Por João Bernardo
Mostrei no artigo anterior que a partir da data da sua fundação oficial, em Janeiro de 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, optou pela estratégia de estimular a criação de cooperativas de produção nos assentamentos e de disseminar aí a modernização tecnológica. A opção poderia ter sido a inversa, se o MST tivesse representado a resistência tradicionalista à modernização. A questão fundamental consistia em decidir se se considerava inelutável o novo quadro de industrialização da agropecuária e, portanto, se se lutava dentro deste quadro através da colectivização do processo de trabalho; ou se, pelo contrário, se considerava possível e conveniente a recusa daquela modernização em nome da sociedade rural arcaica e do trabalho familiar.
Embora tivesse prevalecido a primeira alternativa, a segunda nunca deixou de estar presente, consubstanciada pela resistência de muitos assentados, que se insurgiam contra o cooperativismo adoptado pela coordenação nacional. O trabalho no âmbito familiar prevalecia sobre a colectivização dos processos de trabalho. Um inquérito efectuado por Alexandre Ribas entre os assentados pertencentes a uma cooperativa de comercialização e prestação de serviços no Pontal do Paranapanema revelou que, apesar de apenas 4% dos cooperantes considerarem que o trabalho coletivo poderia influenciar negativamente a produção para subsistência, 33% afirmaram que a maior desvantagem do trabalho coletivo seria a interferência na gestão do seu lote e 32% afirmaram que seria a divisão de tarefas [1]. A questão aqui não era a eficácia da produção mas o apego ao particularismo familiar. «Evidencia-se, cada vez mais», previne Rosemeire Socopinho, «uma tendência existente entre os assentados para refutar a cooperativa como modelo organizacional, mas valorizar a cooperação como modo de organização da vida econômica e societária». Esta autora observa que o modelo da cooperativa de produção, «inteiramente coletivo, não foi capaz de absorver a maioria da base social do MST. Essa maioria, fortemente vinculada aos tradicionais costumes rurais, tinha uma concepção de coletivo que não extrapolava os limites da família e uma compreensão restrita dos processos sociais e do papel subordinado da economia agrícola no desenvolvimento do país» [2]. Isto significa que aceitavam o tradicional mutirão [entreajuda] mas não o novo cooperativismo.
Em sentido contrário, quando defendiam a orientação cooperativa os dirigentes do MST evocavam a necessidade de formar novos sujeitos, capazes de ultrapassar o individualismo e os particularismos e de se inserir na produção colectiva. À formação destes novos sujeitos opunham-se os sujeitos tradicionais, que continuavam presos a uma mentalidade arcaica, não viam mais longe do que o âmbito doméstico e queriam prosseguir a actividade económica no quadro limitadamente familiar, recorrendo a formas de cooperação de maneira apenas episódica. Foram eles quem forneceu a base social para as primeiras experiências agroecológicas no MST, ocorridas em 1993 em três assentamentos na região de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. E foram eles quem constituiu a base social de uma grande manobra política operada a partir de 1995.
Eleito presidente da República, Fernando Henrique Cardoso procurou conduzir os aspectos económicos da reforma agrária, de modo a isolar politicamente o MST e a esboroar-lhe a base social. Neste sentido foi criado em 1998 o Banco da Terra, com o objectivo de substituir as ocupações pelo acesso à terra através dos mecanismos do mercado. Mas a iniciativa estratégica mais marcante tomada por Fernando Henrique Cardoso no confronto com o MST consistiu no apoio à agricultura familiar e na promoção da relação directa das famílias camponesas com o mercado, em detrimento da relação colectiva efectuada mediante as cooperativas de assentados. Com este fim o Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária, Procera, foi bloqueado — seria extinto em 1999 — e substituído já em 1995 pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, Pronaf, cuja denominação é elucidativa. No ano seguinte o Pronaf deixou de ser apenas uma linha de crédito e converteu-se em programa governamental. Tratava-se de desarticular as cooperativas de produção, desviando o crédito para a agricultura familiar.
Para os assentados a obtenção de crédito constitui um problema de sobrevivência vital, tanto a longo como a curto prazo, cuja resolução exige pressões permanentes sob a forma de mobilizações populares e de lutas. E mesmo assim, quando se consegue uma solução ela é sempre provisória. Apesar disso, a questão do crédito raramente é abordada com a devida ênfase pelos autores que estudam os movimentos de ocupação de terras, como se mencionar este aspecto equivalesse a um deslustre das acções de massas. Mas na realidade é impossível analisar a sobrevivência económica dos assentamentos sem dar relevo aos sistemas de crédito.
Rosemeire Socopinho classifica o Procera como «uma importante conquista da organização dos assentados» [3] e Rosemeire Almeida considera que «o PROCERA representou um capítulo fundamental na história de luta por crédito rural desencadeada, em meados da década de 80, pelos assentados no Rio Grande do Sul» [4]. Ora, este tipo de situações acarreta um risco sério, o de que o objectivo principal da luta se transfira da ocupação de terras para a obtenção de créditos. Juliano Borges sustenta que a opção do MST pelas cooperativas baseadas na modernização da agricultura se devera ao facto de os financiamentos provirem do Procera, e acrescenta: «Toda estruturação do cooperativismo no MST foi resultado do fluxo de relações constituídas com o Estado» [5]. Também Rosemeire Socopinho considera que «a cooperação somente foi institucionalizada no âmbito do MST por imposição do Estado, como forma de controlar o repasse dos recursos financeiros legalmente destinados à reforma agrária, na medida em que a pressão social dos assentados conquistou as linhas oficiais de crédito para o financiamento da produção, mas que apenas são obtidos através de entidades jurídicas que os representem junto ao Estado» [6]. Penso que estes autores exageram, porque a opção inicial do MST pelo cooperativismo decorreu de uma orientação marxista, e em geral socialista, com profundas raízes. Parece-me que será mais exacto dizer que, vocacionado para apoiar uma modernização agrária realizada no quadro de grandes unidades, o Procera teria facilitado e impulsionado o cooperativismo do MST, mas sem o ter gerado. Mesmo com esta ressalva, temos de admitir que já na fase de construção de cooperativas de produção o MST havia passado a contar entre os seus principais objectivos não só a conquista da terra mas igualmente a obtenção de créditos. Compreende-se que os dirigentes do Movimento se sintam indignados quando os acusamos agora de terem alterado nos últimos anos a sua orientação relativamente às instituições financeiras e ao aparelho de Estado, porque esta orientação vinha a ser seguida desde há muito.
Não foi o primeiro caso e certamente não será o último em que uma organização revolucionária é assimilada e domesticada através do crédito. Em qualquer país, em qualquer lugar, se um conjunto de camponeses ocupa uma terra ou se um conjunto de operários ocupa uma fábrica, e se conseguem que a luta tenha êxito e a ocupação se prolongue, têm de arranjar dinheiro para se sustentar e para isso precisam de cultivar a terra ou de pôr as máquinas a funcionar. Contrariamente ao que muitas vezes se julga, o problema mais grave não reside na inserção no mercado. É certo que o mercado impõe preços e por aí, indirectamente, influi na organização do trabalho na terra ou na empresa ocupada. Mas é outro o factor fundamental. Na economia contemporânea não existe nenhuma actividade que não se funde no crédito, e usando a arma do crédito os governos podem estrangular as cooperativas rurais ou as empresas industriais ocupadas, assim como podem obrigá-las a reorganizar-se internamente. A contradição não é simples de resolver, por isso até agora nunca foi resolvida. Mas pode ser mitigada ou, pelo contrário, favorecida.
Se esta análise for exacta, então a criação do Pronaf em 1995 teria levado a direcção do MST a desistir das cooperativas de produção, para as quais haviam sido bloqueados os créditos, e a adoptar a orientação oposta, concentrando-se na agricultura familiar, que passara a ser beneficiada pelo crédito. O Pronaf reforçou a posição dos numerosos assentados que reagiam com desconfiança à colectivização do trabalho e deixou a direcção do Movimento numa situação difícil. E como sem as cooperativas de produção era impensável a modernização da agropecuária nos assentamentos, a direcção do MST teve de optar por uma tecnologia oposta, adaptada ao quadro familiar e vocacionada para conviver com o arcaísmo e as tradições — a agroecologia. É o que a cronologia confirma.
As primeiras experiências de agroecologia no MST, ocorridas em 1993, tinham constituído casos isolados e inteiramente marginais. Só após o 3º Congresso Nacional, em 1995, é que a agroecologia e as noções de sustentabilidade começaram a converter-se em orientação oficial do Movimento e foram cada vez mais passadas à prática nos assentamentos. Esta nova orientação foi igualmente estimulada pelo facto de em 1996 o MST se ter integrado na Via Campesina, que inclui no seu programa a agroecologia e a sustentabilidade. Até que no 4º Congresso Nacional, em 2000, foi declarada a adesão oficial ao projecto agroecológico. A passagem do MST das cooperativas de produção para a agroecologia, condicionada pela substituição do Procera pelo Pronaf, revela que o eixo de orientação política do Movimento estava hipotecado à obtenção de crédito ou, pelo menos, sofria uma influência decisiva dos sistemas de crédito. Segundo o órgão do MST, entre as propostas de acção do 1º Congresso Nacional da Juventude Rural, realizado pelo Movimento em 2000, consta: «Investir na agroecologia, lutar por linhas de crédito com juros diferenciados, subsídios e rebate no capital para a agroecologia» [7].
O MST encerrou então a fase das cooperativas de produção e iniciou a segunda fase da sua existência. «Atualmente», escreveu Fernanda Thomaz em 2009, o pensamento de Clodomir Morais, o autor do Caderno de Formação nº 11, que citei no artigo anterior, «já não é mais o pensamento hegemônico no movimento» [8]. Numa entrevista concedida em Março de 2004, João Pedro Stédile, o principal membro da coordenação nacional do MST, mencionou muito de passagem os encontros que teve no México com Clodomir Morais, mas sem recordar a sua influência na instalação do cooperativismo no Movimento [9]. Também é sugestivo que em Julho de 2005, ao transcrever uma entrevista com Clodomir Morais acerca das Ligas Camponesas, o site do MST indicasse que «na sua volta ao Brasil, na década de 80, conheceu o MST, tendo dedicado grande parte da sua produção intelectual à teoria da organização dos movimentos sociais», mas sem esclarecer que fora ele o autor do Caderno de Formação nº 11 e o idealizador dos Laboratórios Organizacionais [10]. Recentemente, quando lhe perguntaram numa entrevista «Que variantes e estilo de administração podem seguir os camponeses nos seus projetos econômicos mais amplos?», Clodomir Morais respondeu: «A administração de empresas autogestionárias, de tipo grande, de produção social de bens e de serviços, sem cercas internas a fim de poder usar racionalmente a maquinaria, o progresso técnico que o nível das forças produtivas exigir». Resumida em três linhas, fora esta a lição do Caderno de Formação nº 11. E à pergunta «Qual a característica comum aos movimentos camponeses do passado e do presente, do ponto de vista ideológico, político e organizativo?», respondeu o velho lutador: «O individualismo, o paternalismo, o espontaneísmo e outros vícios ideológicos de caráter idealista e oportunista, oriundos das formas artesanais de trabalho. Daí o modesto nível de organização dos movimentos camponeses nos moldes convencionais, razão pela qual a história universal não registra sequer uma revolução camponesa vitoriosa» [11]. Não se podia ter definido mais claramente o papel desempenhado nas lutas sociais pela exploração agrícola familiar e pela agroecologia.
A propósito de outra cartilha, A Cooperação Agrícola nos Assentamentos, publicada em 1993 como Caderno de Formação nº 20, que mencionava «a introdução na agricultura dessa divisão social do trabalho, de forma cooperada, que já acontece na indústria e no comércio», um texto com o título A Evolução da Concepção de Cooperação Agrícola do MST (1989-1999), editado em 1999 pela Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil, vinculada ao MST, considerou: «Aqui se nota a forte crença na divisão social do trabalho, desconsiderando a alienação do trabalho que o modelo taylorista acentuou, como mostra também a ingenuidade de como encarar o desenvolvimento econômico e suas leis» [12]. Penso que a ingenuidade consiste antes em confundir a divisão do trabalho, que fundamenta a produtividade de um processo de produção, qualquer que seja o sistema económico em que ele se insira, com o taylorismo, que constitui um caso específico de divisão do trabalho, restrito a uma dada época do capitalismo. Mas, desistindo das cooperativas de produção e adoptando a agroecologia, o MST podia dispensar os critérios da produtividade.
Os resultados políticos desta nova orientação do MST avaliam-se ao vermos que um dos dez pontos do compromisso assumido pelo Movimento relativamente à questão ambiental proclama: «Praticar a solidariedade e revoltar-se contra qualquer injustiça, agressão e exploração praticada contra a pessoa, a comunidade e a natureza» [13]. Nestes termos o processo de exploração económica, em que se fundamentam as classes sociais, foi assimilado ao aproveitamento da natureza. Ficara aberto o caminho para se passar da luta de classes ao misticismo ecológico.
A apologia da agricultura familiar e a agroecologia surgiram no MST sobre os escombros do cooperativismo e da produção colectiva. Escrevendo em 2002, Alexandre Ribas analisou a evolução da cooperativa do Pontal do Paranapanema e concluiu que «as condições atuais da cooperativa evidenciam uma dificuldade crescente tanto para a manutenção de seus projetos agropecuários como, principalmente, para a finalização da construção de seus projetos agroindustriais» [14]. Pelo que li, penso que não se trata de um caso singular. Por exemplo, Léa Malina mostra amplamente que a Cooperativa de Produção Agropecuária existente na Fazenda Pirituba foi dissolvida em 2000 devido à resistência oposta pelo particularismo familiar dos assentados [15]. A substituição do Procera pelo Pronaf colocou às cooperativas de produção enormes problemas de financiamento e o MST deixou de privilegiar a formação das cooperativas de tipo superior e passou a apresentar como cooperação também as formas tradicionais de entreajuda episódica, que não pautam o conjunto dos processos de trabalho. Foi a partir de então que a direcção do MST deu prioridade às cooperativas de prestação de serviços. É certo que estas formas rudimentares de cooperação poderiam constituir um patamar que ajudasse a atingir gradualmente formas mais desenvolvidas. Mas uma ascensão deste tipo ficou bloqueada pela adopção da agroecologia como tecnologia de cultivo, porque a agroecologia se confundiu aqui com o quadro da economia familiar e permanece nesse quadro. Bastaria esta génese histórica para caracterizar as funções sociais e políticas da agroecologia.
Ao iniciar a nova linha de promoção da agricultura familiar e ao pressionar neste sentido a direcção do MST mediante os créditos do Pronaf, Fernando Henrique Cardoso obteve um notável triunfo estratégico, numa presidência que de resto não se assinalou por grandes êxitos. Como em tantos outros aspectos, o governo Lula prolongou as orientações do governo anterior. As verbas do Pronaf quadruplicaram entre as safras de 2002-2003 e 2006-2007 e a criação do Pronaf Agroecologia, em 2003, abriu caminho para a concessão de créditos à agricultura familiar ecológica. Em 2004 o governo federal elaborou a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, Pnater, e como foi instaurada graças a uma conjugação de instituições públicas, movimentos sociais e ONGs, isto permitiu que organizações ecológicas participassem activamente do processo. Com efeito, segundo o documento oficial que acompanhou o lançamento da Pnater, ela «pretende contribuir para uma ação institucional capaz de implantar e consolidar estratégias de desenvolvimento rural sustentável» e as suas acções «devem privilegiar o potencial endógeno das comunidades e territórios, resgatar e interagir com os conhecimentos dos agricultores familiares e demais povos que vivem e trabalham no campo em regime de economia familiar, e estimular o uso sustentável dos recursos locais» [16]. «O papel do próprio MST e da extensão rural pública (Pnater)», concluiu Juliano Borges, «são [sic] fundamentais para o processo de ecologização das práticas agrícolas» [17].
Notas
[1] Alexandre Domingues Ribas, Gestão Político-Territorial dos Assentamentos, no Pontal do Paranapanema (SP): Uma “Leitura” a partir da COCAMP (Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados da Reforma Agrária do Pontal), dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista, 2002, pág. 226.
[2] Rosemeire Aparecida Scopinho, «Sobre Cooperação e Cooperativas em Assentamentos Rurais», Psicologia & Sociedade, 2007, vol. 19, ed. esp. 1, págs. 84 e 89.
[3] Rosemeire Aparecida Scopinho, op. cit., pág. 92, n. 11.
[4] Rosemeire Aparecida de Almeida, «Procera versus Pronaf: Vejo o Futuro Repetir o Passado…», Geografia, 2000, vol. 9, nº 1, pág. 83.
[5] Juliano Luís Borges, A Transição do MST para a Agroecologia, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Londrina, 2007, págs. 62 e 106.
[6] Rosemeire Aparecida Scopinho, op. cit., pág. 89.
[7] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2000, nº 203.
[8] Fernanda Thomaz, A Organização do Trabalho Camponês na Visão de Clodomir Santos de Morais, XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária, São Paulo, 2009, pág. 2.
[9] Veja aqui.
[10] Veja aqui.
[11] Veja aqui.
[12] Citado em Dominique Michèle Perioto Guhur, Contribuições do Diálogo de Saberes à Educação Profissional em Agroecologia no MST: Desafios da Educação do Campo na Construção do Projeto Popular, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Maringá, 2010, pág. 134.
[13] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2000, nº 203.
[14] Alexandre Domingues Ribas, op. cit., pág. 52.
[15] Léa Lameirinhas Malina, O Campesinato e as Experiências Cooperativistas de Produção do MST: Uma Análise da Área 4 do Assentamento Fazenda Pirituba II, trabalho de graduação individual, Universidade de São Paulo, 2009, págs. 58-69, 72-73 e 79-81.
[16] Citado em Juliano Luís Borges, op. cit., pág. 128.
[17] Id., ibid., pág. 132.
Esta série reúne os seguintes artigos:
1) 1984-1995
2) 1995-2012
3) hoje
Bom, se eu estou entendendo, a questão que vem tentando ser evitada é o quanto a esquerda precisa se organizar também em torno da lógica da produtividade. Parece que o agroecologismo e a produção familiar são como que um contraponto às relações capitalistas de produção, e da aposta da criação do novo sujeito via cooperativismo, em si já delicada, retrocedemos à uma outra aposta, de criar um outro sujeito num tubo de ensaio de outro mundo onde não haja nenhum tipo de mais-valia.
Porque há um ponto aparentemente quase pacífico entre os anticapitalistas engajados na luta de classes, que é o ataque ao modelo de desenvolvimento. Mas atacar o modelo de desenvolvimento e defender que se entre na disputa competitiva pelo mais-valor, pelo fruto do trabalho social, ou seja, admitir que tenhamos que disputar com os capitais, é de certa forma admitir que, ao menos taticamente, teríamos que perseguir sua lógica de funcionamento. Daí, o quanto é possível utilizar para isso outras armas, como a minimização das diversas formas de eploração, e o quanto esta tática pode engendrar uma transformação estrutural, e como, são perguntas sempre incômodas.
Por isso, a idéia de que já temos outro modelo é mesmo mais cômoda. Mas não podemos nos furtar à observação de que o capital também utiliza a seu favor isso que estamos chamando de outro modelo, tanto transformando agricultura familiar em uma forma simples de terceirização, quanto incorporando valor publicitário às práticas ecológicas, quanto simplesmente conseguindo incorporar os financiamentos públicos, sob o resguardo destes mesmos discursos.
Ou seja, não é outro modelo, é apenas a renúncia à competição.
Tomaria, apenas, talvez, o cuidado de não ser contra o ecologismo em si mesmo. Talvez, como questão de saúde, apresentado como o problema do controle público do espaço, dos recursos, do destino dos dejetos, ele seja necessário. O que me parece muito lógico é denunciá-lo como alternativa de desenvolvimento. Em si ele não é, e, provavelmente, nós não temos nenhuma.
Texto realmente proveitoso, instrutivo. Fica claramente delineada o papel da produção familiar e da agroecologia nas lutas do campo. A ecologia, assim, surge como arremate final no processo de destruição interna do potencial revolucionário do MST. De um lado, os inimigos externos: governos, polícias, latifundiários. De outro, os inimigos internos: o particularismo familiar, a agroecologia.
Ler este texto me fez recordar que posturas semelhantes encontramos na educação, com professores defendendo ferrenhamente a sua liberdade individual ao invés de enveredar pela construção coletiva de práticas educacionais alternativas. Num quadro como esse, quem sonha com uma outra educação é atacado externamente pela pedagogia empresarial e internamente pelo individualismo tradicionalista do professorado.
Eu perguntaria a Pior do que imaginávamos, acima, em que, precisamente, consiste o potencial revolucionário de um movimento social.
Ao ler a série te artigos me surgiram algumas inquietações. Não existia dentro das bases do movimento uma resistência a implementação do modelo de cooperativas, sendo desta forma o abandono deste projeto um desejo das bases? Foram estas bases então que conduziram o movimento a defesa da agroecologia, uma vez que tentavam inviabilizar o projeto cooperativista? Ou estas bases ganharam esta configuração a partir da distribuição individualizadas de lotes perpetrada pelo INCRA?
Ainda cabe perguntar se esta base é oriunda da pequena agricultura familiar expulsa das terras? Ou é fruto de trabalhadores ruraiis proletarizados?
Seria esta discussão uma volta ao que foi discutido por Caio Prado Jr ao afirmar que a luta revolucionária no campo deveria abandonar o elemento camponês (que não existia no país) e concentrar-se no proletariado rural?
Legume,
A tese que eu defendo nesta série de artigos, e especialmente neste segundo, é que a viragem do MST para a agroecologia familiar se deveu à conjugação de dois factores: uma base social que sempre se opusera às experiências colectivistas e a nova linha de créditos representada pelo Pronaf. Reforçando a pequena agricultura familiar, o Pronaf liquidou a orientação revolucionária que o MST havia seguido até então. É isto que eu considero uma vitória estratégica de Fernando Henrique Cardoso, cujos efeitos duram até hoje.
Quanto à capacidade revolucionária do campesinato, citam-se geralmente várias experiências. O caso mexicano é sobretudo ilustrativo da maneira como os camponeses perdem uma revolução que ajudaram a fazer. O caso de Makhno, na Ucrânia, singulariza-se apenas pelo facto de Makhno ser um anarquista, mas aquela guerrilha nada teve de especificamente anarquista e não se distinguiu das muitas outras guerrilhas camponesas que então proliferaram por toda a Rússia e que, por não serem vermelhas (bolchevistas) nem brancas (czaristas), eram conhecidas como verdes. Por outro lado, é conveniente saber que durante a guerra civil espanhola, na frente de Aragão, em muitos casos as tropas anarquistas tiveram de recorrer à força para impor o colectivismo nas aldeias por onde passavam. A partir do momento em que obtiveram a hegemonia, as tropas comunistas dissolveram aquelas colectividades e, aliás, o campesinato médio constituiu uma das bases sociais do Partido Comunista Espanhol. O caso da revolução portuguesa em 1974-1975 é elucidativo. O proletariado agrícola do Alentejo ocupou colectivamente os latifúndios onde trabalhava e fundou Unidades Colectivas ou Unidades Cooperativas. Este proletariado agrícola contribuiu decisivamente para o dinamismo do processo revolucionário português. Entretanto, a pequena agricultura familiar manteve-se durante esse período como um dos apoios da direita e da extrema-direita.
Qualquer um que já visitou pelo menos um assentamento rural sabe que há áreas coletivas disponíveis. O problema é que se nos lotes das famílias (privados, portanto) já não se produz muita coisa, e quando se produz a produtividade é muito baixa, sem falar na qualidade do que é produzido que é das piores; nos lotes coletivos o abandono é por completo. Às vezes me parece que elas, as áreas coletivas, só existem para nos provar a impossibilidade dos nossos desejos quando de início era exatamente o contrário. Óbvio está, pelo menos pra mim, que há nos camponeses, e não só neles, uma dificuldade muito grande em criar ou participar de outros modos de produção. Até porque participar de outros modos de produção, para o camponês, forçaria com que ele deixasse de ser o que é. E talvez seja este o entrave maior quando comparada esta realidade com a de um trabalhador urbano, ou até mesmo com a do trabalhador rural. Para o trabalhador urbano é a fragmentação da classe que se coloca como maior empecilho contra qualquer coisa que cheire a coletividade. Mas se isso por si fosse o suficiente para decretar a impossibilidade desta transformação do homem num sujeito capaz de produzir coletivamente e sem hierarquias, não só muitos de nós não perderíamos tempo pensando e falando sobre esta questão, como os próprios capitalistas, e no caso aqui também me refiro a FHC, não comprariam o embate com o MST que entre todos foi o que mais explicitou a luta de classes do Brasil neste período citado no texto. Se não fosse necessário fazer algo contra esta possibilidade remota que insistia em acontecer de coletivização da produção, apesar dos pesares, não existiria PRONAF. O PRONAF, contraditoriamente, expressa uma derrota e uma vitória. Se não fosse assim, era só deixar que as coisas seguissem os rumos ‘determinados’. E claro também me parece que quando posta em prática, não é a maior eficiência da produção coletiva em relação à agricultura familiar, apesar de importante, que deixa os cabelos dos capitalistas de pé, mas sim a possibilidade dos trabalhadores sobreviverem sem a necessidade deles. Com isso não estou a afirmar que os dilemas com que o MST teve que enfrentar nos últimos 20 anos são dos menores. Também não foi esta a interpretação que tirei do texto de João Bernardo. Pelo contrário! Mas o texto foi o primeiro dos que li que consegue articular boa parte dos dilemas enfrentados pelo que vem do mundo rural: o resgate e manutenção do camponês com base na propriedade familiar e ideologicamente apoiada pelo discurso [agro]ecológico, e a consequente ineficiência produtiva desta modo de organizar a produção.
Achei o teu artigo excelente. Apenas algumas pistas/dúvidas para debate:
1) Se a base do MST já estava maioritariamente virada para a postura agrofamiliar (dada a sua inserção classista no pequeno campesinato) como foi então possível a ligação de uma direcção marxista com propósitos colectivistas e portanto distintos dessa base?
2) Por outro lado e em corolário da dúvida anterior, se o que defini acima de modo mto básico se confirma poderemos dizer que a base do MST estaria à direita da direcção e da sua linha política originária? (refiro-me à direcção do primeiro período que abordas no teu texto).
3) não poderemos ver o redireccionamento da política de um possível sector colectivizado para a agricultura familiar e ecológica como o resultado de um recuo das lutas colectivas da base do MST? Ou seja, não terá sido tb o isolamento da luta do MST no campo (e não se conseguindo ligar aos trabalhadores da cidade – como bem frisaste no primeiro artigo) que estaria na base de uma transformação política anteriormente assente num primado socialista (colectivização e ocupação das terras, aposta na aplicação de tecnologia em grandes propriedades, etc.) para uma orientação ligada à defesa da pequena propriedade nos últimos 15-20 anos?
Abraço
Caro Valente de Aguiar,
O facto de durante a primeira fase do MST, empregando a minha periodização, a direcção estar mais à esquerda do que a base não se distingue do que sucede usualmente nos movimentos de carácter socialista, em que a vanguarda é mais radical do que a grande maioria dos participantes. Na prática tem-se procurado resolver este problema de muitas maneiras, mas todas elas situando-se entre dois extremos: ou a vanguarda instaura um aparelho repressivo para coagir a base; ou a vanguarda considera a luta como uma forma de pedagogia, esperando que, através desse processo pedagógico, a base mude de características. O maoísmo — refiro-me ao propriamente dito, que existiu na China, e não àquilo que na Europa se chamou maoísmo — aproximou-se mais desta segunda alternativa. E depois de ultrapassados os confrontos mais agudos com os donos da terra e as forças repressivas, quando as relações de solidariedade firmadas na luta tendem a afrouxar, a luta vista como pedagogia tem um único caminho, o desenvolvimento de relações de solidariedade no processo de trabalho. Uma terra ocupada ou uma fábrica ocupada não são ilhas, estão presas ao capitalismo pelo crédito e pelo mercado, e o crédito é um factor muito mais decisivo do que o mercado. Mas, na minha perspectiva, o factor verdadeiramente determinante são as relações sociais de trabalho. Convencer pequenos camponeses — que não são o antigo proletariado agrícola alentejano! — a passar do trabalho doméstico para o trabalho colectivo, seria este o alvo da luta a longo prazo. É nesta perspectiva que eu considero a alteração verificada no MST entre 1995 e 2000 como uma grave derrota, a desistência dos elementos socialistas perante os elementos retardatários. E a pressão social destes elementos reatardatários foi reforçada, segundo a minha análise, pela política de Fernando Henrique Cardoso e pelos créditos do Pronaf. Chegámos assim a uma situação como a evocada no comentário de DAC, que escreve, referindo-se aos assentamentos: «Às vezes me parece que elas, as áreas coletivas, só existem para nos provar a impossibilidade dos nossos desejos quando de início era exatamente o contrário». Nesta frase é dada toda a dimensão da derrota.
Mas por que motivo, então, a base suportou durante mais de uma década uma direcção mais à esquerda do que ela? Pela sua fragmentação e o seu isolacionismo doméstico, os pequenos camponeses nunca conseguiram unir-se numa luta comum sem terem um chefe exterior. Esse chefe pode ser proveniente de outro meio social, como sucedia na antiga China imperial quando mandarins exilados se punham á frente de revoltas camponesas. Ou pode ser alguém oriundo do meio rural, mas que, por uma vida aventurosa, se marginalizou e adquiriu outro estatuto, como o bandido, o cangaceiro ou o iluminado religioso. É uma situação oposta à dos trabalhadores do meio urbano, que quando começam a lutar fora das burocracias sindicais facilmente escolhem entre eles novas direcções. Os pequenos camponeses estão dependentes de uma chefia exterior, ou exteriorizada, que lhes saiba conferir unidade quando é indispensável e que seja capaz de negociar em nome deles com aquela potência obscura e incompreensível que é a tecnocracia urbana.
Quanto à tua terceira questão, o recúo das lutas no Brasil é geral, o que torna a questão mais grave. Remeto para um artigo recente elaborado pelo colectivo do Passa Palavra: http://passapalavra.info/?p=52448
O problema com as lutas sociais é que elas ocorrem no terreno que a história nos impõe e não naquele que escolheríamos. Talvez seja por isso que muitos políticos gostam de jogar xadrez, porque no tabuleiro as peças lhes obedecem.
pessoal do passa palavra: este é um site do João Bernando ou é um site diverso? não estou dizendo que os textos dele não sejam bons, só estou dizendo que parece um exagero a quantidade de textos dele que surgem aqui. monopólio da palavra no passa palavra?
Algumas dúvidas sobre esta última resposta de João Bernardo:
Dizer que a vanguarda é mais radical do que a maioria dos participantes não é uma tautologia? Afinal se não fossem mais radicais seriam uma pseudo-vanguarda autonominada. Quando a vanguarda instala uma aparelho repressivo ela já não deixa de ser vanguarda? Então a vanguarda verdadeira passa a ser a resistência a pseudo-vanguarda.
Essa história de que os camponeses nunca conseguiram se unir sem ter um chefe exterior, ou de que precisam ser convencidos do que quer que seja, me parece mais próximo da coletivização forçada stalinista do que qualquer tipo de autonomismo. Ou só os operários fabris são capazes da luta autonoma?
Enfim, são algumas questões sinceras…
Caro Felipe,
Não creio que se trate de uma tautologia mas, pelo contrário, de uma dialéctica complexa. Toda a experiência prática de uma luta se resume, afinal, ao equilíbrio que é necessário manter entre o carácter mais extremista e mais audacioso de uma vanguarda e o carácter mais moderado e mais prudente das bases. De longe e a posteriori é relativamente fácil definir o momento em que uma vanguarda se burocratiza e começa a empregar a repressão para forçar as bases a segui-la. E a partir do momento em que a vanguarda institucionaliza a repressão, deixa de ser vanguarda, na sua opinião e na minha, mas não na opinião dessa vanguarda (ou pseudovanguarda) repressiva. Na prática, porém, durante os processos de luta, as coisas são bem mais complexas. O voto de mão no ar é um dos instrumentos sempre usados nas lutas e é considerado parte integrante da democracia directa. Mas este voto de mão no ar constitui uma forma de intimidação exercida sobre os mais moderados e mais temerosos, sobre aqueles a quem o presidente norte-americano Nixon chamou, num discurso de 1969, «maioria silenciosa». E a primeiro-ministro britânica Thatcher proibiu os sindicatos de recorrerem às votações de mão no ar para decidir greves, porque sabia muito bem que este tipo de votações constitui uma forma de coacção que favorece as vanguardas. Então, na próxima vez que você integrar o núcleo activo de uma luta e animar uma assembleia em que as decisões sejam tomadas de mão no ar, como são sempre, terá você passado a fazer parte de uma pseudovanguarda repressiva? A noção de pedagogia da luta surge para tentar encontrar uma solução prática neste equilíbrio muito difícil, para tentar estabelecer um equilíbrio dinâmico. Foi nesta perspectiva que eu analisei, no primeiro artigo, a relação entre as cooperativas de produção agroindustriais e a agricultura familiar nos assentamentos do MST. E foi nesta perspectiva que eu considerei, neste segundo artigo, como uma grave derrota a ruptura daquele equilíbrio dinâmico e a hegemonia absoluta adquirida pela agricultura familiar.
Quanto à sua segunda objecção, acerca da minha afirmação de que os camponeses necessitam de uma condução exterior, que tanto pode ser originária de um meio social diferente como do mesmo meio social, tudo o que eu consigo responder é que essa afirmação decorre do que conheço da história dos séculos XIX e XX e, muito parcialmente, do império chinês e da época da servidão no czarismo russo. O período histórico que estudei com maior detalhe é o da Europa entre o século V e o século XV, e tanto as lutas camponesas, as bagaudae, que puseram termo ao império romano, como as lutas camponesas dos séculos XIV e XV me parecem confirmar aquela regra. Mesmo no século XVII é interessante, por exemplo, estudar nesta perspectiva a revolta chefiada por Masaniello no Reino de Nápoles. Mas se você me indicar casos que de maneira flagrante me contradigam, terei de pensar de novo no assunto. Eu evito chegar a conclusões a partir das minhas opções ideológicas e esforço-me por conhecer e analisar os factos. Talvez por isso os meus livros e artigos são tão mal aceites precisamente por aqueles cujas opções ideológicas são semelhantes ou próximas às minhas. Os factos são sempre incómodos.
Milho convencional rende 93% a mais que o transgênico em SC
da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/milho-transgenico-rende-93-menos-que-o-convencional-em-sc.html
Caro João,
de acordo com a tua resposta. Apenas uma breve observação para discussão. Não achas que, entre muitos outros exemplos possíveis, o caso que retratas no teu livro “Para uma teoria do modo de produção comunista” sobre a Revolução Cultural não é um possível exemplo das massas estarem à esquerda da vanguarda? Concordo com a tua observação sobre o MST e as bases do movimento, mas será que, nos casos em que as bases consubstanciam fortes dinâmicas de desenvolvimento e de tentativa de edificação de novas relações de produção, não se assiste a uma viragem à direita das vanguardas, precisamente para evitar que ocorra a superação das relações sociais que produzem os capitalistas e os gestores? Repara, não estou a tentar fazer prevalecer um qualquer ponto de vista mas, pelo contrário, tenho mais dúvidas do que certezas e tento compreender melhor como se desenvolvem estas dinâmicas.
Outro exemplo será o caso da Revolução Russa onde a dinâmica dos sovietes tinha uma força extraordinária e que, entre outras medidas, a introdução do gestor único nomeado pelo Estado central subverteu toda a democracia de base. Podemos invocar que, se tal aconteceu e se não levantou demasiadas ondas na maioria dos comités de fábrica (pelo menos que eu conheça) é porque ideologicamente o proletariado industrial não teria, eventualmente, a consciência política plena de tais medidas. Até porque essas medidas vinham da organização de vanguarda mais espantosa que o mundo tinha visto até então e que tinha tido um papel relevante no derrube do czarismo. Contudo, será que a prática das bases não estaria à esquerda da (prática da) vanguarda? Refiro-me aqui aos processos revolucionários e não relativamente às lutas fora desses períodos.
abraço
Caro Valente de Aguiar,
Tens toda a razão. Eu enunciei como geral uma regra que se aplica apenas aos períodos de normalidade, entendida como prevalecimento da ordem reinante. Nos períodos de ruptura revolucionária passa-se exactamente o contrário, e as vanguardas da situação anterior têm de correr muito se não quiserem ficar ultrapassadas pela nova dinâmica. Foi o que sucedeu em Portugal em 1974 e 1975. Talvez possa propor a seguinte definição: passa-se da ordem à revolução quando as vanguardas já existentes são ultrapassadas pelo radicalismo das bases. Surgem então novas vanguardas, mas o que sucede depois já é outra história. Desenvolver mais a questão seria tratar do problema da conversão das vanguardas em novas elites e, mediante este processo, do reabastecimento das classes dominantes.
O caso da Revolução Cultural chinesa, que citas, é especialmente interessante porque Mao Tsé-tung ousou desencadear um movimento de massas contra aquela burocracia do Partido e do Estado que lhe era desfavorável. Mas o movimento converteu-se numa revolução contra toda a velha classe mandarinal e procurou aplicar na prática os princípios da Comuna de Paris, para impedir o ressurgimento de uma burocracia. Foi então que Mao teve de convocar o exército como derradeiro bastião da ordem e Lin Piao enquadrou militarmente a Revolução Cultural pondo os jovens a desfilar com o livrinho que nem soldados na parada.
No caso da Rússia, Lenin, que era um excelente dialéctico, o melhor dialéctico prático que eu conheço no marxismo, inverteu completamente a sua posição quando regressou do exílio. Na última conferência que fez antes de regressar, perante as Juventudes Socialistas suíças, ele defendeu o ponto de vista tradicional dos bolchevistas sobre o carácter da revolução russa. Em seguida, com outros exilados que as autoridades alemãs deixaram regressar à Rússia, ele viajou no combóio selado, portanto sem contactos com o exterior. Os únicos contactos que teve foi na viagem de combóio da Finlândia para Petrogrado. E, quando chegou a Petrogrado, tinha alterado a sua perspectiva e fez um discurso que deixou a direcção bolochevista perplexa. Se a memória não me falha, no comité de Petrogrado só o jovem Molotov defendera posições idênticas às que Lenin começou a defender. Vieram então as Teses de Abril e tudo o que se seguiu. Com essa alteração de perspectiva política Lenin conseguiu manter-se na vanguarda nessa época em que todas as massas estavam em ebulição. Um feito politicamente notável.
Mas é necessário não esquecer que aquele proletariado se desintegrou durante a guerra civil. Dissolveu-se socialmente. A paralização da indústria e a fome nas cidades levaram ao desaparecimento da maioria do proletariado industrial tradicional que teve de regressar aos campos para sobreviver. Segundo E. H. Carr, entre 1913 e 1917 o número de assalariados na indústria subira 15%, mas desceu 17% de 1917 para 1918, desceu 41% de 1918 para 1920-1921 e 16% desta última data até 1921-1922. Em suma, o número de assalariados industriais em 1921-1922 correspondia a 41% do que havia sido em 1917. Segundo Alec Nove a descida teria sido ainda mais rápida e o número de operários em 1920 corresponderia a 46% do que fora em 1917. Talvez mais grave fosse o esvaziamento das grandes cidades, que rompeu os tecidos de relacionamento social. Sempre segundo Carr, desde 1917 até ao Outono de 1920 o número dos habitantes de quarenta capitais de província diminuiu 33% e o número de habitantes de cinquenta outras grandes cidades reduziu-se 16%. Quanto maior era a cidade, mais acentuado era o declínio. Em três anos, Petrogrado perdeu 57,5% da sua população e Moscovo, 44,5%. Recordando a situação de Petrogrado em 1919, Victor Serge escreveu que num ano a cidade perdeu 77% dos habitantes. Pasternak, no Doutor Zhivago, retrata bem este processo.
Acho que isto explica o paradoxo que apontas no teu comentário. Foi essa transformação profunda da classe trabalhadora russa que permitiu a Lenin e a Trotsky aplicarem sem peias o autoritarismo político e o centralismo na gestão económica, derrubarem a tendência de Chliapnikov e massacrarem os insurrectos de Kronstadt. Ciliga, que pelo menos nesta matéria é um autor insuspeito, mostra que a classe trabalhadora durante a NEP era completamente diferente daquela que havia feito a revolução.
Sim, é verdade que parte significativa do proletariado russo se desintegrou com a guerra civil. Poderemos então dizer, de um modo um tanto ou quanto simplista, que tendo sido derrotados no plano militar, os brancos conseguiram, contudo, vencer no plano social na medida em que o proletariado que tinha feito a revolução acabou engolido no meio da convulsão e, por conseguinte, acabou por se ver exangue perante a burocratização subsequente à guerra civil?
Caro Valente de Aguiar,
Não creio que os brancos tivessem ganho o que quer que seja. Perderam as fortunas e os empregos, dispersaram-se pelo exílio e politicamente deram muito má conta de si. Eu vejo as coisas desta maneira:
O proletariado industrial soviético reconstituiu-se sobre novas bases durante os anos da NEP, até que o regime chegou a uma crise económica que se arriscava a ser fatal se não tivesse uma solução muito rápida. Foi então que o bureau político staliniano iniciou os planos quinquenais e procedeu a uma industrialização veloz e extensiva. Mas para isso o proletariado existente não era suficiente, tornava-se necessária a utilização maciça de mão-de-obra vinda do campo, e isto só poderia ocorrer se as terras fossem colectivizadas e a agricultura fosse industrializada. Assim, ao mesmo tempo Stalin criou uma nova classe operária, recém-extraída dos campos, e um novo campesinato, formado por camponeses convertidos em operários da agricultura. Ora, Stalin não dispunha do número de tecnocratas necessário para organizar e dirigir este empreendimento, e para isso teve de fazer apelo aos trotskistas. Alguns saíram directamente da cadeia para irem ocupar postos de alta responsabilidade nos ministérios económicos. Foi fundamentalmente por este motivo, e não por causa da repressão, que Trotsky perdeu completamente a sua base de apoio na União Soviética. O velho operariado, aquele que ainda existisse, não tinha nenhuma simpatia por um Trotsky que fora o campeão do autoritarismo político e do centralismo extremo na gestão das empresas. A base política de Trotsky era fundamentalmente composta pela tecnocracia económica, e esta considerou que Stalin estava, embora à sua maneira rude, a realizar na prática o programa trotskista. Por mais que Mandel tivesse querido fugir com o rabo à seringa, a colectivização que o bureau político staliniano realizou nos campos constituiu a aplicação da tese da «acumulação socialista primitiva» defendida por Preobrazhensky. Mas é claro que Stalin, que já de si não era propenso a confiar em ninguém, não tinha a menor confiança na tecnocracia vinda do trotskismo e que à última hora aderira ao seu programa. Por isso, durante o primeiro plano quinquenal Stalin procedeu à formação acelerada de engenheiros extraídos directamente do operariado. Quando teve o número suficiente destes novos tecnocratas deu início aos grandes expurgos, de que os processos de Moscovo constituíram a faceta mais aparatosa. Liquidou assim a antiga tecnocracia trotskista e subtituiu-a por uma nova tecnocracia oriunda do meio operário. Não conheço na história uma operação de engenharia social comparável. Em dez anos estava criado um novo operariado, um novo campesinato e uma nova classe dos gestores.
Quando me referia a uma “vitória” dos brancos estava a falar num sentido figurado. Ou seja, a razia na classe operária que fez a revolução permitiu precisamente o que falaste no final do teu comentário: «um novo operariado, um novo campesinato e uma nova classe dos gestores». Em suma, apenas quis enfatizar o papel da guerra civil na liquidação das bases que tentaram edificar novas relações sociais de produção, facto que me parece decisivo para se compreender a evolução subsequente.
Caro João
Considerando o que você fala no parágrafo sobre a contradição entre o sucesso e prolongamento das lutas e a necessidade de crédito, junto com os comentários acerca da conversão das vanguardas em instituições repressivas, à esquerda ou direita, você fala em mitigar os problemas causados.
No que se refere ao crédito, que formas seriam essas de mitigar esse problema?
Tendo em vista essa relação complexa entre as bases e a vanguarda (tanto nos movimentos rurais como nos urbanos).
E ainda, a captura e a burocratização dos movimentos, como você bem disse, se da em todos os lugares e à qualquer época. Esse processo significa a redução da massa total de pessoas com a predisposição ideológica a (re)integrar um movimento semelhante. Historicamente falando, vê-se a recuperação da capacidade desses movimentos de agregar novamente número suficiente de adeptos para se articular efetivamente?
Caro Gabriel,
João Bernardo comunicou ao Passa Palavra que está impossibilitado de responder e assim que puder o fará.
Atenciosamente,
Passa Palavra
Não há pressa. Agradeço a consideração o João e a vocês pelo recado passado.
Abraços
Caro Gabriel,
A obtenção de crédito bancário por uma luta ou um movimento social pode dever-se a dois processos, opostos na sua génese, embora eventualmente convirjam nos resultados:
1) Através de pressões decorrentes da luta. É possível observar os vaivéns deste jogo de forças, por exemplo, durante a revolução portuguesa de 1974-1975, quando as empresas ocupadas e autogeridas, tanto industriais como agrícolas, se esforçavam por obter créditos de um sistema bancário que nessa época era controlado por um sindicato dominado pelo Partido Comunista, defensor das nacionalizações e avesso às ocupações com autogestão. Você encontra elementos para a compreensão deste confronto no jornal Combate: https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/combate/index.htm .Trata-se, porém, de uma situação precária, porque ou o processo revolucionário avança, e então o sistema financeiro muda de características e as suas instituições são reestruturadas, ou recua, e neste caso a dependência relativamente ao crédito constitui um dos mais importantes instrumentos de recuperação e assimilação das lutas pelo capitalismo.
2) Através da integração dos movimentos coordenadores da luta na base política do governo. Deste modo as pressões são imediatamente assimiladas pelo sistema capitalista, tanto no plano político como no económico. Foi o que sucedeu no Brasil em 2003-2016 com o MST e depois com o MTST. No caso do MST, o mais relevante, o elevado grau de integração política pode avaliar-se ao vermos que a empresária agro-pecuária Kátia Abreu foi ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no segundo governo de Dilma Rousseff, enquanto o MST continuava a pertencer à base de apoio desse governo. E o elevado grau de integração económica do MST no capitalismo avalia-se pela sua conversão numa empresa, ou numa constelação de empresas, como o Passa Palavra analisou na série de artigos MST S.A.: http://passapalavra.info/2013/04/97506/
Quanto à sua segunda questão, em meu entender a dialéctica luta → recuperação → assimilação nunca apresenta a forma de um círculo vicioso, mas sempre de uma espiral. Uma nova vaga de lutas constitui para os capitalistas um desafio, colocando-lhes novos problemas e obrigando-os a reestruturarem-se. Por sua vez, a recuperação de uma luta e a sua assimilação pelos empresários representa um desafio para os trabalhadores, que têm de responder à nova situação com novos tipos de luta. E assim sucessivamente, enquanto houver capitalismo.