A seguir, a primeira parta da tradução de um texto recém-publicado do Subcomandante Marcos. Veja aqui a segunda, e última, parte.

Boa leitura. Nádia, coruja vermelha.

TAL VEZ… (Terceira carta a Don Luis Villoro no intercâmbio sobre ética e política)

La Jornada, 27/08/2011.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.

MÉXICO. Julho-Agosto de 2011.

Para: Don Luis Villoro.

De: SupMarcos.

Don Luis:

Receba as saudações de tod@s nós e um forte abraço de minha parte. Esperamos que esteja melhor de saúde e que a pausa deste intercâmbio tenha servido para tentar novas colocações e reflexões.

Ainda que a realidade atual pareça precipitar de forma vertiginosa, uma reflexão teórica séria deveria ser capaz de congelá-la por um instante para assim descobrir nela as tendências que, ao revelar sua gestação, nos permitam ver para onde vai.

(E por falar em realidade, lembro que foi em La Realidad zapatista o lugar onde propus uma troca a Don Pablo González Casanova: ele deveria me fazer chegar um pacote de bolachas Pancrema, e eu deveria lhe enviar um suposto e improvável livro de teoria política – para chamá-lo de alguma maneira. Don Pablo cumpriu a parte dele, e o dilatado andar do nosso calendário tem me impedido de cumprir a minha parte do trato… ainda. Mas acredito que nas próximas chuvas haverá mais palavras).

Como, talvez, tem sido insinuado em nossa correspondência (e nas cartas daqueles que, generosos, têm aderido a este debate), a teoria, a política e a ética se entrelaçam em formas não muito evidentes.

Com certeza, não se trata de descobrir ou criar VERDADES, estas pedras de moinho que abundam na história da filosofia e de suas filhas bastardas: a religião, a teoria e a política.

Acredito que estaríamos de acordo em que nosso empenho aponta mais em tratar de fazer ressaltar as linhas não-evidentes, mas substanciais, dessas reflexões/ações.

Fazer descer a teoria à análise concreta é um dos caminhos. Outro é ancorá-la na prática. Mas nas cartas não se faz esta prática, se acaso se dá conta dela. Assim, acredito que devemos continuar insistindo em ancorar nossas reflexões teóricas nas análises concretas ou, com mais modéstia, tratar de estreitar suas coordenadas geográficas e temporais. Ou seja, insistir que as palavras são ditas (neste caso, se escrevem) de um lugar e em um tempo determinado. De um calendário e numa geografia.

I.O ESPELHO LOCAL.

O ano de 2011, Chiapas, México, o Mundo.

E nesses calendários e geografia, por aqui, continuamos atentos ao que acontece, ao que se diz e, sobretudo, ao que se cala.

Em nossas terras continuamos em resistência. Contra nós, continuam as agressões vindas de todo o quadro político. Somos um exemplo de que é possível que todos os partidos políticos tenham um mesmo objetivo. Patrocinados pelos governos federal, estadual e municipais, todos os partidos nos atacam.

Antes de cada agressão ou depois dela, há uma reunião entre funcionários governamentais e dirigentes sociais ou partidários. Fala-se pouco nelas, só o necessário para acordar o preço e a forma de pagamento.

Aqueles que criticam nossa posição zapatista de que todos os políticos são iguais, deveriam dar uma volta por Chiapas. Tenho certeza de que dirão se tratar de algo estritamente local, mas que não ocorre em nível nacional.

Mas na classe política chiapaneca se repetem, com seus toques autóctones, as mesmas rotinas ridículas dos tempos pré-eleitorais.

Há acertos de contas internos (do mesmo modo que nos grupos criminosos) que na classe política se disfarçam de justiça. Mas por toda parte se trata do mesmo: deixar caminho livre ao escolhido de turno. Tudo o que acontece embaixo é taxado de complô de um ou vários rivais. Tudo o que acontece em cima se deforma ou se cala.

Com a política de pagamento dos elogios da mídia, quando se trata de Chiapas não há nenhuma diferença entre a imprensa da capital do país e a da capital do Estado.

Alguém pode falar seriamente de justiça em Chiapas quando continua livre um dos responsáveis da matança de Acteal, cujo nome é Julio César Ruiz Ferro? Meu prefeito, não se preocupe, deixe que se matem, vou mandar a segurança pública tirar os mortos, respondeu o então governador de Chiapas, Julio César Ruiz Ferro, a Jacinto Arias Cruz, prefeito de Chenalhó, que o advertia sobre o iminente enfrentamento em Acteal em 19 de dezembro de 1997. (Maria de a Luz González, El Universal, 18 de dezembro de 2007).

E o que dizer do Bolachas pra Cachorro Roberto Albores Guillén, responsável pela matança de El Bosque, além de ter montado um império de crimes e corruptelas que agora lhe permitem colocar de escanteio Juan Sabines Guerrero e seu galo, o coleto Manuel Velasco, para voltar ao governo de Chiapas? (E por falar em galos, será que o lopezobradorismo vai prestar contas por ter ajudado a reciclar o pior da política priista chiapaneca?)

Ah, a velha rivalidade entre as vetustas classes políticas de Comitán, San Cristóbal de las Casas e Tuxtla Gutiérrez (certamente, seus antecedentes podem ser encontrados no livro de Antonio Garcia de Leon, Resistência e utopia: memorial de queixas e crônicas de revoltas e profecias ocorridas na Província de Chiapas durante os últimos quinhentos anos de sua história, na editora ERA da cativante Neus Espresate).

Enquanto proliferam as insinuações de tormenta na política do Chiapas de cima, Juan Sabines Guerrero parece continuar empenhado na linha que tantos fracassos proporcionou antes ao Bolachas pra Cachorro Albores: fortalecer grupos, paramilitares ou não, para que agridam as comunidades zapatistas; esperteza para esconder o auge de máfias criminosas com ou sem álibi de partido político; manter a impunidade para @s próxim@s; a simulação como programa de governo.

Uma imprensa local e nacional bem azeitada com dinheiro, não chega a ocultar, com o disfarce da unanimidade, a guerra intestina com a política de cima.

Particularmente isso, basta apontar quanto segue: já faz tempo que as regras internas da classe políticas estão quebradas. Os que ontem prendiam são os presos de hoje, e os perseguidores de hoje serão os perseguidos de amanhã.

Não é que não façam acordos, mas sim que não têm capacidade de cumpri-los.

E uma classe política que não cumpre seus acordos internos é um cadáver à espera de sepultura.

Não, a classe política de cima não entende nada. Mas, sobretudo, não entende o fundamental: seu tempo acabou.

Governar deixou de ser um ofício político. Agora o trabalho por excelência dos governantes é a simulação. Mais importantes do que os assessores políticos e econômicos, são os assessores de imagem, propaganda e técnica de mercado.

É assim que hoje se fabricam os governantes no México, enquanto as realidades locais, regionais e nacionais se despedaçam.

Nem os boletins governamentais disfarçados de reportagens e notas jornalísticas conseguem cobrir a crise econômica: nas principais cidades do Chiapas real começam a aparecer e a crescer a indigência e os trabalhos mais marginais. A pobreza que parecia exclusividade das comunidades rurais começa a crescer nas áreas urbanas do sudeste mexicano.

Justo como no resto do território nacional.

Parece que estou falando da política de cima em nível nacional e não local?

Ah, os fragmentos do espelho quebrado, irremediavelmente quebrado…

II. UM EPITÁFIO PARA UMA CLASSE POLÍTICA OU PARA UMA NAÇÃO?

Quando Felipe Calderón Hinojosa (presidente graças à culpa ora confessa de Elba Esther Gordillo), se disfarça de guia turístico para que não cheguem no México só policiais e militares norte-americanos, se aproxima ao Sótano de Las Golondrinas, em Aqusimón, San Luis Potosí, e exclama um ‘Oh my God!’ (http://mexico.cnn.com/nacional/2011/08/17/calderon-promueve-destinos-turisticos-em-el-programa-the-royal-tour), e poderia muito bem dizer o mesmo caso se aproximasse do poço em que o país mergulhou durante o seu mandato.

Segundo as estatísticas reveladas pelo Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (CONEVAL, pela sigla em espanhol) o número de pobres no México passou de 48,8 milhões para 53 milhões. Quase a metade da população mexicana vive em condições de pobreza. Quase 12 milhões de pessoas estão em condições de pobreza extrema.

E se alguém rever os mapas do próprio CONEVAL poderá se dar conta de que as manchas de pobreza, antes próprias dos estados do sul e sudeste do México (Guerrero, Oaxaca, Chiapas), começa a se estender aos estados do norte do país.

Os preços dos produtos básicos dobraram e triplicaram durante o mandato atual.

Segundo dados do Centro de Análise Multidisciplinar, para ter dinheiro suficiente para adquirir a cesta alimentar recomendada, no início do mandato de Felipe Calderón Hinojosa era necessário trabalhar 13 horas e 19 minutos por dia. Cinco anos depois, neste 2011, precisariam trabalhar 22 horas e 55 minutos.

Enquanto isso, os lucros dos milionários quadruplicaram nos últimos 10 anos.

Deveríamos somar a tudo isso as perdas de emprego por fechamento de postos de trabalho. Entre elas, o golpe criminoso contra o Sindicato Nacional dos Eletricitários. O ataque foi encabeçado pelo malvado ministro do trabalho Javier Lozano Alarcón (que será lembrado também pelas extorsões estilo gangster – Zhenli Ye Gon e os 205 milhões de dólares para a fraude eleitoral de 2006), e aclamado pelos grandes meios de comunicação de massa.

Com certeza, a gigantesca campanha publicitária contra os trabalhadores do Sindicato Mexicano dos Eletricitários (que inclui a ameaça de ações penais contra seus dirigentes), ao mesmo tempo em que os acusa de serem mais indolentes do que terrorista, deveria ser contraposto à realidade: se esses trabalhadores eram preguiçosos e inúteis, como é que havia luz elétrica na região central do país? Como é que funcionavam as TVs que agora os atacam, os jornais que os caluniam, as estações de rádio que os difamam? E as deficiências que agora, com a Companhia Federal de Eletricidade, são sofridas na maioria dos lares desta parte do México? E as novas contas que aparecem agora com quantias exorbitantes?

Mas a resistência desses trabalhadores não passa desapercebida. Não para nós.

E enquanto na economia nacional a crise mundial apenas se aproxima, a classe política, esta sim, continua em sua ociosidade.

O ano de 2012 chegou ao calendário de cima desde o 1º de dezembro de 2006, e ao longo desses 5 anos não tem feito outra coisa a não ser evidenciar que estes calendários não servem nem para decorar as paredes derrocadas da grande casa que ainda chamamos México.

No PRI, um Beltrones e uma Paredes fazem cálculos para afastar um Peña Nieto que se ocupou mais em fazer uma passarela de mídia (havia dinheiro) e pouco em fazer política (não tinha cargo).

No PRD, o casal descasado de López Obrador e Marcelo Ebrard começa a se dar conta de que o fundamental depende das burocracias partidárias da autodenominada esquerda institucional.

E no PAN do pesadelo nacional, um homenzinho enlouquecido com morte e destruição procura quem lhe cubra as costas quando os guardas presidenciais e o palácio nacional já não fizerem isso.

Ainda que o desprestígio e o desgaste do partido de governo seja grande, Felipe Calderón Hinojosa aposta, e forte, no uso de todos os recursos ao seu alcance para impor sua proposta. Como já fez isso em 2006, poderia repetir a dose em 2012. E precisará disso, porque suas cartas estão bem fracas: um Cordero que promete a seu pastor que continuar sendo isso mesmo; um Lujambio a espera de não receber a estocada da esteira de luz; um Creel para o qual o cinza cai bem (e o define); e uma Vázquez Mota cujo único argumento é ser mulher.

(Lembro de uma discussão quando Barack Obama e Hillary Rodham Clinton disputavam a candidatura presidencial. Algumas feministas pediam apoio a Hillary por ser mulher, algumas afro-americanas pediam para respaldar Obama por ser de cor. O tempo mostrou que lá em cima não contam nem a cor nem o gênero).

Enquanto isso, a matrona do bordel, Elba Esther Gordillo, tira as pétalas da margarida… e não descarta lançar a si mesma no lugar de apoiar alguém.

Com um panorama tão patético, é lógico, e até de se esperar, que surjam pré-candidatos externos… e pintassilgos que os acompanhem.

Na realidade, fora das camarilhas partidárias, do poder econômico e de alguma militância, a assistência governamental não parece interessar a ninguém.

A apatia vai sendo substituída pelo rancor, e não são poucos os sonhos nos quais, por fim, se acaba de sepultar o sistema político mexicano, e com mãos plebéias se lavra sobre o túmulo o epitáfio: fiz isso da maneira difícil, mas o jogo chegou ao fim.

Enquanto isso, a guerra continua…e com ela as vítimas.

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