CARTA DO SUBCOMANDANTE MARCOS AO MOVIMENTO CIDADÃO PELA JUSTIÇA. La Jornada 07/06/2011

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

Junho de 2011.

“A dor nos lembra
Que podemos ser bons,
Que alguém melhor nos habita,
Que o rio das lágrimas corre em nobre sentido.
Chamamos a dor no lugar do traço do sorriso,
A treva que está do outro lado da estrela
Que diante de você tinha um nome agradável
E orientava nossos passos dia após dia.
Dor é o combustível com que arde
A chama das lembranças que ilumina
Uma noite de esquecimento derrotado
Pelo raio do seu sorriso ao revoar.
Dor se chama o sofrimento
De viver pela sua memória.”

Fragmento de “49 Globos”. Juan Carlos Mijangos Noh.

Ao Movimento Cidadão pela Justiça 5 de Junho;
Aos familiares das crianças mortas e feridas na Guarderia ABC em 5 de junho de 2009 e a tod@s aqueles que se solidarizam com sua luta.

Hermosillo, Sonora, México.

De: Subcomandante Insurgente Marcos.
Chiapas, México.

Escrevo-lhes em nome das mulheres, homens, anciãos e crianças do Exército Zapatista de Libertação Nacional, para saudá-los e manifestar-lhes nosso respeito e admiração por sua digna luta.
Sabemos que não é fácil tirar palavras de dor.
E de raiva?
De saber que os maus governos ignoram propositadamente as demandas de justiça?
De ver como se manipula o calendário para simular justiça, e para calcular que a falta de memória cobrirá a morte? Esta morte absurda dos 49 pequenos e das dezenas de feridos, crianças que não tinham outra culpa a não ser a de ter nascido num país onde o governo uniu o nepotismo à corrupção e à impunidade.
Pouco ou nada podemos acrescentar ao que suas dignas palavras têm assinalado sobre o que ocorreu: a desgraça chegando àqueles que não a esperavam e não a mereciam; a irresponsabilidade que a propiciou; a cumplicidade de governos, legisladores e juízes; o seguido adiamento de uma investigação pra valer. E os nomes e as imagens das crianças, as atividades e mobilizações para lembrá-las da melhor maneira, ou seja, exigindo punição dos responsáveis, justiça para as vítimas e a adoção de medidas que impeçam que a tragédia volte a se repetir.
Tudo isso e mais temos aprendido de sua página na internet (www.movimiento5dejunio.org), e do livro “Nós somos os culpados” de Diego Enrique Osorno, que monta o quebra-cabeça da tragédia.
A morte de uma criança sempre é desproporcional. Chega atropelando e destruindo tudo o que está por perto. Mas quando esta morte é semeada e cultivada pela negligência e a irresponsabilidade dos governos que têm transformado a inépcia em negócio, algo muito profundo se sacode no coração coletivo que em baixo faz andar a pesada roda da história.
Então, as perguntas crescem e se ampliam: por que?, quem são os responsáveis?, o que se faz para que nunca mais se repita esta tragédia?
E tem sido o empenho de vocês a dar-nos as respostas. Porque de cima só temos visto desprezo, gozações, simulações e mentiras.
A mentira é sempre um ultraje, mas quando se tece a partir do Poder para esconder familiares e amigos, é uma vilania.
Lá em cima não têm se arrependido. Não o farão. No lugar de honrar as crianças mortas da única forma que lhes seria permitida, ou seja, com a justiça, continuam com seus jogos de guerra onde eles ganham e todos perdem.
Porque não é a resignação diante da morte a que se prega de lá de cima. O que querem é o conformismo diante da irresponsabilidade que calcinou e feriu essas vidas.
Distantes como estamos, no calendário e na geografia, não enviamos palavras de conformismo nem de resignação. Não só porque nem um nem outra podem fazer frente às conseqüências deste crime que agora completa dois anos. Também, e sobretudo, porque a luta de vocês nos faz sentir respeito e admiração por sua causa, por seu passo e por seu empenho.
Lá em cima deveriam saber que não só a dor une, também o exemplo da luta tenaz que nessa dor se anima.
Porque vocês, homens e mulheres levados a esta luta pela tragédia, são seres extraordinários que despertam a esperança em muitos cantos de nosso país e do planeta.
Como são extraordinários esses homens e mulheres que tem se colocado novamente a andar, na Caravana pela Paz com Justiça e Dignidade, para lembrar àqueles que mal governam, aos criminosos e ao país inteiro, que é uma vergonha não fazer nada quando a guerra se apodera de tudo.
De um desses cantos, das terras indígenas de Chiapas, as zapatistas, os zapatistas, os olhamos de baixo, sabendo que a dor também agiganta os passos quando são dignos.
E estas linhas que agora lhes escrevemos são animadas apenas pelo desejo de dizer-lhes uma coisa:
Que seja bem recebido o sangue que deu vida a essas crianças, e que seja mal recebido o de quem as tirou.
E dizer a vocês que contem conosco, que, ainda que distantes e pequenos, reconhecemos a grandeza de quem sabe que a justiça só se alcança com a memória e nunca com a resignação.
Oxalá algum dia possam vir a essas terras. Aqui encontrarão um coração moreno que os abraçará, ouvidos atentos para escutar, e uma história disposta a aprender de vocês.
Porque as grandes lições, as que mudam o rumo da história, vêm exatamente das pessoas que, como vocês e como aqueles que agora andam com vocês, fazem da memória o caminho para crescer.
Com vocês, e com aqueles que agora marcham, poderemos, então, juntos, vocês, eles e nós, falar palavras onde a dor seja uma cicatriz que nos lembre e comprometa a que nunca mais se repita a desgraça, e a que, por fim, termine o carnaval sangrento com o qual, lá em cima, se festeja a impunidade e a falta de vergonha.
Enquanto isso ocorre, daqui nós continuaremos ouvindo-os e aprendendo de vocês.
Valeu. Saúde e que a justiça, por fim, caminhe em baixo.

Das montanhas do sudeste mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 2011.

Tradução Emílio Gennari

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here