A importância assumida pelas commodities e pelos ramos a elas ligados não se operou em detrimento dos ramos de alta tecnologia. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
A política de industrialização em substituição das importações privilegiara o mercado interno e descurara as exportações, que mantiveram uma estrutura arcaica. Em 1960 os artigos primários tradicionais ocupavam mais de 90% das exportações brasileiras, enquanto os produtos manufacturados ocupavam apenas 2%. Em 1964 os produtos manufacturados responsabilizaram-se já por 5% das exportações, subindo para 36% em 1974, 66% em 1985 e 69% em 1996. Será que esta ascensão prosseguiu nos anos recentes? A tabela 1 indica a percentagem que os artigos manufacturados ocupam nas exportações totais de mercadorias e a percentagem que os artigos de alta tecnologia ocupam nas exportações totais de artigos manufacturados, no Brasil e em alguns outros países. Escolhi como termos de comparação as outras três maiores economias latino-americanas e os outros três membros dos BRICs [1].
Tabela 1: Percentagem das exportações de manufacturas nas exportações totais (A) e das exportações de alta tecnologia nas exportações de manufacturas (B)
Fontes: World Development Reports. Selected Indicators, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011.
Os artigos manufacturados, que desde 1985 ocupavam 2/3 ou mais das exportações brasileiras, desceram para um pouco mais de metade entre 2002 e 2006 e em seguida declinaram mais ainda, até que em 2009 os bens primários voltaram a ultrapassar os manufacturados nas receitas das exportações. É certo que entre 2002 e 2009, dos outros seis países incluídos na tabela 1 só a Argentina e a China não sofreram uma diminuição da percentagem ocupada pelas manufacturas nas exportações, o que ajuda a contextualizar o problema, mas não é menos certo que a descida mais drástica foi a do Brasil. Reciprocamente, as commodities e quase-commodities, que em Dezembro de 2000 preencheram 54,1% das exportações brasileiras, foram responsáveis por 60,8% em Junho de 2003, 62,7% em Agosto de 2007 e 61,5% em Janeiro de 2008, em médias móveis de doze meses. E embora, como indiquei no artigo anterior desta série, a parte ocupada pelo Brasil nas exportações mundiais permanecesse praticamente estagnada durante duas décadas e meia, subindo só na segunda metade da década passada, isto não impediu a exportação brasileira de produtos agrícolas, que correspondera em 1990 a 2,34% das exportações agrícolas mundiais, de chegar em 2002 a 3,34%.
Ao mesmo tempo, os investimentos externos directos [2] recebidos pelo Brasil confirmam a evolução observada nas exportações, como se constata na tabela 2.
Tabela 2: Participação do sector industrial como destino dos Investimentos Externos Directos recebidos pelo Brasil (em %)
Fonte: Boletim Sobeet nº 79, 26 de Abril de 2011.
É comum fazer um grande alarido com estas taxas, anunciando que o Brasil se está a desindustrializar e a regressar à situação de país produtor e exportador de matérias-primas, uma nova colónia ou pior ainda. Mas não devemos chegar a conclusões precipitadas, confundindo bens primários com atraso tecnológico. Marcos Jank e Maria Helena Tachinardi colocaram a questão no devido pé ao explicar que «as commodities são “produtos industriais”, cuja característica principal é a padronização e a não-diferenciação. Portanto, commodities se contrapõem a “produtos diferenciados” (e não a “produtos industriais”). O Brasil exporta basicamente commodities agroindustriais». E se «o Brasil está entre os principais players do agronegócio mundial, ao lado de EUA, União Européia, Canadá e Austrália», escreveram estes dois autores, «esse status foi alcançado graças a investimentos em P&D [Pesquisa e Desenvolvimento] de tecnologias tropicais». Em conclusão, «o Brasil teve bons resultados em segmentos de commodities nos quais a estratégia genérica é a liderança em custos e as variáveis de sucesso são a exploração de economias de escala e escopo, a pesquisa e a inovação tecnológica, os ganhos de produtividade e a racionalização de processos» [3]. Além disso, devemos ter sempre presente que as inovações tecnológicas tanto podem ser materiais como dizer respeito ao sistema de gestão.
Convém notar que os bens primários responsáveis pela alteração na composição das exportações foram o minério de ferro e o petróleo e que tanto a Vale, que extrai um, como a Petrobras, que extrai o outro, são empresas de topo mundialmente, empregando uma tecnologia sofisticada. (A este respeito, porém, devemos ponderar que as refinarias brasileiras não têm capacidade suficiente para tratar o petróleo extraído no país, de modo que o Brasil se tornou um grande exportador de petróleo pesado, continuando a ser um grande importador de petróleo leve. Se o paradoxo não for resolvido nos próximos anos, então isto representará uma deficiência significativa no avanço tecnológico do país.) Continuando a análise dos bens primários que passaram a salientar-se nas exportações brasileiras, a componente de produtos agrícolas deve-se sobretudo ao agronegócio, um ramo em que a produtividade tem aumentado significativamente e que opera com uma tecnologia muito mais avançada do que a agricultura tradicional. Além disso, muitos dos artigos exportados da agricultura e da pecuária foram processados no país antes de enviados para o estrangeiro.
Por este conjunto de razões, a exportação de commodities não deve ser tomada como indício de retrocesso tecnológico, como aliás reconheceu um dos think tanks que mais consistentemente defende a tese de que o Brasil estaria a padecer de uma desindustrialização: «[…] a referida maior especialização da estrutura produtiva nos segmentos de indústria intensivos em recursos naturais não levou a uma regressão da indústria brasileira do ponto de vista tecnológico. Uma classificação de setores da indústria por grau de intensidade tecnológica constata que os setores intensivos em tecnologia mantiveram sua participação básica na indústria, muito embora sintomas de desindustrialização tenham sido detectados em diversos segmentos considerados de alta ou média-alta tecnologia» [4]. O declínio da percentagem ocupada pelas manufacturas nas exportações brasileiras não se deve confundir com qualquer regressão tecnológica, e esta é a segunda lição da tabela 1, mostrando que se manteve praticamente constante a percentagem ocupada pelos artigos de alta tecnologia na exportação total de artigos manufacturados. A tabela 3 confirma esta conclusão, e as eventuais discrepâncias entre os dados, aqui e noutros lugares, decorrem do diferente escopo estatístico atribuído às várias categorias. Mas o mais importante é, em cada caso, a relação entre elas.
Tabela 3: Intensidade tecnológica das exportações brasileiras (em %)
Nota: A soma das parcelas pode ser ligeiramente superior ou inferior aos totais por problemas de aproximação.
Fonte: Fernando J. Ribeiro e Ricardo Marwald, «A balança comercial sob o regime de câmbio flutuante», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
Como mostra a tabela 3, ao mesmo tempo que os produtos industrializados diminuíram a sua participação nas exportações, os produtos industrializados com alto grau de intensidade tecnológica elevaram a sua participação, e o cruzamento destas duas linhas de tendência ajuda a esclarecer as características da economia brasileira actual. Usando categorias diferentes, a tabela 4 confirma que as exportações brasileiras não padecem de nenhum retrocesso tecnológico.
Tabela 4: Estrutura e intensidade tecnológica das exportações brasileiras (em %)
Nota: A soma das parcelas pode ser ligeiramente superior ou inferior aos totais por problemas de aproximação.
Fonte: Marcos S. Jank, Sidney N. Nakahodo, Roberto Iglesias e Marcelo M. Moreira, «Exportações: existe uma “doença brasileira”?», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
Vemos na tabela 4 que não regrediu a parte ocupada nas exportações pelos produtos diferenciados resultantes do emprego de uma tecnologia alta e média-alta e que o aumento da parte ocupada pelas commodities se deveu acima de tudo aos combustíveis.
Os dois factores que precipitaram o aumento da exportação de commodities pelo Brasil foram, de um lado, a crise em algumas das principais economias desenvolvidas, cujo apetite pela importação de manufacturas se reduziu muito, canalizando para o mercado interno brasileiro uma parte da produção industrial que antes se escoava para o exterior; do outro lado, o crescimento industrial da China, que se tornou a maior importadora do minério de ferro e do petróleo bruto brasileiros. Note-se que já desde o começo da década de 2000 se verificava a evolução ascendente das exportações de bens primários para a China. Como sempre sucede, uma crise precipita as tendências, mas não as origina. O importante, todavia, é realçar que a mudança na composição das exportações brasileiras se deveu mais à procura externa do que à iniciativa da oferta interna. Encontramos uma confirmação na tabela 5, que diz respeito exclusivamente à exportação de produtos industriais.
Tabela 5: Intensidade tecnológica das exportações industriais brasileiras (em %)
Fonte: André Nassif, Há Evidências de Desindustrialização no Brasil?, Textos para Discussão nº 108, Rio de Janeiro: BNDES, Julho de 2006.
Vemos na tabela 5 que, ao longo de uma década e meia, o sector industrial com tecnologia baseada em recursos naturais cresceu até ocupar quase metade das exportações industriais. Mas, no mesmo período, a maior taxa de crescimento foi a do sector industrial com tecnologia baseada em ciência, embora este sector tivesse a participação mais baixa no total das exportações industriais. Uma vez mais verificamos que a importância assumida pelas commodities e pelos ramos a elas ligados não se operou em detrimento dos ramos de alta tecnologia.
É certo que converter as exportações de bens primários em motor do crescimento económico pode ter sérios inconvenientes, já que esse tipo de bens sofre variações de preço muito acentuadas no mercado mundial, o que prejudica a continuidade da política económica. «As oscilações de preço das commodities podem ser fatais», reconheceu Fernando Henrique Cardoso num texto recente. Contudo, poucas páginas adiante o mesmo autor considerou, referindo-se à China, que «sua fome por matérias-primas e alimentos alterou, pelo menos em um primeiro momento, a relação tradicional de preços entre as commodities e os bens industrializados. A incorporação das técnicas científicas da biologia à produção agrícola, revolucionadas, por seu turno, graças à informática e aos transgênicos, deu enorme ímpeto a esse tipo de produção. Apesar disso, a elevação da renda dos países emergentes, sobretudo asiáticos, fez com que os preços das commodities se elevassem de maneira sustentável enquanto os produtos manufacturados perderam valor relativo graças aos avanços do progresso técnico. Se a tendência persistir poderá pôr em causa a teoria da deterioração dos termos de troca, tão cara aos economistas da Cepal e muitos outros mais» [5]. Se tal suceder, não será a primeira vez que teorias válidas numa época deixam de o ser na época seguinte, e Octavio de Barros e Fabio Giambiagi fundamentaram a previsão de Fernando Henrique Cardoso, defendendo que o crescimento das economias emergentes, o acesso a níveis superiores de consumo de massas populacionais que antes se encontravam excluídas e, no caso de países como o Brasil, o advento do biocombustível pressionam a uma subida duradoura dos preços das commodities. «Vemos como estrutural a mudança de preços relativos a favor de commodities», escreveram estes dois economistas, prevenindo no entanto de que isto «não conflita com a possibilidade de esses preços experimentarem ciclos desfavoráveis em determinadas circunstâncias que impliquem forte desaceleração do crescimento de algumas importantes economias». E acrescentaram que «o atual processo de mudança de preços relativos deverá ser suficientemente longo para que países emergentes produtores de commodities como o Brasil ganhem um tempo privilegiado para acelerar suas agendas de desenvolvimento […]» [6].
Além de invocarem o aumento das exportações de commodities, os defensores da tese alarmista da desindustrialização mencionam a diminuição da parte ocupada pela indústria transformadora no Produto Interno Bruto, PIB, que foi de 31% em 1980, atingiu um máximo de 36% em 1985, declinando em seguida para 32% em 1986, 23% em 1990 e 20% em 1998, embora subisse para 22% em 2000 e 23% em 2004, caindo afinal em 2008 para 16% do PIB. Mas abstêm-se de acrescentar que em 2010, segundo o Export Hub, o crescimento da produção industrial foi superior a 10%, o maior em vinte e cinco anos, fazendo com que o sector manufactureiro do Brasil passasse de oitavo a sexto maior do mundo, ultrapassando a França e o Reino Unido [7]. Além disto, a parte ocupada pela indústria no emprego aumentou, o que é o oposto a uma desindustrialização. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a cargo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, indica que, no total da população ocupada, o emprego na indústria transformadora passou de 12,8% em 1992 para 14,4%, em 2008. E os resultados das Pesquisas Industriais Anuais do IBGE confirmam esta tendência, já que o emprego industrial comunicado pelas empresas aumentou de 7,44% da população ocupada total, em 1996, para 8,35% em 2008.
Se passarmos dos grandes agregados, como o PIB, para a estrutura do sector industrial, confirmamos que não têm razão os defensores da tese de que a internacionalização da economia provocou no Brasil um retrocesso tecnológico. É certo que para o conjunto do sector industrial o conteúdo de valor acrescentado por unidade de produto, em média, passou de 47,1% em 1996 para 43,3% em 2003. Mas vejamos o que a tabela 6 indica sobre o comportamento interno da indústria.
Tabela 6: Composição do valor acrescentado na indústria brasileira
Nota: A soma das parcelas pode ser ligeiramente diferente de 100 por problemas de aproximação.
Fonte: André Nassif, Há Evidências de Desindustrialização no Brasil?, Textos para Discussão nº 108, Rio de Janeiro: BNDES, Julho de 2006.
Ao mesmo tempo que os ramos industriais com tecnologia baseada em recursos naturais aumentaram a participação no valor acrescentado, a tabela 6 mostra que diminuiu a participação dos ramos trabalho-intensivos, cuja tecnologia é mais rudimentar, e se manteve estável a participação de ramos tecnologicamente evoluídos, como os de tecnologias intensivas em escala e baseadas em ciência, embora tivesse declinado a participação dos ramos de tecnologia diferenciada. A conclusão é similar se usarmos outras categorias de análise, e verificamos que, enquanto se operou um retrocesso dos setores de mais baixa intensidade tecnológica, os sectores de alta e média-alta tecnologia, que em 1996 haviam sido responsáveis por 44,0% do Valor da Transformação Industrial, responsabilizaram-se em 2003 por 47,7%. Bastaria, aliás, recordar a crescente internacionalização de empresas industriais brasileiras, algumas em ramos de alta tecnologia, para deduzir que a base de que partem não está debilitada. De acordo com Daniela Corrêa e Gilberto Lima, o segmento industrial que classificam como «difusor de progresso técnico» foi responsável em 2001 por 11,3% dos investimentos directos emanados do Brasil no sector secundário, percentagem que em 2005 subiu para 14% [8].
Acresce que a Pesquisa de Inovação Tecnológica realizada em 2008 pelo IBGE e cujos resultados foram divulgados em Outubro de 2010 revelou que no Brasil as empresas inovadoras, que eram 31,5% do sector em 2000, passaram para 38,1% em 2008. Esta Pesquisa definiu como «inovadoras» as empresas que implementaram um produto ou um processo novo ou substancialmente melhorado. O director da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras, Anpei, Olivio Ávila, declarou a este respeito que «ainda continua baixo o número de indústrias que lançam produtos e processos novos ou substancialmente aprimorados no mercado brasileiro e internacional» [9], mas o aumento da percentagem de firmas inovadoras indica, em vez de qualquer desindustrialização, um avanço tecnológico.
Por este conjunto de razões, a crise sentida por certos ramos da indústria brasileira não revela nenhuma crise global do sector secundário e mostra apenas uma reorganização interna, ameaçando ramos que perderam a competitividade, forçando a ajustamentos e pondo termo a algumas empresas. Antes de mais, destaca-se o bom desempenho dos ramos industriais ligados à agroindústria. Referindo-se ao período entre 1990 e 2003, um think tank de empresários industriais registou que «considerando todos os sete setores ligados à agroindústria […] observa-se que quatro deles registraram evolução de produtividade acima da média da indústria, consolidando a importância dos setores ligados à agricultura dentro da indústria brasileira», de tal modo que o ramo de produção de máquinas e equipamentos agrícolas «se consolidou como um ramo importante da indústria nacional, certamente estimulado pelo excelente desempenho do setor agropecuário» [10].
A especialização da indústria em alguns ramos de actividade, em vez de revelar qualquer desindustrialização, é um resultado necessário da abertura da economia brasileira ao exterior, que estimulou o aumento da produtividade em certos ramos e o declínio dos ramos menos concorrenciais. Nestas circunstâncias, não espanta que os chefes de empresa atingidos negativamente promovam com vigor o discurso da desindustrialização. Os think tanks ligados a estes empresários e os lobbies que lhes emprestam voz e músculo associam sistematicamente desindustrialização a uma moeda tida como sobrevalorizada e que dificulta as exportações, de modo que o remédio para a pretensa desindustrialização seria a desvalorização do real. Ora, o mesmo câmbio sobrevalorizado que ergue obstáculos às exportações beneficia as importações, nomeadamente de bens de capital, contribuindo portanto para um clima propício aos investimentos. «Como mostraram diversos estudos empíricos, no período 1996-1998, particularmente, com a liberalização comercial praticamente consolidada e forte apreciação real da moeda brasileira em relação ao dólar», escreveu André Nassif, «diversos segmentos se modernizaram e obtiveram ganhos de produtividade mediante o aumento das aquisições de máquinas e equipamentos (incluindo importados) […]» [11].
A isto um think tank defensor da tese da desindustrialização respondeu com verdadeiras pérolas, apesar de contar no seu conselho com nomes ligados a algumas das principais companhias transnacionais de matriz brasileira. «Assinale-se que seja o setor eletroeletrônico seja o automobilístico têm se destacado também por forte desindustrialização», advertiu o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. «A substituição de insumos [inputs] nacionais por importados está contribuindo para baixar os custos. Portanto são setores que se tornam mais competitivos no curto prazo por causa da desindustrialização» [12]. Segundo este critério, toda a inserção em cadeias de produção internacionais levaria a uma desindustrialização, por onde chegaríamos à engraçada conclusão de que transnacionalização seria sinónimo de desindustrialização. Ricardo Carneiro foi ao ponto de afirmar que a participação estável dos ramos de tecnologia alta e média-alta nas exportações brasileiras é apenas aparente, porque esconde o facto de estes ramos incorporarem avultadas importações, o que os relegaria a uma mera actividade de montagem [13]. É pena que o autor não tivesse aplicado este critério à China, porque chegaria à conclusão de que também ela se está a desindustrializar. Mas a composição daquelas importações mostra que não se trata de converter fábricas brasileiras em simples montadoras de peças provenientes do exterior, porque um inquérito realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Fiesp, entre os empresários daquele estado revelou que 55% das fábricas se abastecem no estrangeiro, onde 60% procuram inputs, dos quais 20% de máquinas e 23% de produtos acabados.
Roberto Mayer, lobbyst da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, Assespro, mostrou-se alarmado porque uma pesquisa divulgada em Janeiro de 2011 «revela crescimentos assustadores da participação de produtos estrangeiros nos mercados de alta tecnologia» [14]. Assustador seria se as empresas brasileiras não dispusessem de bens de capital com tecnologia avançada, que venham de onde vierem contribuem para aumentar a produtividade no país. Medindo a produtividade do trabalho no Brasil através da taxa Produção Física / Pessoal Ocupado, se atribuirmos o índice 100 a 1991, vemos que ela atingiu em 2005 um índice superior a 160. Comentando esta evolução, André Nassif escreveu: «Diversos estudos empíricos procuraram explicar as fontes de crescimento da produtividade industrial brasileira na década de 1990. As análises indicam que a introdução de novas técnicas de produção e o acesso a bens de capital e insumos [inputs] importados a preços mais próximos dos internacionais após a liberalização comercial também levaram a um forte enxugamento de mão-de-obra no setor industrial brasileiro» [15].
Mas aparentemente os profetas da desindustrialização preferem uma indústria retardatária, desde que seja made in Brazil, e eles vêm de muitos lados. «O Brasil, com sua legítima aspiração de assumir um papel de liderança global, não pode abrir mão de uma indústria forte», lê-se numa declaração conjunta do presidente da Fiesp, do presidente da Central Única dos Trabalhadores, CUT, e do presidente da Força Sindical, assinada em Maio de 2011. «Este é o momento para que os diferentes atores desse processo — trabalhadores, empresários e o governo — formem um grande consenso acerca da política industrial nos rumos da economia» [16]. A frente comum de empresários e burocratas sindicais tem-se consolidado. Em 13 de Julho de 2011 a Confederação Nacional da Indústria, CNI, reuniu-se na sua sede com a CUT e a Força Sindical e com representantes de alguns sindicatos, tendo chegado a acordo para pedir à presidente da República a criação de uma Câmara da Industrialização e para organizar lobbies junto aos parlamentares. Na mesma ocasião o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, reivindicou ainda a desoneração dos investimentos e das exportações e a promulgação de medidas proteccionistas contra as importações, além de incentivos à compra de produtos nacionais. «Constatamos aqui, hoje, que os nossos objetivos são os mesmos: fazer o Brasil avançar com empregos de melhor qualidade», declarou no final do encontro o presidente da CNI, e acrescentou: «Precisamos mostrar para a sociedade que estamos juntos» [17]. Com efeito, logo no dia seguinte representantes da CNI, da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, Abimaq, e da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção, Abit, encetaram uma acção de lobby no Senado federal, anunciando um risco de «reprimarização» da economia e defendendo a alteração do modelo de desenvolvimento. «Somente um movimento que reúna empresários e trabalhadores poderá surtir os efeitos desejados», proclamou nessa ocasião o senador Luiz Henrique da Silveira, do PMDB de Santa Catarina [18].
Atribuindo todas as responsabilidades aos efeitos exercidos pela taxa de câmbio sobre o comércio externo, os empresários dos ramos em dificuldade evitam mencionar quaisquer reformas de estrutura e reclamam a desvalorização do real e um leque de medidas proteccionistas. Soluções deste tipo permitir-lhes-iam aumentar a competitividade sem aumentar a produtividade, o que seria um remédio — a curto prazo — para as empresas que não conseguem responder à concorrência mundial, mas sobrecarregaria a economia brasileira, pois o aumento do preço das importações agravaria as pressões inflacionistas. Pior ainda. Erguendo obstáculos à entrada de meios de produção tecnologicamente inovadores, aquelas medidas lançariam sobre os restantes ramos o encargo de sustentar empresas pouco produtivas e retardariam o desenvolvimento industrial que dizem querer promover.
Colocada perante estas pressões, a presidente Dilma Rousseff agiu habilmente, declarando que «a indústria nacional tem em mim uma aliada» [19] e lançando em Agosto de 2011 o Plano Brasil Maior. Segundo o Valor Econômico, «Dilma quer diversificar exportações e reverter a tendência de perda de importância dos bens manufaturados na pauta de exportação e na economia brasileiras» [20]. Com efeito, entre os principais objectivos do Plano Brasil Maior está a ampliação da parte ocupada pela indústria no PIB de 18,3% para 19,5%. Por um lado, o Plano adopta algumas medidas destinadas a satisfazer os ramos industriais menos competitivos e que se sentiam ultrapassados pela concorrência estrangeira, prevendo uma redução de impostos sobre a folha de salários especialmente em empresas trabalho-intensivas — calçado, confecções, mobiliário e software — além de outras medidas de desoneração como o desconto imediato dos impostos pagos na aquisição de máquinas para a indústria. O Plano prevê ainda o favorecimento de fabricantes nacionais em compras do governo nos sectores de informática e telecomunicações, têxtil e calçado, defesa e saúde, mediante a aceitação de preços até 25% maiores de fornecedores com fábricas instaladas no país. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, que havia resistido à adopção das medidas de desoneração fiscal, mostrou-se nesta ocasião bom perdedor e declarou: «Estamos sendo apropriados por mercadorias vindas de fora. O mercado brasileiro deve ser usufruído pela indústria brasileira» [21]. O certo é que em todos estes casos será a sociedade brasileira a pagar a sustentação de empresas pouco competitivas.
Por outro lado, todavia, o Plano Brasil Maior adopta medidas de outro tipo, destinadas a incentivar os investimentos e a estimular a inovação tecnológica e o crescimento da produtividade. Foram também ampliados os benefícios do Programa de Sustentação de Investimento, PSI, que garante juros subsidiados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, para a compra de bens de capital, e o Plano prevê novos incentivos para a indústria automóvel, até 2016, como a isenção do Imposto de Produtos Industrializados, IPI, para as montadoras que investirem na inovação. O governo poderá também encomendar a consórcios formados por empresas nacionais projectos de desenvolvimento tecnológico de artigos como programas de computador. Ao mesmo tempo, o BNDES reforçou o compromisso de dirigir um montante de crédito, até 2014, no valor de 500 milhares de milhões [bilhões] de reais para empresas intensivas em conhecimento e anunciou a ampliação dos fundos da Financiadora de Estudos e Projetos, Finep, no ano corrente, com mais 2 milhares de milhões de reais para patrocinar novos projectos virados para a inovação. Tudo somado, o Plano Brasil Maior parece-me bicéfalo, repartido entre o financiamento a empresas pouco produtivas e o financiamento à modernização tecnológica. «A fatia de inovação do pacote acabou sendo bem menor do que se falava nos bastidores», comentou O Estado de S. Paulo, acrescentando que «não há como negar a timidez do governo em enfrentar o tema» [22]. O tempo dirá qual dos dois aspectos há-de predominar e aliás, segundo a presidente Dilma, o Plano não está fechado e o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, indicou algumas medidas que estão em estudo. Trata-se, uma vez mais, do confronto em suspenso, entre o nacionalismo e a transnacionalização.
Entretanto, um número crescente de companhias brasileiras está a aproveitar o real valorizado para expandir as actividades noutros países e adquirir firmas estrangeiras. A crer numa pesquisa realizada em 2010 pela Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica, SOBEET, e pela Valor, 48,8% das companhias transnacionais de matriz brasileira tencionavam aumentar os seus investimentos no estrangeiro em 2011, enquanto numa pesquisa semelhante efectuada em 2009 só 38,8% haviam declarado a intenção de ampliar os investimentos no ano seguinte; e a percentagem de companhias que tencionavam reduzir os investimentos no exterior, que fora de 26,5% em 2009, caiu para 4,8% na pesquisa de 2010. A reivindicação da desvalorização do real, correspondendo a um subsídio às exportações e a uma barreira erguida contra as importações e contra a transnacionalização das companhias, mascara a aspiração de pôr cobro à abertura da economia e à internacionalização. A tese da desindustrialização é o suspiro de um nacionalismo retardatário.
Por isso a minha análise irá incidir, dentro do país, na realidade subjacente à reivindicação da desvalorização da moeda, ou seja, na situação dos investimentos e no estado das infra-estruturas materiais e sociais; e, além das fronteiras, no desempenho das companhias transnacionais de origem brasileira.
Notas
[1] Em 2001 Jim O’Neill, economista-chefe da firma financeira Goldman Sachs, reuniu num grupo o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, fazendo um acrónimo fácil de fixar porque se pronuncia como a palavra inglesa que significa tijolo.
[2] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[3] Marcos Sawaya Jank e Maria Helena Tachinardi, «Política comercial, negociações internacionais e internacionalização de empresas», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), Internacionalização e os Países Emergentes, São Paulo: Atlas, 2007, págs. 247-248.
[4] Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Ocorreu uma Desindustrialização no Brasil?, Novembro de 2005, pág. 5.
[5] Fernando Henrique Cardoso, «Um mundo surpreendente», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, págs. 15 e 31.
[6] Octavio de Barros e Fabio Giambiagi, «Inserção internacional e amadurecimento macroeconômico: o desafio de transformar a bonança externa em investimento para o futuro», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), op. cit., págs. 240-241 e 242. Estes autores acrescentaram na pág. 248: «As relações de troca favoráveis ao Brasil poderão se deteriorar em algum momento após o forte impulso dos últimos anos, mas também não nos parece que estejamos diante de um risco de reversão intensa […]».
[7] «Exportação Brasil: diagnóstico errado da desindustrialização», site Export Hub, 27 de Abril de 2011.
[8] Daniela Corrêa e Gilberto Tadeu Lima, «O comportamento recente do investimento direto brasileiro no exterior em perspectiva», Revista de Economia Política, vol. 28 nº 2, Abril-Junho de 2008, pág. 257.
[9] «IBGE divulga Pesquisa de Inovação Tecnológica», site Anpei, 18 de Novembro de 2010.
[10] Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Ocorreu uma Desindustrialização no Brasil?, op. cit., págs. 17 e 13.
[11] André Nassif, Há Evidências de Desindustrialização no Brasil?, Textos para Discussão nº 108, Rio de Janeiro: BNDES, Julho de 2006, pág. 24.
[12] Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Desindustrialização e os Dilemas do Crescimento Econômico Recente, Maio de 2007, pág. 2. Na pág. 20 este Instituto especificou que «tanto o setor eletro-eletrônico quanto o automobilístico têm se destacado também pela forte desindustrialização […] A substituição de insumos nacionais por importados está beneficiando esses setores, contribuindo para baixar os custos. Portanto são setores que se tornam mais competitivos por causa da desindustrialização».
[13] Ricardo Carneiro, Impasses do Desenvolvimento Brasileiro: A Questão Produtiva, Texto para Discussão nº 153, Campinas: IE/UNICAMP, Novembro de 2008, pág. 30.
[14] Roberto C. Mayer, «Desindustrialização tecnológica», site Administradores, 22 de Março de 2011.
[15] André Nassif, op. cit., pág. 13.
[16] «Um acordo pela indústria brasileira», Folha de S. Paulo, 26 de Maio de 2011. Ver também neste site «O real significado do “fim do varguismo”».
[17] Blog Relações do Trabalho, 14 de Julho de 2011.
[18] Blog Relações do Trabalho, 15 de Julho de 2011.
[19] Globo – G1, 2 de Agosto de 2011.
[20] Valor Econômico, 2 de Agosto de 2011.
[21] Isto É Dinheiro, 5 de Agosto de 2011.
[22] O Estado de S. Paulo, 4 de Agosto de 2011.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo
Interessante. Agrega argumentos consistentes para o debate, ao invés de ficar no blablablá sobre desindustrialização, etc.
Caro, João.
Você tem algum texto mais específico sobre o tema das privatizações?
abs
Breno,
Não me recordo de ter tratado do assunto senão brevemente, em curtas passagens de livros ou artigos, sobretudo relacionando as privatizações com a transnacionalização do capital. O que abordei mais repetida e extensamente foi a privatização do próprio Estado sob a forma da soberania das empresas, aquilo que designo como Estado Amplo.
Caro João Bernardo,
Sou um grande admirador e estudioso de sua obra, em especial Economia dos conflitos sociais.
Bem, estou acumulando criticamente sobre as forças produtivas(destrutivas) do agronegócio. Iniciando uma reflexão como a burguesia agrária, imbricados no Estado Restrito e seus aparelhos a exemplo da OCB( com seus quadros técnicos, gestores), recriaram um cooperativismo agropecuário totalmente empresarial ( se apropriando de formas autônomas de luta da classe trabalhadora, para sua reprodução do capital) … arrisco afirmar que este processo permitiu o surgirmento de cooperativas agroindustriais com forte influencia política e econômica em regiões e territórios, o que viria a ser a materialização do Estado Amplo, correto?
Bem, pergunto se tens reflexões sistematizadas sobre o assunto?
se poderias me indicar referências bibliográficas que me ajudasse a fortalecer e embasar uma reflexão critica consistente?
E mais ainda, se poderíamos dialogar mais sobre este tema que venho estudando, talvez por e-mail?
Te deixo um grande abraço
Caro Zé da Silva,
O agronegócio faz, nalguns países tardiamente, aquilo que o capitalismo industrial já fez e continua a fazer. Tal como você indicou, a extorsão de mais-valia não deve entender-se só a curto prazo, mas também historicamente, como um processo de apropriação capitalista da criatividade dos trabalhadores. Ora, nas últimas décadas o toyotismo deu novas dimensões a este processo. Assim, creio que o agronegócio, ou seja, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, não é mais malévolo — nem menos — do que o capitalismo na indústria ou nos serviços.
Por outro lado, não devemos esquecer a sobreexploração existente na agricultura familiar, um sistema económico que só é possível mediante o emprego regular de trabalho gratuito. Abordei esse assunto no Economia dos Conflitos Sociais, especialmente nos capítulos 2.3, 2.4 e 6.1, nas págs. 113 e segs., 124 e segs. e 302 e segs. da versão disponibilizada na internet.
Talvez lhe possa ser útil a leitura de uma história do MST, que publiquei neste site aqui, aqui e aqui. Além disso, chamo também a atenção para uma crítica à agroecologia integrada numa série de oito artigos de crítica à ecologia, em que abordo mais uma vez a questão da sobreexploração na agricultura familiar. Nestes artigos você encontrará alguma bibliografia.
Em conclusão, não creio que devamos opor à exploração capitalista do agronegócio a sobreexploração da agricultura familiar e de outras formas rurais arcaicas. A única luta com futuro, aqui como nos outros sectores económicos, parece-me que deve ser a do proletariado do agronegócio contra os respectivos patrões. A mitificação do passado é sempre funesta.