Os salários pagos pelas filiais das companhias transnacionais são mais elevados do que a remuneração média nos países onde essas filiais estão instaladas. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
As companhias transnacionais devem ser analisadas criticamente como a modalidade mais desenvolvida do capitalismo, mas usualmente as acusações são feitas na perspectiva de uma entidade nacional lesada por um elemento que ultrapassa as fronteiras. Procurarei explicar aqui por que motivos as críticas nacionalistas não têm razão de ser, para deixar o caminho aberto às críticas que devem ser feitas. O que me preocupa nas companhias transnacionais não é serem transnacionais mas serem capitalistas.
As acusações formuladas na perspectiva nacionalista dirigem-se tanto para a entrada de investimentos directos oriundos do estrangeiro como para a saída de investimentos directos encaminhados para o estrangeiro [1], e é curioso que os críticos não se apercebam de que estes argumentos em boa medida se cancelam reciprocamente. Mas o raciocínio lógico não é o principal atributo dos nacionalistas. Nas quatro partes deste artigo vou apreciar as críticas mais frequentes.
Críticas à entrada de investimentos externos directos
1.
A forma mais rudimentar de crítica à implantação de filiais de companhias transnacionais consiste em afirmar que elas constituem um braço político do país de onde emana o investimento. Mas isto já só é defendido por quem ignore o novo rumo tomado pela internacionalização da economia. A transnacionalização implica uma estrutura interna das companhias que torna aquela crítica obsoleta. Em vez de as filiais reproduzirem em escala menor o sistema de produção da sede, como acontecia com as companhias multinacionais, as cadeias de produção passaram a dispersar-se geograficamente, cabendo a cada estabelecimento uma fase específica de uma mesma cadeia de produção e podendo as sedes fragmentar-se ou deslocalizar-se. Moacir Oliveira Júnior definiu sinteticamente o perfil das companhias transnacionais ao escrever que «cada subsidiária contribui de maneira diferenciada, mas de forma integrada» [2]. Se o leitor quiser ler mais acerca do assunto, remeto-o para o meu artigo A geopolítica das companhias transnacionais. Cada companhia transnacional segue uma estratégia política, sem dúvida, mas que é estabelecida por ela própria e não coincide necessariamente com o governo do país onde está localizada a sede ou uma parte da sede.
Aliás, o argumento já era inadequado na época das companhias multinacionais, porque sucedia com mais frequência que o governo do país onde se encontrava a sede interviesse em apoio às filiais do que as filiais agissem em benefício daquele governo. No caso do Brasil, por exemplo, é interessante considerar que apesar de o golpe militar de 1964 ter beneficiado do auxílio de Washington, os capitais norte-americanos não acorreram em reforço do ascendente político que o seu país havia acabado de obter, só aumentando substancialmente os seus investimentos após 1971, e ainda assim de maneira pouco durável, porque os investimentos directos provenientes dos Estados Unidos, que em 1951 haviam sido responsáveis por 44% dos investimentos directos totais recebidos pelo Brasil, viram a sua participação declinar para 30% em 1980.
2.
É frequente a afirmação de que as companhias transnacionais, e antes delas as companhias multinacionais, estabelecem-se num país para se aproveitar dos baixos salários. No plano teórico, é irónico observar que, se isto acontecesse, as companhias transnacionais seriam um poderoso factor de homogeneização social, pois contribuiriam para a industrialização das regiões retardatárias. O facto de aquelas pessoas que atribuem às companhias transnacionais a intenção de pagar salários baixos defenderem ao mesmo tempo que o capitalismo se caracteriza pela desigualdade do desenvolvimento económico só confirma as confusões mentais de que padecem.
Mas a análise deve passar para o plano dos factos, e aquela crítica perde o fundamento ao verificarmos que desde a segunda guerra mundial até à crise iniciada em 2008, entre 4/5 e 2/3 dos fluxos de investimento externo directo emanados de países desenvolvidos se dirigiram para outros países desenvolvidos, circulando no interior do triângulo constituído pelos Estados Unidos, a União Europeia e o Japão. Basta isto para vermos que na grande maioria dos casos não se tratava de procurar força de trabalho mal paga mas, acima de tudo, força de trabalho qualificada. Como as companhias multinacionais se contavam entre as mais avançadas tecnologicamente, e o mesmo sucede agora com as companhias transnacionais, elas só podem operar com pessoal qualificado, que é sempre o mais bem pago.
Precisamente em virtude do seu avanço tecnológico as companhias multinacionais e transnacionais dirigem a maioria dos investimentos para os sectores capital-intensivos, e isto tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Ora, se estas companhias fossem movidas pela busca de mão-de-obra barata, as suas filiais seriam trabalho-intensivas, e é o contrário que acontece.
É certo que para níveis idênticos de qualificação da força de trabalho, de condições de infra-estrutura e de potenciais subcontratantes, é a cotação dos salários em dólar que determina a escolha do lugar onde implantar uma filial. No entanto, a cotação em dólar não permite aferir o grau de exploração, porque não corresponde ao valor real do salário no país onde é pago, e para definir este aspecto o valor em dólares tem de ser convertido segundo a paridade do poder de compra. Assim, uma das determinantes dos investimentos externos directos é não a diferença nos salários reais mas a diferença nos salários em termos de dólar, o que é muito diferente. Vejamos um exemplo entre milhares de outros, para que o leitor fique com uma ideia das dimensões do problema. Em 2002 o fabricante de aspiradores James Dyson decidiu transferir uma instalação fabril do Reino Unido, onde o salário médio era de 4,10 libras por hora, para a Malásia, onde o salário médio era equivalente a 1,50 libras por hora, embora Dyson anunciasse que pagaria o dobro desta média. Cotada em libras, a remuneração dos novos operários de Dyson, apesar de ser o dobro da média na Malásia, não chegaria a 3/4 da média britânica. Outro exemplo, com o interesse de ser brasileiro, diz respeito à Sabó, que «aumentou a capacidade de produção na Argentina, para tirar vantagem da desvalorização do peso, que tornou os custos de mão-de-obra muito baratos» [3]. Será que os nacionalistas brasileiros terão perante este caso a mesma reacção dos nacionalistas argentinos?
No caso do Brasil, será útil recordar que enquanto uns acusam as companhias transnacionais de procurarem o país por causa dos baixos salários, outros se lamentam dos elevados encargos sociais pagos pelas empresas. Segundo José Pastore, citado por Arnaldo Nogueira, «o Brasil é um país de encargos altos e salários baixos, o que faz o trabalhador receber pouco e custar muito para a empresa» [4]. A ser assim, as companhias transnacionais ficariam sistematicamente defraudadas nas suas esperanças. É certo que os cálculos de José Pastore, embora bem aceites nos meios empresariais, são contestados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos, DIEESE, que chama a atenção para o facto de se basearem numa noção restrita de salário e não incluírem uma parte da remuneração efectiva. Segundo o DIEESE, os encargos sociais das empresas não chegam a atingir 102% dos salários, como pretende Pastore, mas apenas 54%.
O problema principal aqui, porém, é outro. Múltiplas pesquisas comprovam que, tanto nas economias desenvolvidas como nas economias em desenvolvimento, os salários pagos pelas filiais das companhias transnacionais são mais elevados do que a remuneração média nos países onde essas filiais estão instaladas. Além deste aspecto quantitativo há aspectos não menos importantes que dizem respeito às condições de trabalho e à segurança social, e também aqui as pesquisas indicam que, sobretudo nos países em desenvolvimento, a situação é melhor nas filiais das companhias transnacionais do que nas outras empresas do país. Embora esta seja uma situação geral, a tabela 1 parece-me especialmente interessante por versar o Brasil. Vemos que no começo do milénio as companhias transnacionais com sede no Brasil pagavam, em média, salários consideravelmente mais elevados do que as restantes empresas brasileiras e as filiais de companhias transnacionais sediadas no estrangeiro pagavam salários superiores aos das suas congéneres brasileiras. Além disso, as empresas internacionalizadas atraíam os seus funcionários durante um período mais longo. Eis o que daria aos nacionalistas matéria para reflexão, no caso de eles reflectirem.
Tabela 1: Remuneração e tempo de permanência no emprego em função dos Investimentos Externos Directos (ano 2000)
Fonte: Glauco Arbix, Mario Sergio Salerno e João Alberto De Negri, «Internacionalização gera emprego de qualidade e melhora a competitividade das firmas brasileiras», em João Alberto De Negri e Mario Sergio Salerno (orgs.), Inovações, Padrões Tecnológicos e Desempenho das Firmas Industriais Brasileiras, Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2005.
A elevação do nível salarial e do tempo de permanência no emprego é um indicador seguro de que se trata de uma força de trabalho qualificada e sujeita a programas de treinamento que lhe aumentam as qualificações. E é precisamente por isso que os trabalhadores das companhias transnacionais, embora ganhem salários mais elevados, são mais explorados em termos de mais-valia relativa, porque laboram em condições de maior produtividade. Este constitui o mecanismo elementar de todo o desenvolvimento capitalista. Acresce que, quanto mais qualificada for uma força de trabalho, menor será a sua rotatividade, pois os patrões não querem perder em benefício da concorrência funcionários em cuja formação investiram. Ora, a diminuição da rotatividade do pessoal, reforçando a sua posição no mercado de trabalho, contribui para a elevação dos salários.
No caso brasileiro encontrei uma opinião discordante. Roberta Aguzzoli et al. afirmaram que «empresas multinacionais instaladas no Brasil pouco investem em treinamento» e «não capacitam a força produtiva local». Mas em seguida restringiram o âmbito destas observações, escrevendo que «diversas multinacionais estrangeiras instaladas no Brasil terceirizam boa parte de sua força produtiva, não investem na capacitação de sua mão-de-obra e muitas não divulgam seu balanço social» e que «muitas empresas não priorizam o treinamento». Seria conveniente saber qual é a percentagem ocupada pelas «diversas» e pelas «muitas», mas os autores não esclareceram. Por outro lado, baseados numa pesquisa realizada junto a apenas nove companhias transnacionais de origem brasileira, Roberta Aguzzoli et al. concluíram que «nenhuma das subsidiárias analisadas realiza treinamentos periódicos na filial», mas não percebo a utilidade de um estudo efectuado com um número tão reduzido de firmas, ainda para mais todas elas encontrando-se «em estágios iniciais de internacionalização» e sendo que «nenhuma das empresas analisadas possuía mais de cinco subsidiárias no exterior» [5]. No que diz respeito à base empírica, a pesquisa prosseguida por Roberta Aguzzoli et al. não me parece ter validade. Como observou Victor Prochnik a respeito das «firmas brasileiras que investem no exterior», «sua política de recursos humanos busca pessoas mais qualificadas, que permanecem mais tempo no emprego» [6]. Com efeito, seria muito estranho que os patrões não se preocupassem em aumentar as qualificações de uma força de trabalho recrutada mais duravelmente e remunerada a um nível superior. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, colocou a questão nos devidos termos, como se observa na tabela 2.
Tabela 2: Dispêndio das empresas industriais no Brasil em actividades relativas à Pesquisa e Desenvolvimento e à inovação tecnológica (% média do facturamento) em 2000
Fonte: Boletim Sobeet nº 52, 28 de Janeiro de 2008.
Tanto em termos de inovação tecnológica como de qualificação da força de trabalho, constata-se na tabela 2 que a actividade das filiais brasileiras de companhias transnacionais, sobretudo quando recorrem a outras firmas estrangeiras, tem mais repercussão do que a actividade das firmas brasileiras. Aliás, deve ressaltar-se que a tecnologia não é apenas material e que outra componente não menos importante é a tecnologia organizacional, ou seja, a forma de gestão da força de trabalho e do conjunto de operações da empresa. A difusão de sistemas de organização inovadores é um dos contributos das filiais de companhias transnacionais para o crescimento da produtividade nos países de acolhimento.
São significativas neste contexto as considerações do Boletim Sobeet nº 44, de Abril de 2007, especialmente se recordarmos que se trata de um órgão da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica, que funciona como um think tank relacionado com as companhias transnacionais estabelecidas no Brasil. Evocando a apreciação do câmbio do real, aquele Boletim afirmou que ela «não afeta negativamente o fluxo de investimentos diretos estrangeiros por conta do encarecimento dos ativos em moeda local, como sugerido por alguns», e explicou: «A lógica do investimento estrangeiro direto se define em um horizonte de longo prazo. Nesse sentido, a apreciação cambial corrente propiciada pelo ajuste externo das empresas brasileiras ao longo dos últimos anos favorece a previsibilidade em horizontes de prazo cada vez mais longos. Além disso, a apreciação cambial também favorece não apenas a redução de taxas de juros e o custo de capital, como também fortalece a demanda interna por meio do aumento de salários reais. Não por acaso, portanto, que observamos o aumento do apetite estrangeiro por ativos brasileiros simultâneo à apreciação do real». A elevação dos salários reais pode ser considerada como um dos factores que atrai os investimentos directos provenientes do estrangeiro. Quando o Boletim Sobeet nº 79, de 26 de Abril de 2011, indica que os dois factores que mais atraem os investimentos externos directos para o Brasil são a dimensão do mercado e o crescimento do mercado, o que é sinónimo de aumento da capacidade aquisitiva da população, novamente se confirma que não são os baixos salários a seduzir as companhias transnacionais.
Notas
[1] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[2] Moacir de Miranda Oliveira Júnior, «Transferência de conhecimento e o papel das subsidiárias em corporações multinacionais brasileiras», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), Internacionalização e os Países Emergentes, São Paulo: Atlas, 2007, pág. 218.
[3] Eva Stal, «Multinacionais brasileiras: o papel da tecnologia na conquista do mercado externo», Revista de Ciências da Administração, vol. 7, nº 14, 2005.
[4] Arnaldo José França Mazzei Nogueira, «Relações de trabalho e internacionalização no Brasil», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), op. cit., pág. 299.
[5] Roberta López Aguzzoli, Jorge Francisco Bertinetti Lengler, Elaine Di Diego Antunes e Vanderlei Becker Ribeiro, «Capacitação em multinacionais brasileiras: o investimento nas filiais estrangeiras reproduz o da matriz?», comunicação apresentada ao 4º Congresso do Instituto Franco-Brasileiro de Administração de Empresas, Maio de 2007, Brasil: Porto Alegre.
[6] Victor Prochnik, «Por que é baixo o investimento direto das firmas brasileiras no exterior?», Revista de Economia Mackenzie, 2008, pág. 18.
(Continua aqui)
Uma questão pertinente seria se algum dia tivemos no Brasil aporte de investimentos externos em busca dos baixos salários(ou apenas eles), ou se o incremento do capital se deu para o aproveitamento de outras vantagens e, partindo dessa evolução histórica, delimitar com clareza as peculiaridades do aporte de capital externo no Brasil, esclarecendo, por exemplo, o papel do Estado nesse incentivo.
Outro ponto, mais focado no nacionalismo é a relação das empresas brasileiras nos países em que atuam (e a crescente posição do Estado brasileiro na articulação dos interesses do capital brasileiro, sobretudo em relações com países africanos e outros “primos pobres”) e a política de bom mocismo do Estado brasileiro nas relações internacionais (como novo protagonista dos mercados mundiais e, contraditoriamente, como defensor das “boas causas” da humanidade).
João Ezaquiel,
A propósito dos seus comentários, algumas observações. Antes de mais, nesta série de quatro artigos pretendo abordar um problema geral, embora me tivesse esforçado por incluir exemplos do Brasil.
As companhias transnacionais situam em países ou regiões menos desenvolvidos as fases da cadeia produtiva para as quais basta uma mão-de-obra sem qualificações especiais. Mas, em todos os estudos de caso que conheço, verifica-se que essa mão-de-obra é mais bem remunerada nas filiais das transnacionais do que nas empresas locais. Ou, para quem preferir outra formulação, é ainda mais mal remunerada nas empresas locais do que nas filiais das transnacionais. E, de qualquer modo, é indispensável não perder de vista que, como escrevi, «uma das determinantes dos investimentos externos directos é não a diferença nos salários reais mas a diferença nos salários em termos de dólar, o que é muito diferente».
Estou de acordo com o que você escreveu a respeito da «política de bom mocismo do Estado brasileiro nas relações internacionais». Em breve começarei a publicar neste site uma nova série de artigos sobre a economia brasileira actual e a sua internacionalização, e num deles abordarei a actuação das companhias transnacionais brasileiras no estrangeiro, especialmente em África. É curioso verificar que, enquanto que o governo brasileiro tem sido em geral pouco activo na promoção dos investimentos directos oriundos do Brasil, a África tem constituído uma excepção e aí não só o governo brasileiro ampliou muito a sua intervenção diplomática, mas instituições como a Embrapa, a Fundação Oswaldo Cruz e o Senai colaboram nessa «política de bom mocismo». Como disse, terei oportunidade de voltar ao assunto.
Olá,
O Instituto de Pesquisas Econômicas (IPEA) e o o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) da Presidência da República do Brasil desenvolvem inúmeras atividades de cooperação e assistência técnica para as políticas sociais e de qualificação da mão-de-obra no continente africano.
“Programa Brasil-África de Cooperação em Proteção Social ajuda a desenvolver programas sociais na África”:
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/centro_pobreza/pdf/brasileafrica.pdf
E, segundo o jornal argentino Página 12, o Lula continua fortalecendo as projeções e interesses brasileiros – ao participar recentemente do Encontro da União Africana, diante de 53 mandatários dos países da região:
“Ofensiva diplomática de Lula en Africa”
http://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-171427-2011-07-04.html
Por fim, foi publicada uma reportagem – “Economia nacional usa pouca mão de obra qualificada” – em que Ben Ross Schneider, professor do MIT, apresenta um conjunto de análises genéricas e pouco fundamentadas em dados sobre a relação entre as multinacionais e as empresas nacionais. Cabe destacar, no entanto, que o central de sua fala foi – e aí ele está correto, do ponto de vista do desenvolvimento da produtividade capitalista – incentivar o investimento em educação e qualificação da mão-de-obra.
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=9156:economia-nacional-usa-pouca-mao-de-obra-qualificada&catid=8:diest&Itemid=6
Tudo isso reforça a importância de configurarmos uma crítica e prática social que ultrapasse os argumentos nacionalistas sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil hoje.
Abraços.
João Bernardo,
Após ler o artigo fiquei com algumas dúvidas:
1) Se os investimentos das empresas transnacionais buscam os locais onde haja maior produtividade, por que estes iriam para os “países em desenvolvimento” já que nestes locais a formação da força-de-trabalho é mais deficitária (vide sistema educacional, entre outros.), a tecnologia não tão avançada como nos países desenvolvidos, entre outros motivos?
2)Então as denúncias de trabalho escravo na China, tão corriqueiras, apesar de existirem não seriam exploradas pelas empresas transnacionais, ou ao menos não seria o x da questão?
2) Poderia, brevemente, discorrer sobre o papel do sistema educacional nos países em desenvolviemnto e de sua relação com o crescimento econômico destes países?
Minha participação no debate se resume, devido ao meu fraco conhecimento economia política, a fazer estas perguntas elementares. Se puder remeter a outros texto para responder também ajudaria.
Grato!
Após enviar a mensagem percebi que já haviam alguns comentários e que nestes se podem encontrar algumas respostas as minhas perguntas.
Giancarlo,
Vou tentar responder de maneira mutíssimo sintética, mas espero que não totalmente insatisfatória.
1) Até uma data recente, entre 3/4 e 2/3 dos investimentos externos directos circulavam dentro do triângulo constituído pelos países mais desenvolvidos: Estados Unidos, União Europeia e Japão. A crise nos países desenvolvidos alterou a situação. Forneci dados um pouco mais detalhados em http://passapalavra.info/?p=39343 . Em qualquer caso, os investimentos externos directos, quando se dirigem para os países emergentes, procuram sobretudo a força de trabalho mais qualificada e as companhias transnacionais proporcionam geralmente aos seus assalariados uma qualificação superior à proporcionada pelas empresas locais.
É certo que as companhias transnacionais estabelecem nas regiões e países menos desenvolvidos aquelas fases das cadeias de produção que exigem menos qualificações. Mas, ainda assim, convém comparar essa mão-de-obra com a que labora nas empresas de capital local.
2) A ideia de que os baixos preços dos artigos produzidos na China se devem só aos baixos custos da força de trabalho chinesa é errada. Por que será que as companhias transnacionais não se estabelecem no Haiti?
Em primeiro lugar, é necessário não perder de vista que, como eu preveni neste artigo, «para níveis idênticos de qualificação da força de trabalho, de condições de infra-estrutura e de potenciais subcontratantes, é a cotação dos salários em dólar que determina a escolha do lugar onde implantar uma filial. No entanto, a cotação em dólar não permite aferir o grau de exploração, porque não corresponde ao valor real do salário no país onde é pago […]».
Em segundo lugar, o crescimento da produção na China tem-se devido sobretudo ao aumento da produtividade do trabalho. Se tiver interesse numa análise mais detalhada do problema, remeto-o para http://passapalavra.info/?p=28241 .
Em terceiro lugar, é necessário saber que existem lobbies muito poderosos, juntando patrões e sindicatos, que pretendem erigir barreiras proteccionistas em defesa dos sectores industriais menos produtivos. São estes lobbies que difundem a tese de que o baixo custo dos produtos exportados pela China se deve apenas a salários miseráveis, como álibi das dificuldades de modernização de certas empresas dos países importadores.
3) Quanto à relação entre o sistema educacional e o crescimento económico nos países em desenvolvimento, não consigo discorrer brevemente, como me pede, porque a questão é muitíssimo complicada. Numa série de artigos sobre a economia brasileira actual que começarei em breve a publicar neste site tentei abordar a questão a respeito do Brasil, insistindo sobretudo na clivagem que se observa entre, por um lado, o ensino básico e fundamental e, por outro, a Pesquisa e Desenvolvimento.
Para terminar, você pede-me que indique textos. Como eu acho que sem conhecimento da base empírica as discussões teóricas degeneram em escolástica, recomendo sempre que se comece pelos World Investment Reports. As minhas análises inserem-se na tradição marxista, e Marx prendeu elaborar conceitos operativos. Lamentavelmente, desde há algumas décadas aquilo que corre com o nome de economia marxista transformou os conceitos operativos em categorias lógicas e, assim, abandonou a análise da realidade e começou a proceder a exercícios de dedução. Com poucas excepções, o marxismo encontra-se hoje na mesma situação a que os escolásticos levaram a filosofia de Aristóteles. A generalidade do marxismo retrogrediu para uma era pré-galilaica.
Logo de cara, há um erro fundamental no artigo: adotar estatísticas oficiais sem questionamento.
Quanto você pega a renda per capta de um país, ou o salário médio de um determinado setor, ignora a DISTRIBUIÇÃO destes rendimentos. Ignora, ainda, as falhas e critérios metodológicos, em favor apenas de uma média aritmética.
Portanto, se você observa que o salário médio de empregados das empresas multinacionais é superior ao das empresas nacionais privadas (se é que existe alguma grande empresa privada com capital 100% nacional no Brasil), esquece que o salário de operários chega a ser de menos de 1/1000 do salário dos diretores, que ainda por cima gozam de viagens, escritórios, mansões, meios de transporte e até de prostitutas de luxo pagas pela companhia (o que é também um meio de expropriar os pequenos acionistas de modo legalizado). O setor financeiro possui a maior média salarial da economia brasileira, e o site Carta Maior cometeu o mesmo erro que o João Bernardo, em um artigo sobre o assunto, nivelando os humildes faxineiros ao mesmo nível dos poderosos executivos. As empresas brasileiras sem capital estrangeiro são geralmente pequenas, às vezes até microempresas familiares, que óbviamente não mantém executivos, pois operam de maneira artesanal, pré-capitalista, com baixa produtividade e, é claro, baixos salários. Por outro lado, não é incomum que as poderosas empresas multinacionais se utilizem de terceirizações e contratos de trabalho informais (sem carteira assinada), o que significa que apenas uma parte, e geralmente a mais privilegiada, da força de trabalho explorada pelas empresas multinacionais é contabilizada na sua folha de pagamento. Em outras palavras, a estatística não é de todo confiável, como, ademais, todas as estatísticas oficiais. Experimentem pensar em como a real dimensão da desigualdade social é distorcida, nas estatísticas e estudos oficiais, pela sonegação fiscal, uso de “laranjas” e evasão fiscal…
Também seria interessante se os tais “argumentos nacionalistas” ou mesmo a “generalidade do marxismo” são algum grupo de autores reais, a quem se possa citar, ou se são apenas algo parecido com um mito político, que é construído verbalmente com a finalidade de ser “o outro”, ou enfim, um saco de pancadas que é ridículo e estúpido o suficiente para perder todas as discussões, e … inexistente demais para responder a qualquer objeção.
Além de tudo isso, não deixa de ser esquisito essa verdadeira panfletagem à favor das multinacionais. Coisa muito curiosa, não se fazem mais anarquistas como antigamente!
Pessoal,
não sei se vocês já notaram, mas as tabelas ficaram deformadas com a reformulação do site.
Confiram aí.
A fé não se destrói com argumentos, e o nacionalismo económico é uma fé. Mas, para os leitores que estiverem interessados em raciocinar, é interessante saber que o Instituto Nacional de Estatística português publicou hoje dados que confirmam a análise a que procedo neste artigo. Cito uma parte da notícia do Observador, com o título «Filiais estrangeiras pagaram mais 39,9% do que empresas nacionais em 2020»:
«Os trabalhadores de filiais de empresas estrangeiras em Portugal ganharam em 2020, em média, mais 39,9% do que os das sociedades nacionais, atingindo 1.414 euros, revelam dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados esta quinta-feira.
«No mesmo período, a produtividade aparente do trabalho (medida pelo valor acrescentado bruto gerado por cada unidade de pessoal ao serviço) foi superior em 73,1% à observada nas sociedades nacionais, atingindo 42.225 euros.
«Em 2020, existiam 9.101 filiais de empresas estrangeiras em Portugal (+1,6% face a 2019), correspondendo a 2% do total das sociedades não financeiras.
«As filiais estrangeiras empregavam em 2020 cerca de 571 mil pessoas, representando 17,8% do total de trabalhadores das sociedades não financeiras. Em termos médios, cada filial empregava 63 pessoas em 2020, valor muito superior ao das sociedades nacionais (6 pessoas).
«Entre 2010 e 2020, as filiais estrangeiras registaram, em média, uma produtividade aparente do trabalho superior em 18,2 mil euros à média das sociedades nacionais, sendo a remuneração média mensal sempre superior nas filiais estrangeiras, em média mais 395 euros do que nas sociedades nacionais.
«Por dimensão, a diferença entre empresas nacionais e sucursais estrangeiras é ainda mais significativa, segundo os dados do INE, atingindo 47.941 euros e 2.146 euros, respetivamente, superior em 195% e 163,8% à das sociedades nacionais.
«O INE ressalva estes indicadores estão mais próximos quando se comparam filiais estrangeiras e sociedades nacionais de grande dimensão (+15,6% e +7,6%, respetivamente, nas filiais face às sociedades nacionais).
«O peso das filiais de empresas estrangeiras no valor acrescentado bruto (VAB) passou de 21,9% em 2010 para 27,9% em 2020, registando-se aumentos de 0,9 pontos percentuais nos dois últimos anos.
«O volume de negócios das filiais estrangeiras, que representava 24,1% em 2010, atingiu 28,2% em 2020, verificando-se situação semelhante em relação ao pessoal ao serviço, que representava 13,7% em 2010 e passou para 17,8% em 2020, segundo o Instituto.»
João, não me lembro agora se em seus escritos você dá algum papel ao conceito de imperialismo, interpretando-o pelas relações de produção e pela luta de classes, ou se o descartou totalmente por considerá-lo um conceito específico das concepções nacionalistas, dependentistas, etc. Poderias abordar rapidamente essa questão?
Saudações.
Irado,
Estou longe e, de qualquer modo, sou um mau leitor dos meus livros. Mas creio que abordei esse assunto num dos volumes do Marx Crítico de Marx e talvez também no Economia dos Conflitos Sociais. Não me lembro se em qualquer outro lugar.
A partir do momento em que proponho o modelo de uma mais-valia produzida pelo conjunto dos trabalhadores e apropriada pelo conjunto dos capitalistas, o habitual modelo geopolítico de imperialismo deixa de funcionar.
Mas se você estiver interessado em que eu desenvolva este raciocínio, poderei fazê-lo na próxima semana.
João, não tenho dúvidas sobre o caráter obsoleto do conceito nacionalista de imperialismo. A minha dúvida era de fato se você desenvolve uma noção de imperialismo com base nas relações de produção. Quando tiveres tempo de desenvolver essa ideia rapidamente, eu agradeço.
Saudações
Irado,
Você pergunta-me se eu desenvolvo uma noção de imperialismo com base nas relações de produção. Muito rapidamente, vou limitar-me a expor o que seriam os passos do meu raciocínio.
1) Como já disse, a partir do momento em que proponho o modelo de uma mais-valia produzida pelo conjunto dos trabalhadores e apropriada pelo conjunto dos capitalistas, o habitual modelo geopolítico de imperialismo deixa de funcionar.
2) Aliás, eu aplico a noção de imperialismo somente às empresas. Aplicada a Estados, deveria chamar-lhe expansionismo, que foi característico do mercantilismo. A confusão que os marxistas geralmente fazem entre ambas estas realidades confirma a sua propensão pelos modelos mercantilistas, especialmente visível no caso do dinheiro. Alguns exemplos ilustrativos:
– O capital de origem nipónica conseguiu desenvolver algumas das transnacionais mais poderosas do mundo, sem que a economia nacional japonesa prosperasse do mesmo modo.
– A China conseguiu uma rápida expansão imperialista com base em investimentos externos e em créditos externos.
– A Rússia, pelo contrário, revela-se incapaz de qualquer dinamismo económico capitalista e tem de recorrer a uma guerra de conquista na Ucrânia, praticando não um imperialismo, mas um expansionismo arcaico.
3) Se a mais-valia é produzida pelo conjunto dos trabalhadores e apropriada pelo conjunto dos capitalistas, então a globalidade dos capitalistas de um país não se apodera da mais-valia produzida pelos trabalhadores de outro país. O que ocorre é uma desigual distribuição da mais-valia no interior das classes capitalistas (burgueses e gestores), estando uns capitalistas em situação preferencial nessa desigual distribuição.
4) A noção de aristocracia do proletariado baseia-se na noção de que um país se apropria globalmente da mais-valia produzida noutro país. Esta noção é desmentida pelos factos:
– Dou novamente o exemplo a que sempre recorro. A Suécia e o Haiti têm praticamente a mesma população, 10,5 milhões no primeiro caso e 11,4 milhões no segundo caso, sendo o PIB per capita (em dólares correntes) de 59.540 na Suécia em 2021 e de 1.430 no Haiti no mesmo ano. Sucederá, então, que os trabalhadores suecos constituam uma aristocracia do proletariado? Se assim fosse, como explicar que os investimentos externos directos afluam à Suécia, onde (em dólares correntes) foram de 52.682.010 em 2021, e não ao Haiti, onde se limitaram a 51.299 na mesma data? Por que motivo os capitalistas de todo o mundo preferem pagar mais aos trabalhadores suecos do que pagar menos aos haitianos?
5) Por detrás da noção de aristocracia do proletariado está a ignorância dos mecanismos da mais-valia relativa. Regressando ao exemplo anterior, os trabalhadores suecos, em média muito qualificados, capazes de um trabalho complexo e intensivo, e laborando em condições de alta produtividade, são muito mais explorados do que os trabalhadores do Haiti, pouco qualificados e vocacionados para ofícios pouco complexos e pouco produtivos. Em termos de tempo de trabalho, os trabalhadores suecos, comparados com os haitianos, podem trabalhar menos horas medidas pelo relógio, mas essas horas de trabalho complexo equivalem a muitas horas de trabalho simples. Por outro lado, a remuneração recebida pelos trabalhadores suecos permite-lhes adquirir bens e serviços em quantidade muitíssimo superior aos comprados pelos haitianos; mas, como se trata de bens e serviços produzidos com alta produtividade, cada um deles incorpora um tempo de trabalho muito mais reduzido do que os bens produzidos no Haiti. É por estes dois motivos que os trabalhadores suecos são mais explorados do que os haitianos.
6) Contrariamente à noção habitual, o mecanismo dinamizador da expansão imperialista é a exploração da força de trabalho no país de onde partem os investimentos. Alguns factos históricos:
– Aquelas empresas europeias que no final do século XIX se estabeleceram em África não conseguiram ser rentáveis, a tal ponto que tiveram de passar a sua exploração para a tutela dos respectivos Estados. Não conseguiram ser rentáveis apesar de pagarem salários de miséria? Não. Foi precisamente porque pagavam salários de miséria que elas não eram rentáveis. Não é com baixos salários que se consegue desencadear o processo da mais-valia relativa, e só o crescimento da mais-valia relativa assegura a dinâmica do capital. O exemplo extremo é o que sucedeu com o Congo de Leopoldo II, rei dos Belgas, que uma exploração sanguinariamente absurda levou à falência, tendo o Estado belga que arcar com a despesa e o investimento.
7) O que resta por explicar no imperialismo é o motivo por que, na maior parte dos casos, as elites dos países mais pobres não conseguiram modernizar a economia e desenvolver a mais-valia relativa. Como sempre na História, só se avança através do estudo comparado e neste caso pode ser decisivo o exemplo da Coreia. Tratava-se de um país secularmente colonizado, repartido entre as áreas de influência chinesa e japonesa, e que no século XX, com o declínio da China, o militarismo nipónico ocupou, espoliou e humilhou. Como se não fosse suficiente, pouco depois de terminada a segunda guerra mundial a Coreia foi palco de outra guerra. Apesar de tudo isto, a Coreia do Sul conseguiu modernizar a economia e qualificar a força de trabalho, a ponto de algumas das suas empresas se encontrarem entre as principais transnacionais em todo o mundo. Porquê?
-> “Porquê?”
a) – Porque fez a reforma agrária.
b) – Porque estatizou o sistema financeiro.
c) – Porque investiu em produtos de alta tecnologia, por conseguinte envolvendo também alta produtividade, sempre através de parcerias de cunho público-privado.
d) – Porque combinou extração de mais-valia relativa com uma brutal mais-valia absoluta (longa jornada de trabalho, sem férias e descanso semanal, sem salário mínimo, proibição de sindicatos e greves).
e) – Porque foi beneficiada pelos interesses geopolíticos do Capital com sede nos EUA.
🧐 Ou: embora todas as opções indiquem fatores importantes, o principal deles não foi incluido. E como uma pergunta (“Porquê?”) deve levar a outra: qual seria este fator?
Resposta? Deve ser buscada nas características da classe capitalista dos gestores na Coreia do Sul, e em como ela está articulada aos gestores transnacionais.
despoletado, arkpterix irou-se;
se irado arkepterixar-se, sabereremos todos quantos among fazem um between &/ quantos between cabem num among
outubro ou nada
no verão, veremos
Ulisses tem uma fixação por minha peçonha… Nem arkpterixei-me, nem ulissessei-me. Na realidade, estou bastante satisfeito com a resposta João. Tenho pleno acordo com toda a formulação, mas uma dúvida. Expansionismo neste caso se refere apenas ao avanço direto sobre um território, uma invasão, ou também a uma ampliação da esfera de influência geopolítica, pelos mais diversos meios? Por exemplo, os famosos incentivos financeiros-militares dos EUA pelo mundo, como aqueles referentes à instauração das ditaduras latino-americanas – o caso clássico do conceito nacionalista de imperialismo. Interessante que a Teoria Marxista da Dependência afirma peremptoriamente que economias “dependentes” jamais se desenvolverão pela via da mais-valia relativa, como os “países centrais”. Me parece que o caso coreano é a refutação desta tese. Em sua formulação você não lançou mãos dos conceitos de Estado Restrito e Estado Amplo, mas eles estão lá. O ER só pode realizar o expansionismo, cabendo o imperialismo ao EA, representado pelas grandes corporações transnacionais. Também fica implícita a refutação da tese dos “decoloniais”, para quem o capitalismo se edificou com base numa “acumulação primitiva” garantida pela espoliação colonial das Américas e da África, principalmente. Com um só golpe eles acabam com a luta de classes e a diluem em uma geopolítica colonialista, transformando a Europa em um bloco unificado, sem contradições de classe, sendo todos os europeus igualmente responsáveis pelos horrores da colonização.
Saudações.
Desenfatizando-se a fórceps, surge um irônico ex-irado? Nunca de núncaras ou tampouco por isso.
Presume-se que há coisas que um peçonhento não deve fazer: morder a própria língua, por exemplo…
Irado,
Proponho o termo expansionismo para as formas arcaicas, de matriz mercantilista, por exemplo a invasão da Ucrânia pelas tropas da Federação Russa. Como Putin não tem possibilidade económica de imitar a China e lançar uma teia estritamente baseada em investimentos e créditos, recorre à velha conquista.
Quanto à possibilidade, ou não, de modernizar economicamente os países ditos dependentes, se eu estivesse a escrever sobre o assunto tomaria como ponto de partida o estudo comparado de dois casos. Por um lado, a Coreia do Sul, como referi; por outro, aquele país que já se chamou Zaire. País infeliz entre todos e vítima de um humor macabro nas denominações, porque se chamou Estado Livre do Congo quando foi uma propriedade privada do rei Leopoldo II — livre de quê e de quem? — e agora se chama República Democrática do Congo — que exemplo de democracia! Ora bem, na época em que o país se chamava Zaire e era governado, aliás, desgovernado por Mobutu, ele recebia subsídios americanos em quantidades colossais, devido às conveniências da Guerra Fria. Mas todos esses dólares foram engrossar na Suíça as contas bancárias de Mobutu e nada foi investido no país. Depois colocaria lado a lado o Brasil e a África do Sul, ambos governados por antigos sindicalistas e ambos dispondo de uma base industrial de partida. Compare-se e tiremos conclusões. Em seguida, mas já não em termos comparativos, estudaria a Nigéria e a forma como os lucros do petróleo são canalizados para o exterior e não investidos internamente. É sempre fácil culpar O Outro, que neste caso se chama americano ou europeu ou qualquer nome feio, quando o problema reside sobretudo nas elites locais e nas sociedades locais. É nestas que o estudo deve incidir.
Quanto à acumulação que propiciou a expansão imperialista da Europa e se deveu, na minha opinião, à mais-valia extorquida aos trabalhadores europeus, eu tratei do assunto no Democracia Totalitária (São Paulo: Cortez, 2004) págs. 41-62; mas sobretudo para insistir em dois aspectos. Antes de mais, no facto de na Índia e em África as empresas capitalistas terem pela primeira vez exercido plenamente uma soberania, o Estado Amplo. Depois, para mostrar que a exploração colonial não foi rentável durante muitas décadas porque as populações resistiam a transformar-se em proletários assalariados; preferiam pagar o imposto em géneros do que pagá-lo em moeda, já que teriam de se assalariar para obter essas moedas. É curioso que tanta gente da chamada esquerda prefira ignorar os mecanismos económicos reais e onde se centrou a acumulação, em vez de focar o interesse naquela enorme resistência social ao assalariamento. Talvez esta ignorância e este desinteresse pudessem ser objecto de um interessante estudo…
Para terminar, e no caso de você não ter a hostilidade à ficção que parece caracterizar a esquerda que por aí há, aconselho-lhe a leitura de um romance de Alain Mabanckou, African Psycho. O autor é franco-congolês (do outro Congo) e o original francês existe também traduzido em inglês.
Tens razão, bravo Ulisses, como sempre. Aliás, seu domínio linguístico é realmente impressionante, verdade seja dita. Invejável até, eu diria. No entanto, lembre-se do que advertiu José Lins do Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito de Porco: “A língua, dialética mente é, também, o chicote do cú”…
TO BE OR NOT TO BE?
Ironia enfática ou ênfase irônica? Questão dilemática, oximorosa & proctofilosófica que aflige neobolcheviques linguarudos tentando (inadvertidamente?) o suicídio.
Hostilidade alguma à ficção João, pelo contrário, grato pela indicação. Já li seu texto sobre a colonização da Democracia Totalitária, muito elucidativo por sinal, especialmente diante do atual cenário “decolonial”. Os demais exemplos só confirmam ainda mais a contramão histórica que essa gente está seguindo…
Ulisses, “neobolchevique linguarudo” eu gostei, entrou na enorme lista de bobagens que já disseram sobre mim, especialmente quem já não sabia mais o que fazer com a própria língua… mas, com suicídio não se brinca, saiba a hora de parar…
de te fabula narratur
o peçonhento mordeu a própria língua
Ulisses, posologia : assitir 3 x ao dia…
https://youtu.be/LBZiqoPojSQ
VERBATIM
sine ira et studio
João, vc cita a invasão russa à Ucrania como exercício de um expansionismo capitalista retrógrado.
Bem, e a invasão americana ao iraque? Como encaixar nesse contexto?
Da mesma forma.
‘Como Putin não tem possibilidade económica de imitar a China e lançar uma teia estritamente baseada em investimentos e créditos, recorre à velha conquista.’
Se é da mesma forma, tambem devemos considerar que os EUA não teriam condições de lançar uma teia de IED’s sobre os territórios invadidos? EUA e Russia não aparentam estar no mesmo estágio econômico..
A lição que se tira de toda a troca de conhecimento que rola nas conversas com o “outro”: Enquanto a gente não “se” e “o” entende o capitalismo (“heterogestão”) continua vencendo e a revolução fica mais longe. Aprendemos com a experiência histórica ou nada virá de novo…
EUA e Rússia não estão no mesmo estágio econômico. Mas, a Rússia invadiu a Ucrânia, o assunto é outro. Quando os EUA invadem um país, estão sendo expansionistas, idem para a Rússia, isso independe do “estágio” econômico… Iraque invadiu o Kuwait, mesmo sem estar no “estágio” econômico dos EUA. Alhos e bugalhos nada tem a ver um com o outro…
PAPO RETO
sem bronca e sem caô
[tradução de
VERBATIM
sine ira et studio]
para manos e minas das quebradas
Aos últimos comentadores, vou tentar responder tão sinteticamente quanto possível.
1) A Federação Russa invadiu militarmente um país independente, a Ucrânia, com o objectivo de o anexar. Os Estados Unidos invadiram um país independente, o Iraque, numa intervenção militar de relativamente curta duração, para mudar o regime (refiro-me aqui somente à segunda intervenção americana), sem nenhum intuito de anexação. O expansionismo arcaico russo contrasta com o imperialismo chinês, que usa as formas capitalistas modernas do investimento e do crédito, sem recorrer a intervenções militares nem se preocupar com as características políticas dos regimes dos países onde investe.
2) A intervenção militar dos Estados Unidos no Iraque foi mal preparada e mal conduzida, tendo resultados contrários àqueles que os governantes americanos pretendiam. Creio que mesmo os historiadores do futuro, quando tiverem acesso à documentação, terão dificuldade em propor uma explicação lógica para aquele absurdo.
a) O regime do Partido Ba’ath inseria-se na tradição fascista, muito forte nos países árabes. Sobre este assunto, remeto para o meu Labirintos do Fascismo.
b) O Iraque tinha conduzido uma guerra contra o Irão, ao serviço dos interesses dos Estados Unidos.
c) Os Estados Unidos pareciam — e sublinho pareciam — dispor dos meios económicos para, através das suas empresas petrolíferas, controlarem o Iraque, sem para isso precisarem de recorrer a uma intervenção militar.
d) Politicamente, a intervenção militar americana lançou o caos no Iraque e não conseguiu fomentar a criação de um regime com instituições estáveis.
e) Economicamente, a intervenção militar americana perturbou enormemente a exploração petrolífera no Iraque, que baixou muitíssimo.
f) Geopoliticamente, a intervenção militar americana obteve exactamente o contrário do que pretendia, porque deixou o Iraque sob a dependência directa do Irão.
3) A aventura dos Estados Unidos no Iraque confirma uma grande lição, a de que no capitalismo os meios puramente políticos, e, portanto, militares, são incapazes de se opor às grandes tendências económicas.
4) Assim, a guerra do Iraque confirmou o agravamento do declínio dos Estados Unidos como potência mundial, que se tornara já visível quando haviam sido derrotados na Guerra do Vietnam.
5) Este declínio dos Estados Unidos agravou-se ainda mais na administração Trump, e agora na administração Biden, que recorrem a medidas de carácter político para se opor à expansão económica chinesa e à concorrência económica chinesa. Quando um país recorre a medidas políticas para se opor à concorrência económica de outro país, isto significa que a sua capacidade económica não é suficiente para enfrentar a concorrência e que, portanto, ele está em declínio económico.
6) Ora, como está localizada nos Estados Unidos grande parte das principais empresas transnacionais, isto significa que as empresas transnacionais podem prosperar e expandir-se sem que se reforce nas mesmas proporções a economia do país onde têm a sede. Esta cisão entre grandes empresas transnacionais e economias nacionais é um dos principais factores que deve ter-se em conta se quiser entender-se o jogo dos imperialismos contemporâneos.
A invasão da Ucrânia (embora seja de fato uma invasão) não tem a mesma característica da invasão do Iraque pelos EUA ou a destruição da Iuguslávia e da Líbia pela OTAN. Neste sentido a guerra na Ucrânia é muito mais complexa, inclusive quanto às suas consequências.
Mas deixemos as idiossincrasias de lado, o mais importante aqui é:
-> “Esta cisão entre grandes empresas transnacionais e economias nacionais é um dos principais factores que deve ter-se em conta se quiser entender-se o jogo dos imperialismos contemporâneos.”
Eis a questão! Para buscar a resposta um dos caminhos é aplicar a teoria da “classe capitalista dos gestores”, sendo também uma forma de testar esta teoria num caso concreto.
A pesquisa comparada sobre China, Taiwan, Coréia do Sul e Brasil mostra como os interesses econômicos diretos, e geopolíticos indiretos, determinam o tipo, e os limites, do processo de desenvolvimento (mais exatamente de industrialização) dos países.
Ao contrário de China, Taiwan e Coréia do Sul, os interesses econômicos no Brasil são focados, desde o período abertamente colonial, em produtos primários.
O alto grau de rentabilidade obtido pela burguesia no Brasil, seja a local ou o sócio majoritário transnacional, não exige a presença de gestores capazes de elevar a economia ao nível de produção com alto valor agregado.
O Brasil poderia ser exportador de equipamentos para café expresso, mas continua estacionado na venda do grão. Ao invés de produzir ração de alto teor nutritivo, exportamos soja in natura.
Todo este modelo entra agora numa fase instável, não só por conta da crise sistêmica do Capitalismo, como também, e principalmente, por causa das mudanças climáticas. O agro ficará insustentável, apesar de dos diversos subsídios e mesmo com seu amplo conjunto de negócios paralelos e ilegalizados.
A burguesia no Brasil encontrará seu beco sem saída, provocando a ascensão dos gestores.
Este processo já hoje transcorre através da intensa, rápida e desenvolta política externa do governo Lula.