A noção de empresa cidadã não é uma demagogia, porque com os seus programas ela enquadra e influencia populações inteiras. É esta a mais profunda base social do imperialismo. Por João Bernardo

O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.

Qualquer que seja a actuação dos governos, as grandes companhias definem uma orientação política própria, e fazem-no mais ainda nesta era de transnacionalização, em que a dispersão das cadeias produtivas e a fragmentação ou deslocalização das sedes começaram a cortar os últimos elos que podiam prender uma companhia ao país de origem. É por vezes difícil saber se a estratégia prosseguida por uma grande companhia transnacional é definida por ela e conta com o apoio das autoridades do país onde se situa a matriz ou se o processo é inverso e a companhia actua como um braço económico do governo.

brasil-8-aPor exemplo, a Petrobras dá prioridade à condução na América do Sul de um plano de integração energética regional na exploração do petróleo e do gás natural, e neste sentido tem orientado tanto as suas fusões e aquisições como os seus investimentos em projectos novos. Referindo-se a esta companhia e ainda à Odebrecht, Carlos Gouveia considerou que «para ambas as empresas […] a diplomacia governamental brasileira pode ser particularmente eficaz na intermediação de contratos que garantam benefícios locais». Mas na página seguinte o autor afirmou que «apesar da ausência de dados conclusivos, é razoável supor que a condição de estatal e o apoio político brasileiro às suas operações permitam que a Petrobras exerça uma considerável influência no próprio governo, validando assim a estratégia de lobbies […] com vistas a angariar recursos e obter vantagens competitivas […]» [1]. Quem toma aqui a iniciativa, o governo ou as companhias? Creio que a hesitação de Carlos Gouveia reflecte a ambiguidade da própria situação real, e a relação da Petrobras com o Estado brasileiro insere-se no capitalismo burocrático, tal como o descrevi noutro artigo desta série.

«Seria importante desenvolver dentro das empresas multinacionais brasileiras uma espécie de departamento de relações políticas internacionais (como já há para as relações institucionais ligadas ao mercado de ações e à mídia), com pessoal qualificado para entender e lidar com instâncias públicas dos países […] em que a empresa atue», advertiu Albino Pimentel [2]. Mas mesmo sem isso as companhias transnacionais de origem brasileira sabem lançar raízes e tecer redes nas sociedades onde investem.

Analisar as desigualdades sociais apenas através da distribuição dos rendimentos e definir as elites através da acumulação de fortunas é enganador, porque igualmente sintomática é a diferença na repartição do poder. Uma pessoa muito rica que seja apenas rentista ou especulador tem uma escassa importância social. Se quiserem saber quem é realmente importante averiguem quantas pessoas um empresário pode despedir [demitir] em todo o mundo ao determinar uma simples reorganização da sua firma. Quantas mais pessoas ele puder despedir, ou seja, quantos mais homens e mulheres tiver a trabalhar sob as suas ordens, mais elevada é a sua posição na hierarquia, quer seja um proprietário formal do capital (burguês) quer detenha o controlo prático sobre o capital (gestor).

De acordo com certas estimativas, em 2005 as companhias transnacionais empregavam nas suas filiais cerca de 62 milhões de trabalhadores, dos quais 7,4 milhões laboravam para as filiais de companhias transnacionais sediadas em países em desenvolvimento e em transição [3]. Por seu lado, segundo uma firma de auditoria e consultoria, as companhias transnacionais de matriz brasileira empregavam há poucos anos atrás 77.000 pessoas no exterior [4], e se em média a percentagem do pessoal estrangeiro no pessoal total destas companhias é menor do que nas principais companhias transnacionais sediadas nas economias em desenvolvimento, é natural que esta percentagem aumente com o crescimento dos investimentos directos [5] oriundos do Brasil. Veja-se o exemplo da Odebrecht, que em 2010 ocupava o quinto lugar na lista das companhias mais internacionalizadas organizada pela Fundação Dom Cabral e ocupava o quarto lugar na internacionalização da mão-de-obra, com 49% de funcionários no estrangeiro [6], correspondendo a «aproximadamente 69 mil em todo o mundo, segundo dados de junho de 2009» [7], sendo «um dos maiores empregadores em Angola» [8]. Estas companhias dispõem de um duplo poder, tanto pelo facto de assalariarem como de poderem deixar de assalariar e lançarem no desemprego.

brasil-8-cÉ enquanto empregadoras, directas ou indirectas, e neste caso mediante o recurso à subcontratação, que as companhias transnacionais lançam a rede nas sociedades em que se inserem. A este respeito interessa saber que, como informou o World Investment Report 2006, as companhias oriundas de países em desenvolvimento estabelecidas noutros países em desenvolvimento recorrem geralmente a tecnologias menos capital-intensivas do que as suas congéneres vindas de países desenvolvidos, o que significa que empregam proporcionalmente mais mão-de-obra e, por conseguinte, adquirem maior relevância social [9]. Nesta perspectiva, deve considerar-se que as tecnologias aplicadas pelas companhias transnacionais provenientes de países em desenvolvimento, embora possam não ser tão sofisticadas como as existentes nos países desenvolvidos, adequam-se eventualmente melhor aos demais países em desenvolvimento. Assim, pode suceder que os investimentos externos directos entre países em desenvolvimento provoquem uma maior difusão do progresso tecnológico do que aqueles emanados de países desenvolvidos, o que reforça a implantação social das companhias transnacionais sediadas em países emergentes e mais ainda as coloca no centro de redes de mão-de-obra.

O impacto de uma companhia transnacional sobre o tecido sócio-económico de uma região ou de um país aumenta quando os investimentos se dirigem para a criação ou o desenvolvimento de infra-estruturas, sobretudo em lugares onde elas são precárias. Deste modo a companhia passa a deter um ascendente sobre populações inteiras. Um teste para medir a inserção de uma companhia nos tecidos sociais que albergam as suas filiais é o grau em que ela é capaz de absorver as diferentes culturais locais e de as integrar no seu próprio modelo de funcionamento. É certo que a multiculturalização de uma companhia depende também de factores internos, e quanto maior for a rigidez da sua gestão, tanto menor será a sua adaptabilidade. De qualquer modo, para que a transnacionalização seja efectiva a empresa deve ser capaz de se multiculturalizar. Entre os elementos que distinguem as companhias transnacionais de hoje das companhias multinacionais da época anterior conta-se a ultrapassagem da fase em que a sede exportava gestores e modelos organizativos, substituindo-a pelo recrutamento de gestores locais e pela adaptação a modelos organizativos locais. O grau de multinacionalização das administrações serve para apreciarmos o grau de implantação de uma companhia transnacional nas sociedades de acolhimento.

O crescimento dos investimentos directos emanados do Brasil é um fenómeno recente e, com poucas excepções, as companhias transnacionais de origem brasileira são ainda demasiado incipientes para que a multiculturalização das suas administrações atinja qualquer grau significativo. Referindo-se às vinte principais companhias transnacionais sediadas no Brasil, de acordo com a lista organizada pela Fundação Dom Cabral, Albino Pimentel indicou que «todos os dirigentes das empresas classificadas pelo estudo são de nacionalidade brasileira, e apenas cinco dos 157 membros da diretoria são estrangeiros» [10]. No entanto, a propósito da «estratégia de internacionalização da WEG», Reisen de Pinho esclareceu que uma característica «era o seu foco no desenvolvimento de lideranças e na criação de uma cultura organizacional que atendesse a sua nova condição de empresa global. Além de treinamento constante da sua força de trabalho como um todo, a empresa mantinha um programa de job rotation [rotação de profissionais] internacional que incluía país, divisão, cargo e mercado de um grupo de executivos internacionais. O objetivo era maximizar a característica de crescente multiculturalidade da empresa». Um processo idêntico ocorre com a Vale, que, para «sustentar a sua rápida expansão internacional», «investia no desenvolvimento de uma cultura de âmbito global, através de políticas e programas que suportassem as suas atividades no Brasil e no exterior. Entre outros, a empresa criou um programa de trainees [estagiários] internacionais, propiciava treinamento, no Brasil, de estrangeiros contratados para operar em seus países de origem e incentivava o envio de brasileiros para atuarem em suas unidades externas» [11]. Será que estas duas companhias, que se contam entre as mais internacionalizadas, apontarão o caminho às suas congéneres de matriz brasileira?

brasil-8-g1Na época actual, com as cadeias produtivas cada vez mais dispersas por vários países e com as redes de subcontratação permeando mais longe as sociedades locais, criam-se condições que pressionam as empresas a acentuar a sua multiculturalidade, sendo de esperar que um número crescente de companhias transnacionais de matriz brasileira siga o exemplo da Vale e da WEG. Aqueles leitores que tiverem propensão para as críticas apressadas devem parar um pouco e reflectir que o ascendente de uma firma será tanto maior quanto mais ela funcionar de modo eficaz e amigável. É fácil atacar as companhias transnacionais, como aliás quaisquer outras, quando os bens e serviços que vendem são deficientes e quando poluem as áreas em redor e envenenam os habitantes, ou quando entram em conflito com as autoridades locais. A estas denúncias se dedicam os ecológicos e os defensores dos direitos humanos, que, no entanto, se mantêm silenciosos ou até aplaudem sempre que a companhia cria condições para um processo de exploração eficaz e evita matar os seus trabalhadores e os consumidores dos seus produtos, ou seja, quando aumenta a produtividade e promove o mercado. Os ecológicos e os declamadores cumprem assim a sua função, que é a de estigmatizar o capitalismo atrasado e estimular o capitalismo desenvolvido.

brasil-8-eA inserção das companhias nas sociedades de acolhimento de modo a reduzir as fricções é hoje correntemente denominada Responsabilidade Social de Empresa ou, com uma nomenclatura que toca de mais perto no alvo, Investimento Social da Empresa. Aliás, as companhias transnacionais passaram a ser passíveis de responsabilização por crimes internacionais e estão a ser desenvolvidas, a partir de vários quadros institucionais — a Organização das Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, OCDE, entre outras — normas que, embora desprovidas de carácter imperativo, pretendem vincular as companhias transnacionais ao respeito do que se considera direitos humanos. Não se trata de filantropia mas, tal como se diria no século XIX, de interesses bem entendidos.

brasil-8-f«Nos últimos anos as administrações das companhias têm prestado uma atenção crescente à questão da RSE [Responsabilidade Social de Empresa] e muitas companhias decidiram adoptar uma política de RSE», afirmou muito oportunamente o World Investment Report 2006. «As companhias não o fizeram apenas por causa das relações públicas; elas estão também cada vez mais a reconhecer que uma actuação correcta pode influenciar o desempenho da empresa. De facto, algumas pesquisas recentes indicam uma relação positiva entre a sensibilização para a RSE e o desempenho dos negócios. […] Uma sensibilização crescente para a RSE pode permitir que uma empresa aumente a sua competitividade a longo prazo, facilitando o acesso a financiamento, parceiros e mercados e reduzindo os riscos legais e operacionais» [12]. E o World Investment Report 2007 insistiu que as companhias «podem obter vantagens operacionais a longo prazo graças ao cumprimento de padrões básicos de direitos humanos, enquanto parte de uma orientação mais vasta em prol de um investimento responsável» [13]. Um grupo de pesquisadores brasileiros indicou que diversos estudos «relacionam práticas de Responsabilidade Social a benefícios institucionais e comerciais, como uma maior visibilidade da marca e associação da imagem empresarial a projetos sociais que atraem a simpatia do consumidor e podem resultar em crescimento de vendas, além do aumento do grau de satisfação do próprio quadro de funcionários, contribuindo para a motivação e retenção de profissionais» [14]. Por seu turno, Pascal Lamy, antigo comissário europeu do Comércio e actualmente director-geral da Organização Mundial do Comércio, sustentou a existência de uma correlação directa entre a Responsabilidade de Empresa nas questões sociais e ambientais e o desempenho financeiro [15]. Na mesma perspectiva, o vice-primeiro-ministro da Malásia declarou que a adopção por uma empresa de uma política de Responsabilidade Social «contribui para melhorar o desempenho financeiro, salienta a imagem de marca e aumenta a capacidade de atrair e reter a melhor força de trabalho, contribuindo com até 30% do valor de mercado de uma companhia» [16]. Também um estudo realizado pela Universidade de Harvard colocou números nas boas intenções, concluindo que a adopção da Responsabilidade Social permite às empresas quadruplicarem a taxa de crescimento [17].

A noção de empresa cidadã não é uma demagogia nem uma fachada. Para isso basta a publicidade. A empresa cidadã é uma actualização e uma expansão da velha gestão paternalista, em que o domínio exercido pela administração da firma sobre os trabalhadores durante o horário de trabalho se ampliava num domínio exercido sobre as próprias famílias dos trabalhadores vinte e quatro horas por dia. Agora, a empresa cidadã vai muitíssimo mais longe e com os seus programas enquadra e influencia populações inteiras. É esta a mais profunda base social do imperialismo.

brasil-8-mUma organização brasileira, o Instituto Ethos, a principal desta área na América Latina, tem como associadas empresas cujo facturamento anual corresponde a cerca de 35% do Produto Interno Bruto, PIB, do Brasil e que empregam cerca de 2 milhões de pessoas. «Políticas e práticas consideradas socialmente responsáveis integram a visão estratégica de 89% das empresas nacionais», indicaram Milani Filho et al., advertindo sensatamente de que «é fato comum a adoção do discurso socialmente responsável pelas empresas brasileiras em seus respectivos relatórios e notas ao mercado, mas entre o discurso e a evidenciação das informações que dimensionam e quantificam o real envolvimento das entidades em projetos e ações sociais há uma distância a ser superada». Estes autores, tomando como base as trinta companhias de matriz brasileira que a Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica, SOBEET, considera mais internacionalizadas, chegaram à conclusão de que, em média, quanto maior o grau de internacionalização tanto menos essas companhias prestam informações acerca de quaisquer investimentos em empreendimentos de Responsabilidade Social realizados no Brasil [18]. Não me parece arriscado concluir que, tendo as empresas interesse em divulgar os investimentos sociais a que procedem, se não o fazem é porque esses investimentos não existem. Fica colocada, assim, a questão de saber em que medida as companhias se preocupam com a Responsabilidade Social nos países estrangeiros onde estabelecem filiais.

A Odebrecht constitui um bom teste, porque a companhia dispõe de um modelo organizativo denominado Tecnologia Empresarial Odebrecht, sistematizado pelo fundador da empresa, Norberto Odebrecht. «A cultura organizacional da empresa, codificada através da Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), incentiva a predisposição para a participação de experiências, conhecimentos e insights do indivíduo para a coletividade e vice-versa», relatou Moacir Oliveira Júnior. «Conceitos como codificação do conhecimento existente, gestão do conhecimento, inovação e criação de novo conhecimento fazem parte das estratégias de crescimento internacional da empresa» e é importante saber que «para a Odebrecht, a transferência do conhecimento segue a lógica da participação colaborativa independentemente de posições hierárquicas». Ora, a Odebrecht inseriu nesta Tecnologia Organizacional as suas filiais no estrangeiro. «Dentro da rede mundial do grupo Odebrecht, o conhecimento é articulado corporativamente pelo CIADEN (Departamento de Conhecimento e Informação para Apoiar o Desenvolvimento de Negócios) a partir do conhecimento gerado nos vários projetos internacionais desenvolvidos, que os redireciona às unidades interessadas. Esse compartilhamento se processa através da comunicação direta entre os participantes que procedem de distintos lugares, possibilitando rica troca de experiências, bem como por meio documental. As Comunidades de Conhecimento, um dos fóruns de compartilhamento organizacional, são estruturadas em plataformas de Intranet, e procuram preservar conhecimentos provenientes dos diversos projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento na empresa, independentemente se são gerados pelos operários da frente de serviço, ou pelos experts profissionais, preservando, assim, conhecimentos valiosos que propiciam à empresa competências e vantagens» [19]. A Fundação Dom Cabral confirmou que «para lidar com a distância cultural existente entre os países em que atua, a empresa conta com o apoio do projeto de Tecnologia Empresarial Odebrecht, TEO, que tem como objetivo reduzir o choque cultural existente» [20]. Isto significa que, nos países para onde se expande, a Odebrecht procura a colaboração de parceiros locais e investe na qualificação técnica, mesmo quando se trata de mão-de-obra temporária [21].

brasil-8-hEm Angola, o modelo organizacional da Odebrecht, dando-lhe «a capacidade de gerir de forma descentralizada grandes obras de engenharia foi crucial para o sucesso do empreendimento», explicaram Afonso Fleury e Maria Tereza Fleury [22]. Um sucesso obtido, aliás, por meios amplos, porque o facto de a Odebrecht estar «historicamente mais empenhada em transmitir conhecimentos técnicos do que em absorvê-los», sendo benéfico para as economias onde instala as filiais, serve-lhe de «moeda de troca nas negociações junto a seus governos, especialmente no que se refere às garantias políticas e burocráticas» [23].

brasil-8-jAdoptando formas de implantação não muito diferentes, a Petrobras contribui nos países de acolhimento, entre os quais em Angola, para projectos humanitários envolvendo a construção de escolas e creches, de postos de saúde e hospitais e apoia organizações sócio-culturais, além de promover programas de qualificação profissional no ramo petrolífero [24]. Esta actuação da Petrobras é tanto mais significativa quanto «num levantamento de alegadas violações de direitos humanos cometidas por empresas, 2/3 de um total de 65 violações denunciadas por ONGs relacionaram-se com as indústrias extractivas e ocorreram principalmente em países pobres com governos fracos» [25].

A modalidade de funcionamento adoptada pela Odebrecht, pela Petrobras e por tantas outras companhias transnacionais, assim como é mais produtiva e, portanto, permite uma maior exploração dos trabalhadores, também é a que melhor insere a empresa no meio social e, portanto, que mais profundamente radica o imperialismo. Ao contrário do que parece, estas empresas constituem um perigo social muito maior do que aquelas que depredam o ambiente e espalham a devastação.

A este respeito, é mais uma vez em África que o governo brasileiro coadjuva as companhias transnacionais, confirmando a apreciação de Sombra Saraiva que mencionei noutro artigo desta série. É que se a diplomacia pode criar condições propícias aos investimentos directos, existe um tipo de actuação, considerada humanitária, pela qual um governo contribui para o clima de simpatia com que se rodeia a Responsabilidade Social de Empresa. Segundo o Brazil Investment Guide de 18 de Maio de 2011, enquanto em 2002 o governo brasileiro desenvolvia 21 projectos em 7 países africanos, agora ocupa-se de cerca de 300 projectos em 37 países. A Fundação Oswaldo Cruz, que se dedica a pesquisas na área da saúde pública, encabeça um projecto para o tratamento da Sida [Aids] em Moçambique, onde mais de 1/10 da população está atingida pela doença. Outras iniciativas estão a cargo do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, SENAI, entre elas um programa de treinamento profissional no montante de 20 milhões de dólares. Por fim, a intervenção da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Embrapa, tem sido especialmente relevante, tanto mais que esta instituição estabelece habitualmente parcerias de Pesquisa e Desenvolvimento com companhias transnacionais, no interior do Brasil e fora das fronteiras. A Embrapa está a desenvolver em pelo menos 13 países africanos vários tipos de plantação, incluindo alimentos, e a melhorar a sua produtividade, além de manter programas de formação e treinamento de técnicos locais. Todas estas organizações põem à disposição das sociedades autóctones tecnologias e competências desenvolvidas no Brasil, o que rodeia os investimentos directos brasileiros de uma aura de prestígio e lhes torna mais fácil apresentarem-se a uma luz favorável.

brasil-8-lA Embrapa está por detrás do mais recente avanço do imperialismo brasileiro em África. Prevê-se que em Setembro de 2011 parta do Mato Grosso uma primeira leva de 40 empresários agrícolas para quatro províncias do norte de Moçambique, precisamente onde a Embrapa mantém um projecto destinado a adaptar localmente sementes de algodão, soja, milho, sorgo e feijão do cerrado brasileiro. Como os bons resultados conseguidos pela agricultura brasileira nos últimos anos têm assegurado fortes lucros aos empresários agrícolas, que por isso ficam interessados em aumentar as áreas de exploração, o preço das terras no Brasil subiu acentuadamente, sendo o Mato Grosso o sexto estado com maior valorização das terras. Ora, em Moçambique a terra é propriedade do Estado, arrendada aos particulares, e neste caso o governo moçambicano oferece em concessão por cinquenta anos, renováveis por outros cinquenta, uma área total de 6 milhões de hectares, destinada sobretudo à plantação de soja, algodão e milho, mediante um imposto anual equivalente a 21 reais por hectare. Para ter uma ideia do que aquela superfície representa, recorde-se que o cultivo de cana-de-açúcar no estado de São Paulo ocupa só cerca de 5 milhões de hectares. Compreende-se o entusiasmo de Carlos Ernesto Augustin, presidente da Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão, ao declarar que «Moçambique é um Mato Grosso no meio da África, com terra de graça, sem tanto impedimento ambiental e frete muito mais barato para a China». E acrescentou: «Hoje, além de a terra ser caríssima em Mato Grosso, é impossível obter licença de desmate e limpeza de área». Outra das condições impostas pelo governo moçambicano, a de 90% da mão-de-obra nessas explorações agrícolas ser obrigatoriamente composta por naturais do país, representa na verdade um benefício suplementar para os empresários, já que gastarão menos em salários do que se levassem consigo camponeses brasileiros. «Quem vai tomar conta da África? Chinês, europeu ou americano?», perguntou Carlos Augustin, e ele mesmo deu a resposta: «O brasileiro, que tem conhecimento do cerrado» [26].

«A crescente projeção externa do Brasil tem aspectos muito positivos, como maior visibilidade e crescente responsabilidade externa», escreveu Rubens Barbosa, antigo embaixador do Brasil em Londres e em Washington e actualmente consultor de negócios, «mas também tem aspectos negativos, como a percepção de que o País começa a atuar como uma “força imperialista” ou de dominação. O Brasil tem de começar a se acostumar com o ônus da maior visibilidade e presença externa e as empresas nacionais têm de passar a contar, cada vez mais, com políticas públicas que apoiem sua continuada expansão no exterior» [27]. Se for exacto, como defendo, que a Responsabilidade Social de Empresa assegura às companhias transnacionais uma penetração ampla e durável nas sociedades onde se estabelecem, então a intervenção da Embrapa, da Fundação Oswaldo Cruz ou do SENAI não é menos importante do que a acção das embaixadas e dos consulados.

Graças a esta conjugação de esforços vai-se formando a teia do imperialismo brasileiro. E agora digam-me: reconhecem aqui o Brasil ao qual foram habituados?

Notas

[1] Carlos Felipe de Souza Gouveia, Estratégias de Internacionalização de Empresas Multinacionais Brasileiras: Teoria versus Prática, dissertação de mestrado, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2010, págs. 68 e 69.
[2] João Eduardo Albino Pimentel, «Empresas multinacionais brasileiras e chinesas: uma perspectiva teórica sobre as possibilidades de estreitamento das relações», comunicação apresentada ao XII SEMEAD Empreendedorismo e Inovação, São Paulo: USP, Agosto de 2009.
[3] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006. FDI from Developing and Transition Economies: Implications for Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2006, págs. xviii e 10.
[4] KPMG, Multinacionais brasileiras. A Rota dos Investimentos Brasileiros no Exterior, 2008, pág. 13.
[5] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[6] Fundação Dom Cabral, Ranking Transnacionais Brasileiras 2010. Repensando as Estratégias Globais, págs. 8 e 16 .
[7] Carlos Felipe de Souza Gouveia, op. cit., pág. 60.
[8] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2010. Investing in a Low-Carbon Economy, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2010, pág. 36.
[9] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006, op. cit., págs. 198-199.
[10] João Eduardo Albino Pimentel, op. cit.
[11] Ricardo Reisen de Pinho, Gigantes Brasileiros: Multinacionais Emergentes e Competição Global, tese de doutoramento, São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2008, págs. 54 e 58.
[12] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006, op. cit., págs. 235-236.
[13] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2007. Transnational Corporations, Extractive Industries and Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2007, pág. 178.
[14] Marco Antonio Figueiredo Milani Filho, Claudia Vasconcellos Silva Habib e Aida Maria Mendes Milani, «Internacionalização de empresas e investimentos sociais privados: uma relação inversa?», Revista Contabilidade e Controladoria, vol. 2 nº 1, 2010.
[15] Eloi Junior Damke e Queila Regina Souza, «Responsabilidade social e estratégia internacional: pressupostos teóricos e diretrizes para a atuação de multinacionais em países em desenvolvimento», em Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Responsabilidade Social das Empresas. A Contribuição das Universidades, vol. 4, São Paulo: Peirópolis, 2005.
[16] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006, op. cit., pág. 237.
[17] Eloi Junior Damke e Queila Regina Souza, op. cit.
[18] Marco Antonio Figueiredo Milani Filho et al., op. cit.
[19] Moacir de Miranda Oliveira Júnior, «Transferência de conhecimento e o papel das subsidiárias em corporações multinacionais brasileiras», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), Internacionalização e os Países Emergentes, São Paulo: Atlas, 2007, págs. 227-228.
[20] Fundação Dom Cabral, op. cit., pág. 13.
[21] Carlos Felipe de Souza Gouveia, op. cit., pág. 72.
[22] Afonso Fleury e Maria Tereza L. Fleury, «Internacionalização das empresas brasileiras: em busca de uma abordagem teórica para os late movers», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), op. cit., pág. 10.
[23] Carlos Felipe de Souza Gouveia, op. cit., págs. 76 e 72.
[24] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006, op. cit., pág. 233.
[25] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2007, op. cit., pág. 152.
[26] Patrícia Campos Mello, «Moçambique oferece terra à soja brasileira», Folha de S. Paulo, 14 de Agosto de 2011.
[27] Rubens Barbosa, «Proteção de investimentos no exterior», O Estado de S. Paulo, 24 de Fevereiro de 2009.

Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo

6 COMENTÁRIOS

  1. Por que o autor não incluiu nenhuma parte ou passagem a respeito da corrupção e/ou do crime organizado em sua leitura de Brasil?

  2. Renata,
    Começo pela corrupção.
    A corrupção diz respeito à repartição da mais-valia entre os capitalistas. Não diz respeito ao processo de exploração da força de trabalho, mas à posterior distribuição dos lucros desse processo entre os exploradores.
    Quando a corrupção assume a forma de uma passagem de dinheiro dos empresários para os políticos — e são estes os casos mais comuns — ela equipara-se aos impostos. Pode argumentar-se que os impostos se destinam, pelo menos em parte, à conservação e promoção de infra-estruturas materiais e sociais e que, portanto, acabam por reverter em benefício dos empresários que os pagaram. Mas a isto pode replicar-se que, assegurando protecção e simpatias, o dinheiro pago pelos empresários aos políticos corruptos reverte igualmente em benefício das empresas.
    Numa análise estritamente económica, a corrupção só começa a ter efeitos negativos quando leva a uma permanente fuga de capitais, que se tornam ociosos ou de qualquer outro modo saem do circuito económico. E a corrupção tem efeitos totalmente destrutivos quando substitui os mecanismos administrativos e judiciais correntes, que deixam então de existir na prática. Nestes casos o Estado deixa de funcionar.
    Existem várias organizações não-governamentais que se dedicam a avaliar o grau de corrupção em cada país e a compará-los. Nessas escalas o Brasil tem ocupado uma posição intermédia e, se não se conta entre os menos corruptos, também não se insere nos mais corruptos. Segundo uma dessas organizações, a Transparency International, em 2010 o Brasil ocupava a 69ª posição — acompanhado por Cuba — numa escala de 178 posições. Assim, no plano em que prossegui a análise da evolução económica recente do Brasil e na perpectiva em que a prossegui, a corrupção não constitui um fenómeno significativo.
    A corrupção é muito evocada no Brasil por razões morais, sobretudo da parte daqueles que não criticam o capitalismo enquanto estrutura mas enquanto prática que se desvia de uma norma ideal. Sou completamente alheio a esse tipo de atitudes.
    Agora, quanto ao crime organizado.
    O crime organizado é uma actividade empresarial que se caracteriza por fornecer produtos ou serviços proibidos por lei. Fundamentalmente, é apenas isto que distingue o crime organizado da actividade empresarial comum. Tudo o resto se deduz dessa diferença fundamental.
    A violência empregue pelo crime organizado é tanto mais frequente quanto menos organizado for esse crime. Por outras palavras, quanto maior for a concentração económica na produção de artigos ilícitos e na prestação de serviços ilícitos, tanto menor será a guerra de gangs e, portanto, tanto menor será o emprego de violência e, por outro lado, tanto mais íntima será a ligação entre o crime organizado e o grande capital legal. Os Estados Unidos representam um caso extremo de concentração do capital criminal e de ligação entre esse capital e as empresas legais.
    No Brasil, embora o PCC e outras organizações similares possam considerar-se como factores de concentração do capital criminal, este processo atravessa uma fase ainda muito incipiente, por isso ele não ocupa qualquer lugar entre as grandes tendências de desenvolvimento do capitalismo brasileiro contemporâneo. No entanto, eu poderia ter abordado a questão no quarto artigo, quando referi a cisão entre a maioria da força de trabalho, mal qualificada, e uma minoria bem qualificada. O crime organizado é uma alternativa sedutora para os jovens que não possuem as qualificações escolares formais, embora requeira, evidentemente, outro tipo de qualificações.
    Por outro lado, no caso do PCC, quando se lêem os textos políticos de Marcola e quando se conhecem as tentativas desta organização para ser considerada como um movimento social, penso que o PCC constitui, no meio criminal, o equivalente das Empresas com Responsabilidade Social.
    E também em relação ao crime organizado, tal como relativamente à corrupção, pus inteiramente de lado considerações moralistas, que não partilho.

  3. Este artigo foi escrito antes do desastre ambiental da SAMARCO\VALE em Minas Gerais.
    Essa história de Responsabilidade Social\Ambiental não teria ido por água a baixo após o acontecido em Mariana? Não teria ficado claro que se trata apenas de retórica?

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