Por Sokari Ekine
Líbia
Aquilo que na Líbia começou como um levantamento popular vem-se tornando uma guerra civil, com soldados do exército líbio a passar para o lado dos revoltosos e alguns destes a pegarem em armas contra as forças do coronel Khadafi, como se pode ver neste vídeo algo chocante, amplamente difundido na net, com efectivos do exército líbio a protegerem os manifestantes contra as forças pró-Khadafi. O @EnoughGaddafi diz no Twitter: “Foram feitas detenções em massa em Tripoli, uma testemunha presencial da prisão de Jdeida diz que ali se encontra grande quantidade de activistas e de feridos”. Uma mensagem tweeter lembra-nos o caos e o perigo para as vidas humanas que pode resultar das reportagens da mídia internacional:
“@bintlibya: @AlJazeera p.f. pára de transmitir chamadas de pessoas que dão localizações e pormenores de coisas que estão para acontecer, [com isso] vocês estão provocando mais prejuízo do que ajuda #Líbia”
Dezenas de milhares de pessoas, sobretudo estrangeiros residentes na Líbia, estão a fugir do país e já há uma crise humanitária na fronteira com a Tunísia. As mensagens do UNHCR (Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados) sublinham o pânico que se está gerando:
“@refugees: #UNHCR & #IOM pedem aos governos que disponibilizem massivos recursos financeiros e logísticos, incluindo aviões + barcos: cresce a cada hora a multidão que aflui à fronteira entre a Líbia e a Tunísia”
“@refugees: Tendas! tendas! tendas! Dezenas de milhares [de refugiados] na fronteira com a Tunísia, sendo que a Tunísia franqueou as fronteiras a todos eles. #Líbia”
Enquanto Khadafi busca novas maneiras de atacar os líbios, estes descarregam a sua cólera contra os mercenários da África ocidental e oriental que ele pôs em acção pelo país, e os trabalhadores migrantes do sul do Saara são cada vez mais atacados e impedidos de sair do país. Com o racismo que há na Líbia e o baixo estatuto social dos trabalhadores negros estrangeiros, não tardou muito que começasse a haver ataques contra inocentes.
@melissafleming repercute um email que recebeu: “email de um refugiado somali em Tripoli: estamos a ser atacados por gente daqui… a nossa casa foi incendiada, 7 somalis mortos…”
A Afrol News informa:
“Em Al-Bayda, prosseguem a caça e as prisões arbitrárias contra africanos subsaarianos. A Sra. Wold também falou com um grupo de jovens líbios, que patrulha as ruas de acordo com as autoridades provisórias da cidade, composto por civis e oficiais do exército revoltosos. Esses jovens disseram-lhe abertamente que estavam nas ruas “para tentar apanhar mercenários e entregá-los às autoridades”.
“As notícias vindas de outras cidades líbias ‘libertadas’ são semelhantes. Em Benghazi, na semana passada, civis atacaram e destruíram um edifício onde moravam 36 cidadãos do Chade, do Niger e do Sudão. Os africanos eram acusados de serem ‘mercenários’ e depois foram presos – disseram habitantes locais aos jornalistas ocidentais.”
@elicopter_mid: “um número massivo de trabalhadores africanos acumula-se nas zonas costeiras da Líbia. Talvez erradamente alvejados, acusados de ajudar o Khadafi. Ameaçador…”
@northafrica: “diz-se que tropas tuaregues do Mali, do Niger e de outros países do Sahel [sub-Saara] estão a ajudar Khadafi a troco de apoio financeiro que ele…”
@shababLibya: “Última hora: parece que 70 carros chegaram perto da cidade de Ras Lanuf para dar apoio a um batalhão no ataque para retomar a cidade de Brega e o seu aeroporto… Diz-se que os carros estão cheios de mercenários que pretendem juntar-se a um batalhão nas imediações de Ras Lanuf para se dirigirem para Brega para recuperar a Líbia”
O blogue Bikyamasr noticia que milhares de trabalhadores africanos negros (que continuam a ser chamados ‘africanos’ por não acharem que os líbios são africanos) tentam fugir da Líbia sendo-lhes recusada a entrada em navios de evacuação no porto de Benghazi. O que é confirmado por @refugees:
Preocupados com o grande número de subsaarianos a quem é recusada a entrada na Tunísia a partir da Líbia. O UNHCR em conversações com os voluntários auto-organizados que guardam a fronteira.
A linguagem e o subtexto usados em algumas notícias são preocupantes. Num vídeo da Al-Jazira, “Trabalhadores imigrantes sob suspeita”, o grupo Frontlines of Revolution com base nos EUA usa o título “Supremacia árabe branca: revolução ou opressão dos negros pelos mouros?” Não há dúvida de que existe muito racismo na Líbia e de que os trabalhadores negros estão a ser alvo de ataques, mas este tipo de linguagem e a falta de enquadramento histórico e político só serve para acirrar o problema. O blogue Jadaliyya faculta uma análise mais razoável do que o professor Mahmud Mamdani designa como “a dicotomia constatada entre africanos árabes e negros” que é “falsa e assenta nos tropos da era colonial de colonos e nativos”, e pede que “se considerem os riscos dessa conceptualização baseada num antagonismo árabe-africano ou árabe-negro, conceptualização essa que não só os formula como categorias mutuamente excludentes mas também as situa no terreno uma contra a outra no contexto da revolução líbia”.
Apesar de tudo, os ataques contra africanos negros são perturbantes, quanto mais não seja porque as sublevações foram enquadradas num contexto arabo-médio-oriental, não apenas pela mídia ocidental mas mais ainda pela Al-Jazira, que se tornou, ela própria, parte da história revolucionária. Isto torna ainda mais antagónicas as tensões árabe-africano/árabe-negro e levanta também a enorme questão de saber o que é, ou não é, africano e o que é para nós a África. O editor da Pambazuka News Firoze Manji refere-se a isto em recente entrevista à Al-Jazira – poderia estar aqui uma resposta às crescentes críticas que lhes fazem por enquadrarem as sublevações do norte de África num contexto unicamente árabe?
“O Egipto é África. Não nos podemos deixar enganar pelas tentativas do Norte para segregar os países do norte de África do resto do continente… As suas histórias estão entrelaçadas há milénios. Alguns egípcios podem não se sentir africanos, mas isso não quer dizer nada. Eles fazem parte do património do continente.”
Relacionadas com isto, há questões levantadas na mídia dominante, nos blogues e no tweeter sobre se outras regiões do continente – o termo usado é “África subsaariana” que, em si mesmo, é uma designação carregada de sentidos – se irão erguer contra os regimes opressores. Países como o Gabão, os Camarões e o Zimbabué foram mencionados nesse contexto.
Costa do Marfim
Outra questão é verificar quais os conflitos, revoluções e sublevações que têm sido noticiados e como são apresentados. Na semana passado, a bloguista queniana Ory Okolloh começou uma campanha com o seu tweet “Sobre a mídia global e as manifestações em África, ‘Porque é que Anderson Cooper e Nick Kristoff não estão na Costa do Marfim?’” Outros repercutiram o apelo e começaram a enviar mensagens pedindo cobertura noticiosa fora do norte de África.
A Costa do Marfim continua a ser uma dos casos africanos de que quase ninguém fala, a começar pelo Anderson Cooper que declarou que iria reagir em 28 de Fevereiro:
@andersoncooper: “Tenho seguido de perto a Costa do Marfim e merece muito mais cobertura noticiosa. Segunda-feira tentarei fazer algo.”
No entanto, uma semana depois do apelo do kenyanpundit [Ory Okolloh], a Costa do Marfim continua a ser “a história de que ninguém fala”, como diz @philinthe em mensagem enviada a @cnn, @andersoncooper, @nickkristof, @nbcnightlynews e @ariannahuff.
Mais uma vez, a African Newsbot lembra-nos a “outra” crise africana:
@africanNewsBot: “Não esqueçam a outra crise africana de populações deslocadas, diz a IOM aqui.”
As informações disponíveis calculam que há cerca de 70.000 marfinenses em fuga para a vizinha Libéria. @scarlettlion, baseado em Monróvia [capital da Libéria], publicou fotografias de refugiados chegando ao país [o UNHCR protege as suas fotos, tanto melhor para os “creative commons”].
@connectionivoir informa que há combates e explosões na capital entre forças de segurança e apoiantes de Alassane Ouattara e do presidente Laurent Gbagbo. No norte do país há milhões de pessoas sem água nem electricidade. Apontam semelhanças entre Khadafi e Gbagbo. Ambos se vêem como líderes panafricanistas socialistas, mas ao mesmo tempo defendem o capitalismo e o investimento das transnacionais ocidentais, roubando enormes quantidades de dólares ao seu povo.
Camarões
Na passada semana, os camaroneses trouxeram para as ruas o que, até aí, fora uma pequena manifestação imediatamente abafada pelas forças armadas do presidente Paul Biya. Kah Walla, fundadora do Cameroun O’Bosso [Vamos, Camarões], encontrava-se entre os 300 manifestantes da semana passada, muitos dos quais foram espancados, como se pode ver neste vídeo do YouTube. Ela escreveu sobre a sua experiência aqui no Pambazuka News. O seu diário dos acontecimentos é importante porque mostra a coragem e a determinação de um pequeno grupo de pessoas, tudo o que é preciso para dar início a uma revolução. Escreve:
“Eles queriam parar os nossos protestos, e nós protestámos. Temos uma filosofia não-violenta, que mantivemos mesmo frente a uma extrema violência. Uma força incrível de jovens camaroneses. Quando começámos éramos quase 300 e no fim menos de 50, mas essa pepita de ouro venceu o medo, o nosso e o de muitos outros camaroneses. Nenhuma multidão se juntou a nós, mas nem uma pessoa protestou por estarmos a bloquear a rua. Se alguma dúvida houvesse, temos agora a certeza de que precisamos absolutamente de uma mudança e precisamos absolutamente da determinação inabalável de a fazer no nosso país. Seis membros do Cameroun O’Bosso foram detidos, e continuam presos.
Gabão
Em 29 de Janeiro, milhares de pessoas começaram protestos contra a liderança do presidente Ali Bongo Ondimba, filho do antigo presidente Omar Bongo. Apesar de terem deparado com as forças brutais do regime, os protestos espalharam-se por todo o Gabão. Também desta vez, os protestos gaboneses ficaram fora do radar, como atestam os seguintes tweets:
@cletusrayray: “Alguém está a ouvir? Pambazuka: Gabão: ‘Os protestos esquecidos, a mídia tacanha’”
@eDipAtState dá uma possível razão para isso: “A mídia não irá falar muito dos Camarões e do Gabão. Os manifestantes terão de usar o Twitter e o Facebook, e mandar relatos para a AJE.”
Tenho a certeza de que a mídia dominante tem informações do que está a acontecer e é claro que são feitas escolhas sobre quais os conflitos e as revoluções a noticiar. Essas escolhas têm de ser contrariadas da mesma forma que outros silêncios, como as vozes das mulheres, das minorias sexuais, dos refugiados, dos sem-terra e dos migrantes por todo o continente. Ethan Zuckerman aponta, no Pambazuka News, o perigo dos noticiários selectivos:
“O perigo de ignorar a revolução do Gabão não é apenas o de as forças da oposição serem presas, ou pior. É o de nós não conseguirmos compreender as mudanças profundas que estão em curso em todo o mundo e mudam a natureza das revoluções populares. A onda de protestos que abalou a Tunísia pode ter-se repercutido bem para além do mundo árabe numa extensão bem maior do planeta… E com os telespectadores de todo o mundo a verem maravilhados como manifestantes cristãos e muçulmanos rezam juntos na Praça Tahrir, eles irão perguntar-se porque é que as lutas no Gabão não podem merecer pelo menos uma parte dessa atenção.”
Zimbabué
Em 23 de Fevereiro, 45 activistas pela justiça social foram presos e acusados de traição no Zimbabué. Os 45, incluindo o coordenador da Organização Internacional Socialista Munyaradzi Gwisai, foram acusados de assistir e conversar sobre reportagens vídeo dos protestos tunisinos e egípcios. Alguns deles foram “brutalizados e torturados” na prisão. Em 27 de Fevereiro foram também presos 7 membros do WOZA (Women of Zimbabwe Arise) e do MOZA (Men of Zimbabwe Arise).
Referi acima que há quem se pergunte se as sublevações acontecidas no norte de África irão espalhar-se para as regiões do sul do continente. No caso do Gabão, não há indícios de que os protestos tenham sido influenciados pelos da Tunísia ou do Egipto. E, mesmo que os 45 activistas estivessem reunidos a falar sobre esses acontecimentos, os zimbabueanos têm andado em revoltas contra o regime de Mugabe desde antes das eleições de 2008 – ver “Mapping Terror” no blogue Sokwanele. As integrantes do WOZA têm vindo a manifestar-se inúmeras vezes; têm sido espancadas, presas, e torturadas e, mesmo assim, continuam a ir para as ruas. Em 2010, 83 das suas activistas foram presas por festejarem o Dia Internacional da Paz.
O erro da mídia e dos activistas do Ocidente é julgarem que a voz da revolução tem de soar muito forte e tornar-se visível no seu mundo. Pelo contrário, há milhares de activistas e de movimentos pela justiça social por toda a África, e na sua diáspora, que estão totalmente empenhados em conseguir uma mudança política e social nos seus respectivos países. Não é preciso assim tanto esforço ou tempo para saber o que está a acontecer.
As revoluções são processos complexos de interesses rivais e de múltiplas tensões. O período que se segue às expulsões de Ben Ali e de Mubarak mostra-o bem. Os protestos de rua e as expulsões não foram o começo. Os activistas dos dois países andaram muito tempo a trabalhar para se chegar a este momento. O processo revolucionário irá continuar e poderá muito bem seguir caminhos contraditórios. A informação mediática sobre as revoluções – que decide quais as que merecem mais atenção e como devem ser noticiadas – aumenta ainda a complexidade. O que eu tentei com este artigo foi dar uma outra perspectiva das forças revolucionárias em África. Para sermos cidadãos informados, e se nos consideramos parte de um processo revolucionário, então precisamos de tentar compreender os diferentes níveis da narrativa e das acções que estão a acontecer, não só em África mas por toda a parte.
Sokari Ekine é uma escritora e activista de origem nigeriana que, além de colaborar com o Pambazuka News, fundou e escreve regularmente no blogue Black Looks.
Artigo original (em inglês) no Pambazuka News. Tradução Passa Palavra.
Charge do Latuff
http://twitpic.com/45d2b1
diante do tradicional boicote da mídia e da ignorância generalizada sobre o acontece nos países da áfrica sub-saariana, o passapalavra cumpre aqui um importante papel, divulgando e noticiando o (pouco) que sabemos sobre o que acontece ali.
todo apoio aos levantes populares na áfrica!
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