o Comitê de Política Monetária (COPOM) as casas decimais da taxa de juros através da mídia e de pressão direta, ou — noutro exemplo — participar de missões diplomáticas brasileiras em viagens para a África e lá, com o beneplácito do Itamaraty, articular diretamente a exploração a ser feita.
(c) Os comentários de João Bernardo sobre o “arcaísmo”, tal como os compreendi, vão neste sentido; de que as novas estruturas do poder colocam problemas novos para a militância, que precisam ser compreendidos de acordo com a experiência histórica — algo fundamental neste caso, em que a agricultura familiar já é praticada extensivamente há bastante tempo em outros lugares, sob outras condições históricas, econômicas e políticas que precisam ser levadas em conta. É o que diz também outro João, o Stedile, ao afirmar, apesar de todas as conquistas do movimento, que “aquela reforma agrária que o MST sonhou não existe mais”, ou que “o modelo atual aumenta a pobreza porque faveliza o campo”. Com esta crítica, ele indica uma mudança de postura do movimento quanto ao modelo de reforma agrária a ser reivindicado. Mas a pouca referência que você fez a uma estrutura de poder em seu artigo remete a um modelo já ultrapassado pelos fatos, como se não houvesse outros atores de peso no mesmo cenário, e como se o próprio movimento não refletisse esta mudança.
(3) Quanto à vinculação entre classe e raça na formação da consciência como resultado de um processo histórico de estruturação sócio-econômica, uma anedota simples pode ajudar a entender a questão que você coloca em seu comentário, a da Bahia como situação “exemplar”, que não encontra “paralelo em nenhum outro estado brasileiro”. Subindo e descendo os morros de um bairro popular de Salvador na companhia de uma amiga lá residente, passamos pela porta do barraco de sua tia-avó, a quem esta amiga, por distração, não cumprimentou. Resposta imediata da tia, em tom jocoso: “é, né? Depois que fica branca não fala mais com preto!” É uma versão daquela velha chacota: “depois que ficou rico não fala mais com os pobres!”, lançada contra quem “melhorou de vida” e “esqueceu as origens”. Achei curiosa, mas bastante pertinente, a associação: “ficar rico” na Bahia é igual a “ficar branco”, e os “pobres” são “pretos”. Como esta já ouvi outras: “roupa de branco” (como quem diz “roupa cara”), “carro de branco” (como quem diz “carro de luxo”) etc. É exatamente o reflexo, na percepção mais simples e cotidiana, da formação da estrutura de classes na Bahia. Não tão surpreendentemente assim, lembrei de já ter ouvido metonímias semelhantes quando estive no Rio de Janeiro e em São Luís (MA). Com isto, quero dizer que esta “consciência vinculada de classe e raça” anda mais espalhada do que os “casos exemplares” podem fazer supor, e que precisamos ter olhos e ouvidos mais abertos para o que rola por aí.
É a última vez que escrevo, prometo – pois o tema aqui não é esse. Mas, pelo jeito, meu apelo-crítica pegou o Manolo de raiva.
Manolo, meu caro. Não estou armado a nada. Li seus comentários e por eles não passei batido. Mas, estou apontado o foco de seu argumento (veja se não é):
– seu argumento se baseia no problema da localização dos autores dos artigos que você lê. ou seja, está receoso, pelo visto sempre, de que aquele que escreve é um “paulista”. por isso, as pegadinhas: a) eu, que estou “em dúvida”,não sou localizável; b) você recebe um drops de minha posição com “sou seu conterrâneo”, mas que, como você bem notou, não mora na Bahia. Então, não tente me localizar, Manolo. E esse é o problema. Em última instância, se você ficar muito agoniado, pergunte aos administradores do site meu e-mail. Ou, quem sabe, com o tempo, eu saia da dúvida.
Enfim: Será possível que um “paulista” tenha algo a dizer sobre o que você está observando na experiência baiana de luta? e o reverso? Penso que sim nos dois casos, desde que você se desapegue de ficar tentando localizar antes de tudo ao autor, para a partir daí dar-lhe um parecer (necessariamente depreciativo, no que diz respeito aos “paulistas”).
Para concluir minha sugestão: quando fui, por um período, morar no “outro país” (assim um amigo carioca de nascimento e baiano de adoção se refere a SP, quando ambos morávamos por lá, no interior), pude (re)conhecer o quanto essa picuinha de paulistocentrismo atrapalha os melhores argumentos críticos. No seu caso, pelo que entendo, você tem um bocado a apresentar sobre concepções amplas da luta pela terra – mas, precisa sempre colocá-las na conta da luta contra os “paulistas”. E o que seu argumento ganha com isso? Pelo visto, nada.
Acho, inclusive, que se você tem tanta consciência de que o assunto está em disputa no “MST paulista” e que a experiência que você vê aí na Bahia tem algo a ensinar aos “paulistas”, pairamos diante de duas questões políticas: a) o autor do artigo (que você continua presumindo – eis o problema: é uma presunção! – que sou eu e que ele é paulista) estaria contra ou a favor da experiências que você relata?; e b) a melhor solução para fazer mais fortes a apresentação de suas experiências é essa de depreciar (“contundência”…) o autor-debatedor?
A forma que o debate assumiu, para retomar uma referência de Eduardo, foi cordial – mas, Eduardo, numa leitura unilateral de Sérgio Buarque, confunde cordial com afável. Mas, bsta lembrar que Sérgio Buarque vê a cordialidade como o contrário de relações objetivias – ou seja, as coisas são pessoais, feitas com o coração, passionais. Logo, a franqueza, quando tem esse caráter depreciativo, de tom obviamente masculinizante, é ela tão cordial quanto uma afabilidade pautada pela redução do debatedor.O que eu sugeri foi franqueza também, mas com respeito. E o estilo adotado aqui não parece esse – mas, sim o do tipo “você não sabe do que fala”,”você mais parece um articulista da Veja”, “pedir que você leia algo é pedir demais” e assim vai. A troco de quê? Esse esforço de auto-afirmação sobre os outros, ele sim, é um mal da esquerda de luta – masculinizante, que não se vê entre pares em discussão, mas na necessidade de se dizer melhor. a não ser que vocês me prove que o argumento do autor do texto é uma violência contra outros quaisquer, só posso dizer que as primeiras respostas e o andamento do debate é sinal de nosso embrutecimento e nossa violência em hora e local desnecessário.
Bom, como quem está em dúvida insiste, tenho que fazer como quem explica as piadas, e me vejo forçado a dizer de novo o que já estava dito: eu não disse que você era paulista, sequer que isto seja demérito. Só disse que o artigo era uma disputa interna do MST paulista, e quem faz este tipo de disputa pode ser até inca venusiano, pois para os objetivos que pretende alcançar, quaisquer que sejam, sua origem pouco importa. Se a regional a que me referi foi esta, e se você teve ou tem lá suas questões depois da mudança para “outro país”, esta concidência pouco me importa, isto são coisas do acaso. E ser paulista não é vantagem ou demérito para ninguém. Não é este o foco de meus argumentos, nunca foi e nunca será. E que me aponte lá onde disse o contrário, para tirar qualquer dúvida.
Um breve esclarecimento: referi-me ao “homem cordial” do Sérgio B. de Holanda sem o unilateralismo que o comentarista “em dúvida” me imputa. Basta reler o comentário para se dar conta de que não faço menção à afabilidade, mas à necessidade do nosso homem cordial, quando se mete a debater, de mitigar críticas objetivas tecidas contra uma argumentação, como se elas fossem agressões pessoais.
Um bom texto e um bom debate! Vamos continuar!
Levantarei rapidamente alguns pontos de debate:
1) Sobre a importância da união entre a questão da terra e raça/racismo, além dos exemplo que o Manolo trouxe, parece-me que o exemplo da Bolívia é também muito sintomático, pois nos últimos anos a força do movimento dos povos autóctones veio justamente da junção entre a proteção/retomada de seu território e a afirmação de sua identidade/”raça” indígena.
2) Manolo comentou em algum momento que o PIB agropecuário gira em torno de 5% e, portanto, o poder do agronegócio seria “infinitamente menor que o poder econômico das classes que dominam os setores industrial e de serviços, em especial em relação ao setor industrial”. Manolo, vejamos a tabela no link abaixo:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/contasnacionais/2008/tabelas_pdf/tab10.pdf
Se analisarmos os dados agregados realmente nos parece que a Agropecuária é insignificante em relação à indústria e serviços. Porém, se analisarmos de maneira desagregada veremos que em 2008, por exemplo, a agricultura só perdeu para a construção civil e algumas atividades de serviços. Ou seja, a agricultura é muito forte e influente em nosso país. Levando em conta a área ocupada pela agricultura e a contribuição dela para o PIB, pode-se dizer que ela é improdutiva e socialmente injusta, mas não que seja fraca.
Por outro lado, vemos na próxima tabela que a agricultura é a segunda maior fonte de emprego neste país (2008).
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/contasnacionais/2008/tabelas_pdf/tab14.pdf
3) João Bernardo, para mim a defesa da agricultura familiar era até então uma unanimidade (assim como o MST! Não prestava atenção na importância da luta quilombola e indígena, como mostrou o Manolo). Todavia, você apresentou críticas fortes e, sem dúvida, o arcaísmo como projeto, vem sendo uma falha romântica da esquerda.
Então, primeiro, uma pergunta ingênua: não devemos mais apoiar a agricultura familiar? Parece-me que faltou um pouco de conceituação desta prática ou, pelo menos, da distinção entre possíveis “agriculturas familiares” (nazistas) e outras “agriculturas familiares”.
Segundo, um exemplo simples e que talvez seja uma mera exceção: pensemos num caso de um grupo de bóias-frias que antes vivia em condições sub-humanas de trabalho e depois recebem um pedaço de terra onde podem plantar e constituir uma pequena vila de agricultores que produzem seu sustento e, com sorte, comercializam seu excedente, gerando uma qualidade de vida melhor do que a anterior. Mesmo que não signifique a libertação/emancipação do ser e que seja um passo pequeno, como não apoiar essa experiência?
Seguimos…
Gustavo.
Em resposta ao comentário de Gustavo Pinto de Araújo, na minha opinião é devido às suas formas de luta, à sua organização interna, que o MST se encontra na linha mais avançada da luta anticapitalista no Brasil. Escrevi num comentário de 4 de Março que «o aspecto positivo do MST consiste na forma de luta colectiva que emprega, na nova sociabilização criada nas ocupações e nos assentamentos e na rotatividade dos cargos que muitas vezes ocorre nos escalões inferiores — embora, infelizmente, não ocorra nos escalões superiores. É nestes aspectos positivos, enquanto forma de luta, que o MST constitui uma das mais importantes antecipações actuais do que poderá ser uma sociedade socialista».
Por outro lado, porém, a agricultura familiar, em vez de ser uma simples solução ou um modelo incontroverso, é, como afirmei noutro comentário, «um nó de problemas». Gustavo Pinto de Araújo evocou um caso, decerto não imaginário, de um grupo de bóias-frias e eu estou de acordo com a conclusão a que ele chegou. Vejamos outro exemplo, não imaginário. Escrevi num comentário de 8 de Março que o facto de a agricultura familiar ocupar uma elevada percentagem da força de trabalho relativamente à área onde está estabelecida corresponde a afirmar que ela é pouco produtiva. Todavia, em circunstâncias de acentuado desemprego geral ou sectorial ou regional, e sendo dado o carácter insatisfatório da assistência aos desempregados, uma agricultura familiar representando aquilo que em termos económicos se denomina desemprego oculto pode ser preferível a um desemprego explícito. E, tal como estes dois casos, vários outros se podem citar. Isto mostra, em meu entender, que a questão da agricultura familiar é muito complexa, servindo interesses antagónicos. A agricultura familiar deve ser avaliada em cada contexto e em cada época, sem que de modo algum deva ser apresentada como um modelo de aplicação geral e muito menos como uma panacéia.
Mais funesta ainda é a confusão que foi estabelecida na esquerda e na extrema-esquerda entre agricultura familiar e agroecologia. Ora, em princípio nada vincula a agricultura familiar à agroecologia, e em diversos países a agricultura familiar adoptou técnicas que estão nos antípodas dos pressupostos ecológicos, atingindo assim elevadas taxas de produtividade.
Gustavo, se economicamente é possível desagregar a produção industrial em setores — não fosse assim, teríamos regredido a algum momento anterior à divisão social do trabalho — em termos políticos é preciso relacioná-la aos industriais em bloco, como base de seu poder. Como segmento de classe capitalista, os industriais dificilmente fazem pressão sobre governos fragmentadamente. Basta ver: quando o COPOM mexe na taxa de juros, por exemplo, não é a ANFAVEA ou a ABRINQ quem a imprensa procura para comentar o assunto, mas a FIESP, a FIRJAN, a FIESC, a FIEB etc. A fragmentação os industriais — e as classes capitalistas em geral — deixam que se abata sobre os trabalhadores, com o que colaboram o mais ativamente possível.
Quanto ao fato de a agricultura ser a segunda maior fonte de emprego, comparados dois processos de trabalhos que resultem na produção de bens semelhantes, aquele a envolver maior número de pessoas e menor complexidade técnica produz menos e leva mais tempo na produção, resultando quase invariavelmente na produção de menos bens, de preço mais alto. O maior número de pessoas empregadas na agricultura, sobre o qual a agricultura familiar exerce grande influência devido a seu baixo grau de apropriação de técnicas produtivas mais complexas (por várias causas: falta de recursos, falta de assessoria técnica etc.), não expressa outra coisa além de sua baixa produtividade, em especial da agricultura familiar — que estaria seriamente arriscada à extinção se nalgum dia de sol certos agroindustriais (não é necessário que sejam todos) resolvessem investir pesadamente nos mesmos setores atualmente hegemonizados por ela.
Interessante o papo entre os ´homens´. Sobre o texto do Rafael Litvin Villas Bôas, interessante a análise. Muito valiosa esta tentativa de articulacao política, é necessária e urgente. Fiquei pensando que essa análise do movimento negro nao está sendo observada somente pelas lutas ´institucionalizadas´. E pensar nisso leva a pensar na grande separacao entre a instituicao ´universidade´ e os movimentos sociais. Pra quem vc escreve o texto? Fiquei pensando que é um diálogo entre um intelectual comprometido e a academia ou nos melhores dos casos uma intelectualidade militante. Enfim, esse abismo é irreconciliável e aí eu com humildade apontaria um problema de ´forma´. Agora, parabéns pelo esforco de pensar a ´totalidade´. Mas pensá-la com ferramentas teóricas de classe/raca (bom, faltou o genero e as feministas bombardearian esse texto) é pensar o problema com as ferramentas teóricas dos estudos culturais e ao mesmo tempo estar apegado a um linha marxista. Nao acredito em dogmas, mas isso é meio esquizofrenico, nao? Talvez o grande debate que tenha gerado foi essa mistura que pode ser um exercicio bem produtivo de recolher o que cada teoria nos pode aportar e seus limites para lermos a realidade. Por último, o MST é um movimento incrível, mas nao mencionar a institucionalizacao e a grande cooptacao feita pelo governo desse movimento é tampar o sol com peneira. Pena que os debates sobre ´autonomia´ nao sao levados a serio na maioria dos movimentos sociais aqui no Brasil, como vejo que acontece na Argentina e no México. Acho que qualquer crítica anticapitalista atual que nao questione o Estado e nao o ve como um ´problema´ pode correr o risco de ser ´reformista´, coisa que o companheiro Rafael está longe de querer ser… Um abraco em luta