Por Emílio Gennari

 

Já é parte do senso comum a idéia de que o perfil dos trabalhadores tem mudado fortemente em relação ao de duas décadas atrás. A solidariedade, a indignação e o sentimento de coletividade andam em baixa e a atuação dos dirigentes sindicais tem se tornado cada vez mais difícil.

No texto que segue, apresentamos fragmentos de uma reflexão a ser aprimorada e aprofundada. Nele, reunimos alguns elementos que permitem avançar em relação às conclusões a que chegamos na segunda edição do estudo “Da alienação à depressão – caminhos capitalistas da exploração do sofrimento”, mas que ainda demandam uma análise cuidadosa. Apesar disso, submetemos este rascunho à sua apreciação para que possa ajudar a entender melhor o momento de dificuldade vivido pelos sindicatos e demais movimentos. Boa leitura!

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Nos últimos 20 anos, as emoções ganham um lugar de destaque nas preocupações das forças que buscam moldar um consenso social capaz de levar as pessoas a melhor se adaptar às novas exigências da exploração. Para percebermos esta realidade, basta abrir as centenas de anexos que acompanham os e-mails que recebemos ou ler algum livro de auto-ajuda. Via de regra, seu conteúdo revela que a análise racional da realidade cede o lugar a impressões e idéias que dialogam com a sensibilidade das pessoas e oferecem um enfoque sentimental a aspectos do cotidiano que eram vistos como um obstáculo para a felicidade do indivíduo. Além da ausência de uma comprovação empírica consistente, chama atenção o convite a aceitar a realidade como algo natural e não como fruto de uma construção histórica que se dá a partir de determinados interesses de classe. A ordem social que serve de pano de fundo parece algo tão cotidiano, neutro, imparcial e inevitável quanto a lei da gravidade. Lutar contra ela, passa a ser visto como ilógico e sem sentido, ao passo que conviver com a ordem para aproveitar o que esta pode oferecer é apontado como um passo necessário para construir metas individuais que abram os caminhos da afirmação pessoal e da felicidade possível. O “EU” que se constrói numa mistura de aceitação do sofrimento e de esforço para superar os próprios limites sabe que tem que “ralar para subir na vida”, mas, ao mesmo tempo, começa a ler os entraves com os quais se depara como ameaça ao seu bem-estar emotivo e à auto-estima. Trata-se, portanto, de algo que passa a ser vivido cada vez mais na intimidade de um sujeito cujos critérios de análise o dobram sobre si mesmo na exata medida em que o colocam como início, meio e fim de qualquer ação a ser empreendida e o tornam incapaz de uma leitura da realidade na qual o “OUTRO” não seja somente mais um concorrente a derrotar.

A sustentar a percepção de que tudo depende da capacidade de o indivíduo buscar sua realização e acreditar em suas capacidades, a baixa auto-estima começa a ser sistematicamente apontada como a origem dos problemas sociais que antes eram atribuídos a uma situação de injustiça que a sociedade reproduz pelas relações nela estabelecidas. Desta forma, não são mais os mecanismos econômicos, políticos, sociais e culturais a gerarem e alimentarem uma realidade de pobreza, marginalização, discriminação, violência etc, mas sim a ausência no sujeito de uma atitude imprescindível ao seu desenvolvimento e à sua afirmação social: a auto-estima. Se, de um lado, a gente não escolhe o berço onde nasce, de outro, para a intelectualidade a serviço da elite, o que explica a pobreza em que você se encontra é a ausência de atitudes positivas em relação ao presente e ao futuro. Se você não acredita em você mesmo, não valoriza o seu potencial, não se dá ao trabalho de descobrir e pôr pra funcionar os talentos de que dispõe, então, não há como deixar esse berço incômodo em que o acaso o fez nascer. Trocado em miúdos, ninguém tem culpa de você ter nascido pobre, portanto, pare de se queixar, pense positivo, levante a cabeça, tente novas possibilidades, invista em você mesmo, assuma desafios, olhe para o novo, pois a responsabilidade por você continuar na condição social em que se encontra é somente sua!

A dinâmica que fortalece no sujeito esta percepção tem como base o fato inegável e natural de que qualquer situação é vivenciada de forma diferente por cada membro de um determinado grupo social. O foco, portanto, não é o grupo, e menos ainda as relações sociais a que está submetido, mas sempre e somente o indivíduo que vive de forma particular a realidade na qual está inserido. No caso da exclusão, por exemplo, vários autores colocam suas origens numa experiência de alienação, na baixa auto-estima, na passividade, na dependência, na desorientação, no medo, na raiva, na apatia, na ausência de aspirações, na falta de perspectivas ou atitudes do sujeito e na incapacidade deste se adaptar às demandas da realidade. Desta forma, a exclusão não nasceria de precisos mecanismos de exploração/acumulação no campo da economia e das relações de propriedade, mas sim nos núcleos da esfera privada que estão na base da formação de cada um de nós, entre os quais a família ganha, evidentemente, um papel de destaque. Na medida em que esta célula da vida em sociedade reproduz em cada membro uma devastação interior dos sentimentos e das emoções que torna os indivíduos incapazes de se afastarem de um comportamento anti-social, ela passa a ser responsabilizada pela incapacidade de o sujeito dar a volta por cima. A família ser pobre, portanto, não é problema nem empecilho para o desenvolvimento de atitudes positivas na vida dos seus membros desde que, como peça-chave da vida em sociedade, ela se torne capaz de levá-los a acreditar em si mesmos, no seu potencial e a lutar para vencer na vida nos moldes narrados, por exemplo, no filme “Os filhos de Francisco”. Num passe de mágica, os mecanismos da injustiça social desaparecem deixando aberto o caminho à supervalorização das atitudes individuais.

Para o desemprego, a explicação não se distancia da que acabamos de apresentar. Ninguém duvida que esta praga dos tempos atuais provoca efeitos psicológicos devastadores a ponto de levar o sujeito a um estado depressivo ou até mesmo a tirar a própria vida. Mas o problema está justamente no movimento que isola as emoções da realidade do mercado, da exploração, das pressões sociais e leva a ver os distúrbios psíquicos como resultado de emoções não trabalhadas que, por atingirem grupos sociais significativos, justificariam o fato de colocá-las na origem dos fenômenos antes desconhecidos. Na medida em que o indivíduo não sabe lidar com os sentimentos negativos que experimenta diante do desligamento da empresa, a demissão gera, involuntariamente, uma personalidade potencialmente destrutiva, responsável, em última análise, pelo mal-estar individual e social num processo que se alimentaria, portanto, não a partir de condições materiais, objetivas, do mercado e das necessidades da exploração, mas de atitudes individuais, oriundas de pessoas descontroladas e despreparadas que deixaram de acreditar em si mesmas e em seu potencial para poder recomeçar.

A passagem das motivações sociais e econômicas para os problemas da personalidade, como explicação que tende a se generalizar, tranquiliza a elite, permite-lhe continuar sua obra de embrutecimento das maiorias em função das metas que se propõe e lhe possibilita matar dois coelhos com um único golpe: de um lado, o substrato econômico, político, social e cultural acaba escondido pelo biombo de uma vontade do sujeito que tudo explica, tudo pode, tudo tem condições de realizar; de outro, a luta política, que apontava para a necessidade de superar a desigualdade econômica, a discriminação, a marginalização através de uma nova ordem social, é substituída pela decisão do indivíduo de dar a volta por cima. Vítima de uma situação pela qual se supõe que ninguém pode ser culpado (pois, como se diz, “as coisas são assim mesmo”, “é o mercado”, etc.), o “EU” só não conseguiria se reerguer e optaria por comportamentos/atitudes aberrantes apenas por um desvio de conduta alicerçado na incapacidade de administrar as emoções negativas oriundas da situação em que se encontra. Graças à mágica da presença/ausência de auto-estima, a elite, que fez, e continua produzindo, os estragos com sua exploração da classe trabalhadora, deixa o banco dos réus para assumir o papel de bem-feitora daqueles que, através de suas ações de “responsabilidade social” buscam um lugar onde se refugiar, ao passo que a vítima é relegada ao banco dos réus, pois, nesta lógica perversa, a ordem social não pode ser condenada por ser “natural” e comum a todos ao passo que só não sai do buraco quem não quer.

Para o novo conformismo, querer não é apenas poder, mas sim a atitude imprescindível para levantar, recomeçar, acreditar no sucesso, se afirmar e subir novos degraus da pirâmide social. Quando isso não ocorre, então, é porque o núcleo de onde o sujeito saiu está doente, desenvolve atitudes, relações, idéias, valores e formas de comportamento consideradas “tóxicas” para o futuro e o bem-estar individual e coletivo. Por outro lado, esta percepção da realidade faz com que o indivíduo alheio a este núcleo não se sinta responsável pelo que ocorre na sociedade. De fato, eu, que nasci numa “boa” família, como posso ter algo a ver com a família da favela da qual saiu “esse fulaninho aí”? Enquanto sujeito, o que posso fazer é agir para me resguardar de uma eventual ameaça, buscar me proteger e, obviamente, pedir que alguém faça valer meus direitos caso venha a ser atingido por uma situação desagradável. Se, como indivíduo, não tenho a menor responsabilidade na produção/reprodução das relações sociais do ambiente em que vivo, então o meu papel deve se limitar à cobrança dos meus direitos, de preferência através de um profissional competente, capaz ao menos de obter monetariamente a compensação pelos estragos produzidos na minha auto-estima e no estado de espírito forçado a passar por certo período de sofrimento.

Analisando agora o âmbito das relações de trabalho à luz desta perspectiva, é curioso perceber que as vítimas de assédio moral, por exemplo, não percebem que o próprio assédio só é possível na exata medida de sua submissão. Ou seja, além do inegável papel do assediador, encontramos a ausência de ação de um indivíduo ou grupo que deixou de ser AUTOR, de escrever seu roteiro de relações e de batalhar por ele e que, diante do aparecimento de distúrbios psíquicos, limita-se, no máximo, a cobrar na justiça a reparação dos danos morais sofridos. Longe de perceber que sua omissão é um dos elementos fundamentais para o assédio ganhar asas, sua postura continua se recusando a agir diretamente no âmbito do trabalho. O mais comum é que culpe o chefe/supervisor mau caráter e transfira para o advogado a cobrança de uma compensação monetária. Esta opção não só confirma aos patrões que o crime compensa (na medida em que, no Brasil, não mais de 10% dos injustiçados buscam recuperar seus direitos na justiça, sendo que 6% deles farão acordo antes do encerramento do processo), mas, sobretudo reafirma na prática que a realidade da qual é vítima é o resultado de forças externas poderosas e incontroláveis, nunca de sua omissão.

Neste processo, o fato de as desgraças poderem ser sempre atribuídas aos OUTROS, e nunca à falta de ação pessoal, permite aos patrões encolher cada vez mais o campo de autonomia do sujeito e dificultar sobremaneira a preparação de uma resposta coletiva na medida em que nem o indivíduo nem o grupo percebem que as coisas só estão assim porque eles deixam de agir ou atuam somente numa determinada direção. Como funcionário, preciso sempre de alguém para atribuir a culpa da minha condição, pois encontrar um culpado me exime de assumir as responsabilidades que tenho nos acontecimentos e permite atribuir os meus problemas a uma causa externa, sobre a qual, aparentemente, não há o que possa fazer. O que, por sua vez, só reafirma que posso apenas cuidar de mim e nada mais.

Vale ressaltar que as queixas e a busca de um culpado não são criticáveis enquanto tais. Na nossa sociedade são muitíssimos os problemas dos quais se queixar e maior ainda é o número de entidades/pessoas contras as quais apontar o dedo ao formular acusações. A busca de um culpado, porém, torna-se um problema quando o indivíduo se livra de todo senso de responsabilidade pela própria condição e pela degradação das relações sociais ao seu redor. Todos vivemos em circunstâncias sobre as quais temos pouco controle, mas se renunciamos à possibilidade de exercer este mínimo de influência sobre a orientação da vida coletiva corremos o risco de depreciar o sentido da nossa humanidade e tornarmo-nos cada vez mais vítimas de nossa própria omissão.

Isso explica porque, como indivíduo, detesto um sindicato que aponte minhas responsabilidades e aumente minha insegurança ao me colocar frente a frente com a realidade dos fatos. Tudo o que preciso é que forneça um bom advogado, lute por uma justiça ágil, coloque processos de cobrança alheios a qualquer risco para que, reparado o dano sofrido, “EU” possa recuperar minha auto-estima, ser reconhecido e retomar o meu caminho. Como qualquer ser humano, eu, trabalhador da categoria, gosto de acreditar em algo ou alguém porque isso me faz sentir confortável e amparado, e não de me ver como soldado na linha de frente, diante de um inimigo poderoso e com a estranha sensação de virar alvo ao menor deslize que venha cometer. O que quero mesmo é que seja possível ter tudo, ao mesmo tempo, agora e, obviamente, sem riscos! É como se, ao desejar um filho, a condição para iniciar a gravidez fosse a de não lidar com enjôos, não ficar com dores nas costas, não ganhar peso, nem ter aqueles efeitos desagradáveis que costumam aparecer neste período e, obviamente, dar a luz a uma criança saudável que não dê trabalho e nem faça perder uma única noite de sono. A esta altura, o bom senso aconselharia comprar um boneco, mas, para não desagradar, não são poucas as vezes em que se opta por passar a mão na cabeça, por entender e por deixar de colocar as pessoas frente a frente com suas responsabilidades históricas.

Para agradar, para ser vistas como representativas e combativas ou simplesmente para não correr riscos de perder associados, as direções sindicais deixam frequentemente de tratar os trabalhadores como adultos e enveredam por formas de paternalismo tão nefastas quanto às que eram marcada pelo assistencialismo dos velhos pelegos. Por isso, até que ponto a ação sindical consegue construir a dúvida na cabeça de seus representados ao explorar a via do sentimento para recolocar a razão diante da realidade das relações sociais que escapa da percepção do senso comum? Afinal, sabemos “incomodar” o trabalhador ao colocá-lo diante de suas responsabilidades históricas para consigo mesmo e os demais ou a postura do sindicato acaba favorecendo o processo que descrevemos com atitudes e serviços que compensam parcialmente a falta de atuação coletiva, reafirmando as justificativas individuais para a omissão e ocultando o desenvolvimento dos mecanismos de exploração? E, neste processo, estamos conseguindo nos fazer entender ou nossos interlocutores apenas balançam a cabeça à espera de que, terminado nosso discurso, possam voltar a seus afazeres com a sensação de ter perdido o próprio tempo?

(Continua aqui.)

Ilustrações de Eeva-Liisa Isomaa

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns ao autor pelo ótimo texto.
    Essa reflexão sobre o conformismo do “novo” trabalhador remete diretamente à prática nos movimentos sociais. Vivemos um momento de total apatia e desmobilização da base dos movimentos e, inclusive, a falta de um objetivo comum que una e dê identidade ao trabalhador organizado.
    A “individualização” é um grande mal de nossa época e deve ser enfrentada por aqueles que pretendam contribuir para a transformação dessa sociedade.
    Entretanto, até que ponto esse debate é uma nova questão e não uma releitura das condições encontradas pelos trabalhadores desde o início dos movimentos operários? Me refiro a burocratização dos movimentos sociais que, deliberadamente, quebraram as estreitas relações entre a base e os “dirigentes sindicais” que passaram a ter objetivos muitas vezes divergentes e que contribuiram para a perca da identidade do trabalhador.
    Historicamente viemos combatendo as relações de exploração através da organização dos explorados em busca de um objetivo comum que seria a sociedade socialista, porém, o desmantelamento do tecido social fruto, em parte, da burocratização dos movimentos fez com que o indivíduo perdesse seu senso de coletividade, de fazer parte de algo maior do que si mesmo. Os exemplos passados nos empurraram para um afastamento das ações coletivas e jogam os trabalhadores a um isolamento, através de uma relação clientelista com o movimento e com toda a sociedade.
    Esses são elementos que trago para a reflexão desse novo movimento de “conformismo”. Acredito que mudar as práticas no que ainda existe de mobilização dos movimentos ajudará a retomada do senso comum, da união dos explorados e da ação coletiva em busca do poder popular.

  2. Emilio,

    boa tarde.
    Fico contente em reencontrá-lo por aqui.
    Sinceros parabéns pelo texto e por se manter firme.
    Por favor, vc poderia enviar o texto em formato Word (anexo), na íntegra para o meu email?

    Muito obrigado.
    abraços e tudo de bom,

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