(Para ver os fragmentos da primeira carta clique aqui)

SEGUNDA CARTA DO SUBCOMANDANTE MARCOS A LUIS VILLORO.

La Jornada, 13/04/2011.

Abril de 2011.

“Se no céu há unanimidade, separem-me um lugar no inferno”

(SupMarcos. Instruções para minha morte II)

1. A PROSA DA CAVEIRA.

Don Luis:

Saúde e saudações, mestre. Esperamos sinceramente que esteja melhor de saúde e que a palavra seja como esses remédios caseiros que trazem alívio ainda que não se saiba como.

Ao começar estas linhas, a dor e a raiva de Javier Sicília (longe quanto à distância, mas próximo nos ideais de longa data) produzem um eco que ressoa em nossas montanhas. É de esperar e de esperança que sua lendária tenacidade, do mesmo modo em que convoca agora nossa palavra e ação, chegue a reunir raivas e dores que se multiplicam em solos mexicanos.

De Don Javier Sicília lembramos suas críticas irredutíveis, mas fraternas, ao sistema de educação autônoma nas comunidades indígenas zapatistas e sua obstinação ao lembrar periodicamente, ao finalizar sua coluna semanal na revista mexicana PROCESO, o pendente processo de cumprimento dos acordos de San Andrés.

A tragédia coletiva de uma guerra insensata, concretizada na tragédia particular que o feriu, tem colocado Don Javier numa situação difícil e delicada. São muitas as dores que esperam encontrar eco e volume em seus pedidos de justiça, e não são poucas as inquietações que esperam que sua voz incorpore, sem dirigi-las, as vozes ignoradas da indignação.

E acontece também que em torno de sua figura agigantada pela digna dor, se aproximem os abutres da política de cima, para os quais uma morte só vale quando soma ou diminui algo em seus projetos individuais e de grupelhos, ainda que se escondam por trás de uma representatividade.

Um novo assassinato se torna visível? Pois então, faz-se necessário ver como isso afeta a pueril contabilidade eleitoral. Lá em cima importam as mortes que podem incidir na agenda eleitoral. Quando não se podem capitalizar nas pesquisas e tendências de voto, então voltam à conta lúgubre onde as mortes já não importam, ainda que sejam dezenas de milhares, porque voltam a ser uma questão individual.

No momento em que escrevo estas palavras, ignoro os passos que segue esta dor que nos convoca. Mas seu pedido de justiça, e de todos os que nele se sintetizam, merecem nosso respeito e apoio, ainda que com nosso pequeno ser e nossas grandes limitações.

No ir e vir das notícias sobre este acontecimento, lembro que Don Javier Sicília é poeta. Talvez por isso sua persistente dignidade.

Em seu estilo bem peculiar de ver e explicar o mundo, o Velho Antonio, esse indígena que foi mestre e guia de todos nós, dizia que havia pessoas que eram capazes de ver realidades que ainda não existiam e que, como tampouco não existiam palavras para descrever estas realidades, então tinham que trabalhar com as palavras existentes e acomodá-las de maneira estranha, em parte canto, em parte profecia.

O Velho Antonio falava da poesia e daqueles que a fazem (e eu acrescentaria aqueles que a traduzem, porque @s tradutor@s do poema que fala línguas distantes também devem ser muito fazedor@s de poesia).

Poetas e poetisas vêem mais longe ou vêem de maneira diferente? Não sei, mas procurando algo que, dito no passado, falasse do presente que nos faz sofrer e do futuro incerto, encontrei este escrito de José Emilio Pacheco que um meu irmão maior me mandou faz tempo e que vem ao caso para que ninguém entenda.

Prosa da caveira.

“Como Ulisses, me chamo Ninguém. Como o demônio dos Evangelhos, meu nome é Legião. Sou você porque você é eu. Ou serás porque fui. Você e eu. Vocês, os outros, os incontáveis vocês que se resolvem em mim. (…) Depois fui símbolo da sabedoria, a ponto de me converter em lugar comum. porque o mais sábio é também o mais óbvio. Como ninguém quer vê-lo de frente, nunca é demais repeti-lo: não somos cidadãos deste mundo, mas sim passageiros em trânsito pela terra prodigiosa e intolerável. Se a carne é erva e nasce para ser cortada, sou para o seu corpo o que a árvore é para a pradaria: não invulnerável, tampouco perdurável, mas sim matéria mais obstinada ou resistente. Quando você e todos os nascidos no vazio do tempo que te foi dado em empréstimo acabarem de representar seu papel neste drama, nesta farsa, nesta trágica e bufa comédia, eu permanecerei por longos anos: descarnada e desencarnada. Vulto sereno, rosto secreto que você se nega a ver (arranque sua máscara: encontrará em mim sua verdadeira cara), ainda que saiba íntimo e seu e que sempre vai com você. E traz dentro de você, em células fugazes que a cada instante morrem aos milhões, tudo o que es: seu pensamento, sua memória, suas palavras, suas ambições, seus desejos, seus medos, seus olhares que a golpes de luz erguem a aparência do mundo, seu afastamento ou entendimento do que realmente chamamos realidade. O que te eleva acima de teus esquecidos semelhantes, os animais, e o que te situa abaixo deles: o sinal de Caím, o ódio para com sua espécie, sua capacidade bicéfala de fazer e destruir, formiga e carcoma. (…) Porque vou com vocês por toda parte. Sempre com ele, com ela, contigo, esperando sem protestar, esperando. Dos exércitos de meus semelhantes foi forjada a história. Da pulverização de meus ossos é amassada a terra. (…) Assim, quem diria, eu – máscara da morte – sou a mais profunda entre teus sinais de vida, tua marca final, tua última oferenda de lixo ao planeta que já não cabe em si mesmo de tantos mortos. Apesar de perdurar por breve tempo, de qualquer maneira bem superior ao que te concederam. (…) Toda beleza e toda inteligência descansam em mim, e você me repudia. Você me vê como símbolo de medo aos mortos que resistem ao estarem mortos, ou a morte pura e simples: a sua morte. Porque só posso sair à superfície com o seu naufrágio. Só apareço quando você tiver tocado o fundo. Mas em certa idade me insinuo nos sulcos que me esboçam, nos cabelos que partilham minha gasta brancura. Eu, sua verdadeira cara, sua última aparência, seu rosto final que te faz Ninguém e te transforma em Legião, hoje te ofereço um espelho e te digo: Olhe-se”.

(José Emilio Pacheco, “Prosa da caveira”, em “Fim do século e outros poemas”, México, Fundo de Cultura Econômica/Secretaria de Educación Pública, Leituras Mexicanas N.º 44, 1984. pg. 114-117).

2. A PERTINÊNCIA DA REFLEXÃO CRÍTICA.

“Quando a hipocrisia começa a ser de má qualidade,

é hora de começar a dizer a verdade”. Bertold Brecht.

A guerra de cima continua e seu passo de destruição pretende também que todos comecemos a aceitar este horror cotidiano como se fosse algo natural, algo impossível de ser mudado. Como se a confusão reinante fosse premeditada e pretendesse democratizar uma resignação que imobiliza, que conforma, que derrota, que rende.

Em tempos em que se organiza a confusão e se exerce conscientemente a arbitrariedade, é necessário fazer algo. E um algo é tratar de desorganizar esta confusão com a reflexão crítica.

Como poderá ver nas cartas que anexo, Don Luis, têm se unido a essa troca de reflexões sobre Ética e Política, Carlos Antonio Aguierre Rojas, Raul Zibechi, Sergio Rodríguez Lascano e Gustavo Esteva. Esperamos que mais pensamentos venham se agregando a este espaço.

Nesta nossa segunda carta, queria tocar alguns dos pontos que você toca em sua resposta e que, direta ou indiretamente, também sublinham nossos correspondentes que lançam suas idéias da Cidade do México, Oaxaca e do Uruguai.

Todos abordam, com suas particularidades, ou seja, no calendário e geografia que lhes são próprios, a questão da reflexão crítica. Tenho  certeza de que nenhum de nós (você, eles, nós) pretendemos que se estabeleçam verdades irremovíveis. Nosso propósito é jogar pedras, bom, idéias, contra a estanque e aparentemente tranqüila prática teórica atual.

A comparação que uso com a pedra vai além da retórica de uma superfície momentaneamente agitada pela pedra. Trata-se de chegar ao fundo. De não conformar-se com o evidente, mas sim de atravessar com irreverência o departamento estanque das idéias e chegar ao fundo, em baixo.

Na época atual, a reflexão crítica está aparentemente estancada. E digo aparentemente se é que nos atemos ao que a mídia impressa e eletrônica apresenta como reflexão teórica. E não se trata só de que o urgente tenha deslocado o importante, neste caso, os tempos eleitorais e a destruição do tecido social.

Diz-se, por exemplo, que o ano que nos preocupa, o de 2011, é um ano eleitoral. Bom, também o foram todos os anos anteriores, e tem mais. A única data que não é eleitoral no calendário de cima é…o dia das eleições.

Mas já dá pra ver que o imediatismo dificilmente pode diferenciar o que aconteceu ontem do que ocorreu 17 anos atrás.

Ressalvadas as “molestas” interrupções das catástrofes naturais e humanas (porque os crimes cotidianos desta guerra são uma catástrofe), os teóricos de cima, ou os pensadores do imediato, voltam. Vez por outra, ao tema eleitoral…ou fazem malabarismos para vincular qualquer coisa à questão eleitoral.

A teoria de pouca conta, do mesmo modo que a comida, não nutre, só entretém. E é disso que parece se tratar se nos atemos ao que aparece na grande maioria dos jornais e revistas, bem como nos painéis dos “especialistas” dos meios eletrônicos do nosso país.

Quando esses gastadores da teoria de pouca conta olham para outros lugares do Mundo e deduzem que as mobilizações que derrotam governos são produtos de celulares e redes sociais, e não da organização, capacidade de mobilização e poder de convocação, expressam, mais que uma ignorância supina, o desejo inconfessável de conseguir, sem esforço, seu lugar na “HISTÓRIA”. “Use o twitter e ganharás os céus” é o seu creio moderno.

E, do mesmo modo que os “produtos milagrosos”, esses que exaltam o Alzheimer teórico e político, promovem soluções fáceis para o caos social atual.

Não passa na cabeça de ninguém que, assim como diz a publicidade, ao usar dita loção para homens ou tal perfume para as mulheres, se verá instantaneamente na França, ao pé da Torre Eiffel, ou nos bares da Londres de cima.

Mas, do mesmo modo que os produtos milagrosos que prometem reduzir o peso sem fazer exercício e se empanturrando de comida, e há gente que acredita nisso, também há quem acredita que se pode ter liberdade, justiça e democracia em riscar apenas uma cédula a favor da permanência do Partido de Ação Nacional, do arrimo do Partido da Revolução Democrática ou da volta do Partido Revolucionário Institucional.

Quando esta gente sentencia que só há uma opção, a via eleitoral ou a via armada, não demonstra só sua falta de imaginação e conhecimento da história nacional e mundial. Também, e, sobretudo, volta a armar a arapuca que serviu de argumento para a intolerância e a exigência de uma unanimidade fascista e retrógrada para um ou outro lado do espectro político.

“Brilhante” análise esta que coloca a urgência de definições…diante das opções que impõem os de cima.

Mas das falsas opções alerta muito bem Gustavo Esteva em seu texto, e creio que dá para um tema especial desta troca a distância.

No lugar de impor seus frágeis axiomas, poderiam optar por debater, por argumentar, por tratar de convencer. Mas não. Tratou-se e trata-se de impor.

Acredito sinceramente que não lhes interessa debater seriamente. E não só porque não têm argumentos de peso (até agora, tudo não passa de uma lista de boas intenções e ingenuidades que beiram o patético, onde o Partido de Ação Nacional mostra que o “jeito Fox” não é um caso isolado, mas sim toda uma escola de dirigentes nesse partido, onde o Partido Revolucionário Institucional prega o autismo frente à própria história, onde as várias cores da autodenominada esquerda institucional pretendem convencer com palavras de ordem na falta de argumentos), sim porque não se trata de mudar nada de fundo.

É até cômico ver como se fazem malabarismos para encantar as massas (sim, as desprezam, mas precisam delas) e ao mesmo tempo cortejam sem rubor o poder econômico.

Para eles, trata-se exatamente de manobrar na estreita margem dos escombros do Estado Nacional no México para tratar de exorcizar uma crise que, quando arrebentar, irá varrer também eles, ou seja, a classe política em seu conjunto. Em suma: para eles é uma questão de sobrevivência individual.

A vocação de assopradores, delatores e policiais cai bem a esse lixo teórico que alentou a histeria intelectual e artística, antes contra o movimento estudantil de 1999-2000 e seu Conselho Geral de Greve, e depois contra todo aquele que não aceita as diretrizes desta corja de policiais do pensamento e da ação.

Trata-se de estabelecer uma diferenciação que é mais um exorcismo: há eles, os bem comportados, ou seja, os civilizados, e há os outros, os bárbaros.

Em seu frágil tagarelar teórico estão, de um lado (e em cima), @s indivídu@s brilhantes, sapientes, equilibrados, prudentes; e por outro lado (e em baixo) há a massa obscura, ignorante, arrebatada e provocadora.

Do lado de lá: os prudentes e maduros usurpadores da representatividade das maiorias.

Do lado de cá: as minorias violentas que representam apenas a si mesmas.

– * –

Mas suponhamos que lhes interessa debater e convencer.

Discutamos, por exemplo, as reais conseqüências do projeto que atravessa os mandatos presidenciais de Ação Nacional de mudar uma conhecida estrofe do Hino Nacional mexicano e colocar em seu lugar “Pensa, O Pátria Querida! Que o céu uma vítima colateral em cada filho te deu” e diante da qual nenhum dos outros partidos tem colocado uma alternativa pontual e firme.

Ou os supostos benefícios da volta do Revolucionário Institucional e do conseqüente referendo de toda uma cultura de corrupção e crime que ensopou o conjunto da classe política do México.

Ou as possibilidades reais do projeto de dar marcha ré à roda da história e voltar ao Estado Bem-feitor que é a proposta da ainda frágil coalizão de oposição.

Todos, além de detestar a reflexão teórica (claro, a não ser que seja mera autocomplacência), se colocam algo impossível: manter, resgatar ou regenerar os escombros de um Estado Nacional que dê luz e corpo ao sistema de partidos de Estado. Este que encontrou no Partido Revolucionário Institucional seu melhor espelho e frente ao qual toda a classe política de cima se esmera em se adornar.

Ou não têm se dado conta de até que ponto as bases desse Estado estão destruídas? Como manter, resgatar ou renovar um cadáver? E, ainda assim, já faz tempo que a classe política e os analistas que a acompanham se esmeram em vão em embalsamar as ruínas.

Mas, se entende, a ignorância não é condenável. Claro, a menos que se vista de sabedoria.

Não é possível, dizemos nós, colocar qualquer tipo de solução ao desastre do Estado Nacional sem tocar no sistema responsável por esta ruína e pelo pesadelo que povoa o país inteiro.

Há soluções, dizemos nós, mas só podem nascer de baixo, de uma proposta radical que não espera o conselho dos sábios para se legitimar, mas já é vivida, ou seja, luta-se por ela em vários cantos do nosso país. E que, portanto, não é uma proposta unânime em sua forma, em seu modo, em seu calendário, em sua geografia. Ou seja, é plural, includente, participativa. Nada a ver com as unanimidades que pretendem ser impostas por azuis, amarelos, vermelhos, verdes, rosas e comparsas que os acompanham.

Mas nós reconhecemos que podemos estar errados. Que pode ser, este é um supositório, que a destruição perpetrada ainda deixe margem de manobra para refazer de cima o tecido social.

Mas, no lugar de alentar um debate sério e profundo, pedem-nos que voltemos a calar e, mais uma vez, impõem-nos de novo apoiar nossos perseguidores, aqueles que, por exemplo, com suas palavras ou silêncios dão abrigo a pessoas como Juan Sabines Guerrero, que, do governo de Chiapas, persegue e reprime aqueles que não se unem ao falso coral de elogios a suas mentiras feitas governo, que persegue os defensores dos direitos humanos da Costa e Altos de Chiapas e os indígenas de San sebastián Bachajón que se negam a prostituir sua terra, que alenta a ação de grupos paramilitares contra as comunidades indígenas zapatistas.

Porque quem realmente conhece o que está sendo feito e desfeito em Chiapas, e não tem medo, tem reescrito o lema de Sabines e agora o chamam de “Desfazer os fatos, não palavras”. Sabines Guerrero é o que melhor representa a putrefeita classe política mexicana: tem o apoio do PAN, do PRI, do PRD e do movimento de AMLO; é generoso com a mídia para que diga o que convém e cale o que não lhe convém; mantém uma aparência diante da qual ninguém parece se importar que seja assim, uma aparência pronta a se fazer em pedaços a qualquer momento; e governa como se fosse um dedicado capataz de uma fazenda porfirista.

E, todavia, se exige de nós “fazer contribuições críticas construtivas” a um movimento dirigido e conduzido para repetir a mesma história de opressão com outros nomes.

Quando vão entender que existem indivíduos, grupos, coletivos, organizações, movimentos a quem não interessa mudar o que está em cima nem renovar (ou seja, reciclar) uma classe política que não passa de um parasita?

Nós não queremos trocar de tiranos, de donos, de amos ou de salvadores supremos, mas sim não ter nenhum.

Mas, enfim, caso se deva agradecer por algo o que tem ocorrido lá em cima, é por ter revelado mais uma vez a pobreza teórica e a evidente debilidade estratégica de quem se propunha e se propõe manter, relevar ou reciclar os de cima para exorcizar a rebelião dos de baixo.

Creio sinceramente que uma reflexão crítica profunda deveria tratar de afastar o olhar do hipnótico carrossel da classe política e ver outras realidades.

O que se tem a perder? Em qualquer caso, terão mais argumento para auto-erguer-se na “única alternativa possível”. Afinal. @s outr@s são tãaaaooo pequen@s e (ufff!) tãaaaoooo radicais.

Ainda que talvez chegue a ver…

Que o heróico esforço de coletivos anarquistas e libertários para subtraírem-se à lógica do mercado capitalista é efeito e causa de um pensamento radical. E que o futuro tem sua principal aposta nos pensamentos radicais. Assim, fariam bem a olhar com respeito a essa maneira multicor de ter uma identidade própria: os piercings, tatuagens, os pregos, as cabeleiras coloridas e demais parafernálias que tanto lhes causam repulsa.

Ou a luta das organizações sociais da esquerda independente, que optam por organizar motoristas, mini-micro-nano comerciantes e colônias (o que for de cada um, os ventre a serem fecundados aí são maioria), no lugar de organizar automobilistas, câmaras de comércio e organizações vicinais VIP, e que podem dar conta de mudanças importantes em suas condições de vida. E não pela via do assistencialismo eleitoral disfarçado de gestão, mas sim pela organização do coletivo com projetos imediatos, de médio e longo prazo. É por alguma coisa que se mantêm independentes e assim resistem.

Ou a lendária resistência dos povos originários. Se há alguém que conhece a dor e a luta, são eles.

Ou a digna raiva das mães e pais de assassinad@s, desaparecid@s, pres@s. Porque fariam bem em lembrar que nesse país não acontece nada…até que as mulheres decidam que acontece.

Ou a indignação cotidiana de operári@s, empregad@s, campones@s, indígenas, jovens diante do cinismo dos políticos sem distinção de cor.

Ou a teimosa luta d@s trabalhador@s do Sindicato Mexicano dos Eletricitários apesar de eles, sim, terem contra si uma gigantesca campanha de mídia, repressão, cárcere, ameaças e hostilidades.

Ou a persistente luta pela liberdade d@s pres@s polític@s e a apresentação com vida dos desaparecidos.

Ou não? A democracia que eles querem não passa de uma amnésia administrada de acordo com as circunstâncias? Escolhe-se o que deve ser visto e o que deve ser esquecido?

3. O INDIVÍDUO CONTRA O COLETIVO?

Em sua carta, Don Luis você toca no tema do indivíduo e do coletivo. Uma velha discussão de cima os contrapõem e tem usado isso para fazer a apologia de um sistema, o capitalista, diante das alternativas que surgem diante dele como resistência.

O coletivo, dizem-nos, apaga a individualidade, a subjuga. E então num salto teórico grosseiro, passa-se a cantar elogios ao sistema no qual, se repete, qualquer indivíduo pode chegar a ser o que quiser, bom ou mau, porque há garantia de liberdade.

Ocorre-me que esse negócio de “liberdade” é algo sobre o qual deveríamos ir mais fundo, mas talvez em outra ocasião, por enquanto voltemos ao indivíduo, ou individua, a depender do caso.

O sistema canta elogios ao indivíduo de cima ou ao de baixo.

Ao de cima porque ressaltar sua individualidade boa ou má, eficiente ou deficiente, brilhante ou obscura, escamoteia a responsabilidade de uma forma de organização da sociedade. Assim, temos que há indivíduos governantes maus…ou mais maus (desculpe, não encontrei nenhum que me permitisse colocar “ou bons”), indivíduos de poder econômico, etcetera.

Se o indivíduo de cima é perverso, torpe, cruel e teimoso (eu sei, parece que estou dando a meia filiação de Felipe Calderón Hinojosa), então o que se tem a fazer é tirar esse indivíduo mau e colocar em seu lugar um indivíduo bom. E se não há indivíduos bons, pois, então, o menos ruim (eu sei, parece que estou repetindo a consigna eleitoral de cinco anos atrás e preste a se reciclar).

O sistema, ou seja, a forma de organização social, permanece intacto. Ou sujeito às variações permissíveis. Ou seja, podem-se fazer algumas mudanças, mas sem que mude o fundamental, a saber: há uns poucos que estão em cima, uns muitos que estão em baixo, e os que estão em cima estão de costas aos que estão em baixo.

E o indivíduo de baixo é aplaudido e admirado porque a rebeldia individual não é capaz de colocar em sério risco o funcionamento desta forma de organização social. Ou é ridicularizado e atacado porque o indivíduo é vulnerável.

Permitam-me, então uma arbitrariedade retórica: digamos que os anseios de todo ser humano são: vida, liberdade, verdade. E que talvez se pode falar de uma graduação: melhor vida, mais liberdade, maior conhecimento.

É possível que o indivíduo possa alcançar a plenitude destas aspirações e suas respectivas graduações num coletivo? Nós cremos que sim. Todavia, temos certeza de que não pode alcançá-las sem o coletivo.

“Onde, com quem, contra quem?”. Estas, dizemos nós, são as perguntas cujas respostas definem o lugar do indivíduo e do coletivo numa sociedade, num calendário e numa geografia bem precisos.

E não só. Definem também a pertinência da reflexão crítica.

Antes eu disse que estas reflexões não pretendem alcançar a verdade geral, mas tratam sim de afastar-se da mentira unânime que tratam de nos impor de cima.

–  *  –

Só umas palavras sobre esforços que agora parecem de indivíduos solitários.

Aqueles que criticam as várias iniciativas que, ainda que dispersas, nascem da dor social, deveriam lembrar que, ao julgar e condenar quem faz alguma coisa, estão absolvendo quem não faz nada. Porque acabar com a arbitrariedade, desorganizar a confusão, parar a guerra são tarefas coletivas.

4. O QUE VAI ACONTECER.

O mundo como o conhecemos agora será destruído. Desconcertados e insultados, nada poderão responder a seus vizinhos quando lhes perguntarem “Por que?”

Primeiro serão mobilizações espontâneas, violentas e fugazes. Em seguida, um refluxo que lhes permitirá respirarem tranqüilos (“Uff! Já passou. Que bom”). Mas depois virão novos levantes, só que organizados porque deles participarão coletivos com identidade.

Então, verão que as pontes que destruíram, acreditando que haviam sido erguidas para ajudar os bárbaros, não só não poderão ser reconstruídas, mas também se darão conta de que essas pontes eram para serem ajudados.

E el@s dirão que virá uma época de obscurantismo, mas tudo não passará de simples rancor porque a luz que pretendiam deter e administrar não servirá absolutamente para nada a esses coletivos que fizeram sua própria luz, e com ela e nela andam e andarão.

O mundo não será o mesmo mundo. Sequer será melhor. Mas terá dado uma nova oportunidade de ser o lugar onde seja possível construir a paz com trabalho e dignidade, e não um contínuo ir contra a correnteza em meio a um pesadelo sem fim.

Então, em forma de poesia, numa escrita sobre um muro derrubado se lerão estas palavras de Bertold Brecht: “Vós que surgireis do marasmo em que nós os temos mergulhado, quando falardes de vossas debilidades, pensem também nos tempos sombrios dos quais tereis escapado. Mudávamos de país como de sapatos através de guerras de classes, e nos desesperávamos onde só havia injustiça e ninguém se levantava contra ela. E, contudo, sabíamos que também o ódio contra a baixeza desfigura o rosto. Também a ira contra a injustiça faz da voz uma arma. Infelizmente, nós que queríamos preparar o caminho para a amabilidade não pudemos ser amáveis. Mas vós, quando chegarem os tempos em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com indulgência”.

Valeu Don Luis. Saúde e que a imobilidade não triunfe mais uma vez.

Das montanhas do Sudeste Mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos.

México, abril de 2011.

P. S.: Na hora de terminar esta carta, mais uma vez, a morte chegou com seu passo imprevisto a um caminho companheiro. Felipe Toussaint Loera, cristão desses que acreditam na necessidade da justiça terrena, se foi numa tarde deste quente mês de abril. Felipe e outr@s como ele são daqueles que falamos em textos recentes. Ele foi e é parte desta geração de homens e mulheres que tem estado do lado dos indígenas quando ainda não estavam na moda e tambèm quando deixaram de estar na moda. Lembro dele numa das reuniões preparatórias da Outra Campanha, em 2005, ratificando seu empenho em escrever sua história individual na história de um coletivo, renascendo mais uma vez. Saudemos sua vida porque, nela, às perguntas “Onde?, com quem?, contra quem?,” Felipe respondeu: “em baixo, com os indígenas que lutam, contra o sistema que os explora, os despoja, os reprime e os despreza”. Todas as mortes de baixo doem, mas há umas que doem mais de perto. A de Felipe é como se algo muito nosso nos faltasse.

Traduzido por Emílio Gennari.

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