Por João Lucio Mazzini da Costa [*]

 

No início do governo da Presidenta Dilma, em janeiro de 2011, o núcleo governante operou a devolução do Arquivo Nacional da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Justiça. A transferência não foi precedida de discussões com a comunidade arquivística brasileira e a sociedade civil. Existe a possibilidade de que o motivo seja o problema da documentação do período da ditadura militar. Dois indícios são fortes: o primeiro, a crise decorrente das limitações impostas ao acesso aos documentos do Centro de Referência “Memórias Reveladas” [1]. O segundo, as críticas da imprensa a respeito da negação do acesso ao prontuário da então guerrilheira urbana e posterior candidata à presidência do Brasil, Dilma Rousseff, que está sob a responsabilidade do Arquivo Nacional.

Se a Casa Civil, onde até então o Arquivo Nacional (AN) estava sediado, não conseguiu implantar uma política para os arquivos brasileiros [2], a devolução para o Ministério da Justiça demonstrou para os profissionais da área que o Estado brasileiro enxerga os arquivos como órgãos periféricos à administração, não os considerando como instrumento de planejamento, pois os arquivos como depositórios da massa informacional têm potencial para fornecer subsídios para a elaboração de políticas públicas pelos que os consultam. O Estado também não dá a devida importância para a memória nacional e mantém documentos históricos depositados nos locais mais impróprios para sua conservação e, por fim, o que é terrível, contribui para dificultar o acesso dos cidadãos às informações, que é direito e garantia fundamental do homem e cidadão [3].

Diante da ameaça da transferência do AN para o Ministério da Justiça, que seria consumada posteriormente por meio do Decreto nº 7.430, de 17 de janeiro de 2011, da Presidência da República, surge o movimento contrário. No início localizado apenas no Rio de Janeiro, sede do AN, e que contou posteriormente com a participação das demais regiões brasileiras para obstar tal ação. O movimento desenvolveu no Brasil mesas redondas, abaixo-assinados, notas em jornais, entre outras, alcançando repercussão proporcional à sua força.

Todavia a característica principal que tiveram, a nosso ver, é que foram limitadas e sem uma articulação nacional que demonstrasse a força do movimento e que buscasse alianças com outros movimentos sociais. Salvo melhor juízo, a principal reivindicação era a manutenção do Arquivo Nacional na Casa Civil. Tal visão de movimento a partir do Rio de Janeiro não colocou na pauta de reivindicações dois assuntos que são fundamentais para a democratização do Brasil, a saber: o fim do sigilo eterno dos documentos e a imediata abertura de todos os arquivos da ditadura militar e tão pouco procurou os servidores do Arquivo Nacional para incorporarem suas reivindicações às suas demandas.

Um fato pitoresco demonstra bem a força do movimento: estava programada uma entrevista com a senhora Celina Vargas do Amaral Peixoto, na rádio CBN do Rio de Janeiro; tal ação foi alardeada pelas redes sociais da área de arquivos e, no dia e hora determinados, a entrevista não ocorreu. Segundo o que se sabe, questionada a direção da rádio CBN dos motivos do cancelamento, respondeu que o problema do pagamento dos estacionamentos nos shoppings era mais importante do que o Arquivo Nacional.

Todavia, a mobilização teve ressonância e a administração federal teve de dar respostas ao movimento, que era legal e justo. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, quando da visita ao Arquivo Nacional, localizado no estado do Rio de Janeiro, ainda no mês de janeiro do corrente, recebeu as lideranças nacionais (?) do movimento bem como as lideranças dos servidores do AN que foram apresentar suas reivindicações salariais bem como a pauta propondo democratização do AN. Os funcionários alegam que sofrem perseguições políticas e trabalhistas!

Tal reunião em separado demonstrou a total divisão do movimento. De um lado, os acadêmicos e diretores de algumas instituições federais, estaduais e municipais das entidades arquivísticas que têm sede na cidade do Rio de Janeiro; e de outro os trabalhadores do AN; no meio, o governo federal.

Nesta reunião as lideranças do Rio de Janeiro falaram ao Ministro a importância do Arquivo Nacional se manter na Casa Civil e não tocaram nos dois pontos que são primordiais, os documentos da ditadura e a necessidade de acabar com o sigilo eterno dos documentos sob a responsabilidade do governo federal. É incrível! Documentos da guerra do Paraguai, até hoje, estão indisponíveis para os brasileiros.

O Ministro, para ganhar tempo, pois acredito que não tinha propostas para as reivindicações, propôs aos reivindicantes duas ações: que o Ministério da Justiça fizesse um encontro nacional para discutir uma política arquivística para o país e que no prazo de um ano criasse um plano de cargo e remuneração aos trabalhadores do AN. Dito e feito, os protestantes saíram deste encontro felizes com as promessas. Passados seis meses, e aí? Resultado: a parca mobilização foi desmobilizada pelos líderes nacionais (?) que, no afã de se mostrarem aptos a dobrar a espinha, resolveram domesticar o movimento e estabelecer a hegemonia nacional sobre os escombros que ficaram da tal transferência. Então vejamos:

Para concretizar este entendimento, o MJ nomeou uma comissão para elaborar o projeto da I Conferência Nacional de Arquivos (CNARQ) e outra para elaborar o plano de cargos e salários para servidores do AN. Aí as coisas começaram a desandar! Quando da nomeação dos indicados para compor a primeira comissão, vejam bem, só tinha representantes do estado do Rio de Janeiro. Tal acontecimento demonstrou para aqueles de fora do “centro” que viria pacote. Dito e feito: veio!

O projeto é elitista, pois determina que, para ser delegado à conferência nacional, o candidato, no ato da inscrição na conferência regional, deve informar tal desejo. Nos perguntamos, para quê? O projeto é ainda preconceituoso com a Amazônia, pois determina que a região só tenha 09 delegados, isto é, 10% do total de delegados distribuídos pelas regiões do país. A justificativa para tal quantidade de delegados é que a região tem poucos bacharéis em arquivologia e cursos superiores na área. A justificativa é tosca, pois os Arquivos não são de propriedade dos bacharéis em arquivologia e nem eles conhecem a realidade da região.

Através de articulações, não só nossas, o projeto da Conferência foi colocado em consulta pública [4]. Ora, enquanto pensávamos que a consulta pública apresentaria ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) as contribuições recebidas para decisão das mudanças que ocorreriam, qual não foi nossa surpresa ao receber a informação de que a comissão que elaborou o projeto também ficou encarregada de recolher as contribuições e fazer as considerações finais. Novamente golpe do pessoal do RJ! Eles modificaram o que quiseram e determinaram o projeto que foi apresentado ao Conarq para aprovação.

Aprovado como a comissão do Rio de Janeiro assim determinou, ao menos foi o que nos apareceu, para nós que vivemos na periferia do sul maravilha, fica a questão que teremos de responder brevemente: devemos participar de tal reunião? Ela é importante para nós amazônidas? Se participarmos, quais devem ser as nossas reivindicações? Não é melhor fazermos a nossa reunião e mandarmos para os nossos deputados federais e senadores as nossas propostas, para serem apresentadas como projetos de lei no congresso?

O consenso a que chegamos, após longas conversas, é que devemos participar do congresso com as nossas reivindicações e mandar as nossas propostas para o congresso nacional. Em virtude disto foi montada uma comissão na região para elaborar nosso manifesto que será apresentado na conferência bem como aos nossos deputados e senadores.

Aceitada a premissa de que devemos participar, foi discutido como deveríamos nos portar na tal conferência? Umas defenderam agir como os personagens do filme do cineasta italiano Mario Monicelli “L’Armata Brancaleone”; outros, que procurássemos a unidade do movimento desde que aceitassem a nossa principal reivindicação: uma sede regional do Arquivo Nacional na Amazônia.

Portanto, vamos participar da reunião procurando um entendimento; todavia, sabemos que as reivindicações dos trabalhadores do Arquivo Nacional não foram incorporadas ao conjunto de assuntos que serão debatidos, e nós achamos que uma política democrática para os arquivos nacionais passa necessariamente por um PCCR [Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração]. Então, estamos propondo, nós da Amazônia, uma aliança com os servidores do Arquivo Nacional para defendermos as suas e as nossas reivindicações.

Notas

[*] João Lucio Mazzini da Costa, paraense, graduado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA), pós-graduado em Museologia pela Universidade de São Paulo (USP). Funcionário da Secretaria de Cultura, exercendo o cargo de Técnico em Assuntos Educacionais, lotado no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e Professor da Secretaria de Educação. Membro do Grupo de Trabalho Colegiado de Arquivos do Conselho Nacional de Política Cultural – Ministério da Cultura. Publicou os seguintes livros: A História dos Trabalhadores do Livro e Jornal, 1995, Rei Congo, 2004 e Amazon River, 2009. Exerceu o cargo de Diretor do APEP de 2009 a 2010; em sua gestão o Arquivo foi premiado com a Comenda de Patrimônio da Humanidade.

[1] Centro de Referência “Memórias Reveladas” – O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado “Memórias Reveladas”, foi institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional com a finalidade de reunir informações sobre os fatos da história política recente do País.

[2] Política para os arquivos brasileiros – Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991.

[3] Direito e garantia fundamental do homem e cidadão – inciso XXXIII, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

[4] Consulta pública – O Conarq abriu consulta pública on line de 15/06 a 13/07. Foram enviadas 16 contribuições de todo o Brasil.

2 COMENTÁRIOS

  1. O Prof. João Lúcio está correto em suas afirmações. Devemos lutar por uma liberdade de acesso às documentações da história do país, pois sem isso não poderemos desenvolver trabalhos de pesquisa da maneira que queremos, principalmente nas áreas periféricas, onde para piorar, faltam recursos financeiros de apoio aos pesquisadores.

  2. Francisco Marcos Albano da Silva

    O Sr. Prof. João Lúcio Mazzini está tentando preservar o conceito de liberdade. O acesso a documentos que permita a pesquisadores e público geral, obter conhecimento sobre a memória dos acontecimentos de seu país, é um direito nobre, o qual não pode ser negado. É preciso “dobrar as espinhas” e limpar com retidão os porões da História do Brasil.

    Apoiado companheiro, a paz do Senhor.

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