Por João Bernardo
Logo que se difundiram as experiências agroecológicas no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, os universitários começaram a enxamear os assentamentos e a obter uma influência crescente na orientação do Movimento. Tinham-se mantido a uma distância prudente durante a fase das cooperativas de produção, mas quando o MST inverteu o rumo e se converteu à agricultura familiar, os ecológicos compreenderam, e com razão, que teriam ali um quadro de acção privilegiado.
Entretanto, o sistema pedagógico que o MST havia desenvolvido nos assentamentos, e que permitira uma renovação de consciência interna aos sem-terra, descaracterizou-se ao ser assimilado pelos departamentos universitários, que o integraram nas suas actividades curriculares. Estas coisas medem-se com números. Os recursos destinados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, Pronera, e às suas parcerias com universidades e escolas técnicas públicas passaram de 10 milhões de reais em 2003 a uma média anual de 35,4 milhões nos quatro anos seguintes. A tal ponto que em 2008 o MST afirmou, referindo-se ao sector de educação, «percebemos que o setor já não conhece a realidade das escolas, especialmente as dos assentamentos» [1]. Mas como resolver o problema se ele é agravado pelo afluxo de universitários, exteriores aos assentamentos? Nem sequer menciono aqui os inúmeros técnicos enviados por instituições governamentais, porque esses vão anexos aos créditos e uns não ficam disponibilizados sem os outros. Quando ocorre um contacto entre instituições e pessoas pertencentes a classes sociais distintas, com facilidade interferir significa despossuir. Foi o que sucedeu neste caso e o eixo social mudou.
O facto de o afluxo de estudantes e jovens licenciados aos assentamentos só ter ocorrido na segunda fase do MST é um indicador precioso tanto dos objectivos de classe destes universitários como das características sócio-políticas que o MST passou a ter. Com efeito, a crescente burocratização interna do MST é inseparável da colocação de universitários em postos directivos. Trata-se de dois processos convergentes. De um lado, a passagem de militantes de vanguarda a profissionais da negociação e da distribuição de recursos converteu-os em novos gestores. Do outro lado, atribuíram-se cargos de responsabilidade a universitários formados como gestores e tecnocratas, cuja aproximação ao Movimento se deu não para o apoiar em confrontos difíceis mas para desempenhar funções de formação, ou seja, técnicos formando técnicos e multiplicando assim o número de gestores. Não se trata aqui de ideologias perversas nem de más intenções. Estes processos devem ser analisados estritamente nas suas implicações sociais, porque em geral as actuações práticas nefastas fazem-se acompanhar pela candura de espírito e por belos ideais. Se as consequências da acção social decorressem da consciência individual, a historiografia seria demasiado fácil e a história teria seguido outros rumos.
Adoptando oficialmente a agroecologia no seu 4º Congresso Nacional, em 2000, o MST passou a revalorizar as técnicas arcaicas e o tradicionalismo camponês. «Saberes e práticas que vinham sendo considerados, pelo MST, inadequados à realidade dos assentamentos rurais, por mais de uma década, passaram a ser resgatados como princípios fundamentais da agroecologia», comenta Juliano Borges [2]. Foi uma completa inversão social e tecnológica que o MST operou, correspondente ao que se pode considerar um segundo nascimento, surgindo uma organização diferente da que havia existido. Abandonando o projecto revolucionário inicial, que consistia em forjar nas lutas um novo sujeito colectivista e modernizador, o MST demitiu-se perante o sujeito tradicional arcaico e doméstico e reconstruiu a partir daí a sua orientação económica. Ao mesmo tempo operou-se uma significativa alteração vocabular. «[…] a expressão “trabalhadores rurais” não sobreviveu na própria sigla, que desde o final da década de 1980 passou a ser MST. Desde meados da década de 1990 (especialmente por causa da fundação da Via Campesina), a expressão “camponês” aparece cada vez mais nas falas e nos documentos do MST» [3]. O eixo de classe havia-se alterado.
Um dos argumentos mais usados pelos defensores da agroecologia é o de que a modernização tecnológica é capital-intensiva e que, dada a abundância relativa de mão-de-obra nos assentamentos, convém optar por uma solução trabalho-intensiva. Isto tem sido incessantemente repetido pelo MST desde que adoptou a agroecologia, mas é esclarecedor verificar que, segundo Enid da Silva, «a idéia-força que sustentou a criação do PRONAF na esfera governamental foi o reconhecimento da capacidade da agricultura familiar em absorver mão-de-obra, o que a transformou em opção privilegiada para combater parte dos problemas sociais urbanos provocados pelo desemprego rural» [4]. Com os financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, Pronaf, vieram não só a opção agroecológica mas também a argumentação que a sustenta.
Ora, por um lado, esta fixação de um excedente demográfico nos campos, e em condições de se alimentar a si próprio graças à agricultura de subsistência, constitui para o capitalismo uma interessante economia na manutenção da reserva de força de trabalho, indispensável para a elasticidade do mercado de emprego. Os capitalistas preferem que aquelas pessoas se esfalfem a produzir o que mal lhes chega para comer do que venham para as cidades reclamar subsídios de desemprego. Por outro lado, como a preferência por uma solução trabalho-intensiva implica uma escassa produtividade, as horas de trabalho multiplicam-se, tanto mais que são efectuadas sobretudo por membros da família, que não as contabilizam como um custo. A jornada de trabalho é mais longa na economia familiar do que na economia empresarial. Isto significa que desde o início a agroecologia foi pensada e proposta dentro do quadro da mais-valia absoluta.
É necessário considerar que numa época em que está completamente integrada no capitalismo tanto através do crédito como através do mercado onde adquire os meios de produção e daquele onde escoa os produtos, a economia familiar perde qualquer independência e insere-se nos mecanismos gerais de extorsão da mais-valia. Não há aqui oportunidade para traçar, mesmo que sumariamente, os mecanismos desta articulação. Limito-me a enunciar a principal consequência. Procedendo a uma rápida incursão na linguagem técnica, uma formação económico-social, ou seja, uma estrutura com um modo de produção dominante e vários regimes económicos subordinados, converte-se numa diversidade interna ao modo de produção dominante quando o ascendente deste ultrapassa um certo ponto. Deixa então de se tratar de formação económico-social e passa a tratar-se de desenvolvimento desigual e combinado. É o que sucede hoje com a economia familiar, quer se localize no campo quer nas cidades. A mitificação do mundo rural contemporâneo, considerando-o uma espécie de ilha de resistência ao capitalismo que o cerca por todos os lados, serve para escamotear a enorme soma de trabalho gratuito executado pelos camponeses e de que os capitalistas se apropriam enquanto mais-valia absoluta. Todas as propostas ecológicas conduzem directa ou indirectamente ao aumento da extorsão da mais-valia absoluta, daí o seu fascínio para os sectores económicos em crise ou, mais globalmente, nas épocas de crise.
A nova orientação agroecológica do MST implica que, centrando-se no quadro familiar tradicional, o Movimento despreza qualquer mobilização dos assalariados do agronegócio ou até uma simples aliança com eles. Em termos económicos compreende-se este desprezo. Como observei no primeiro artigo desta série, tudo o que reforce os direitos da mão-de-obra representa para os empresários do agronegócio um acréscimo dos custos salariais e pressiona-os a aumentar a produtividade, ou seja, a desenvolver a modernização capitalista nos campos. Ora, é precisamente este resultado que o campesinato tradicional quer acima de tudo evitar. No antagonismo de interesses entre as explorações camponesas familiares e o proletariado rural, vemos o lado que o MST escolheu.
A decisão do MST de aceitar a resistência erguida pelo tradicionalismo rural ao processo de modernização inseriu-se no ambiente multiculturalista que entretanto se tornara dominante nas universidades brasileiras e de todo o mundo, na área das ciências sociais. O multiculturalismo supõe dois axiomas: que o facto de uma cultura existir ancestralmente é razão suficiente para que deva continuar a existir no futuro; e que o facto de uma cultura estar hoje ameaçada implica que nunca foi ameaçadora. Para um historiador o primeiro axioma é o mais estranho, porque se algo dura há muito tempo é um indício seguro de que se aproxima do fim, quer pela extinção quer pela sobrevivência em formas degeneradas. Aliás, frequentemente as culturas promovidas pelos multiculturalistas consistem em trágicos arremedos do que outrora havia tido vitalidade. Valerá a pena embalsamar cadáveres de culturas, usadas como cobaias em dissertações e teses? Quanto ao segundo axioma, não conheço nenhum estudo concreto que não mostre que qualquer cultura se gerou a partir da destruição e assimilação de outras culturas. É porque nega o carácter plástico e metamorfoseador das culturas que o multiculturalismo acentua as identidades culturais e se mantém alheio à história comparativa, contribuindo para o vasto movimento de desestruturação do tecido histórico e de redução da história a um exercício descritivo.
O pior é que os esforços destes universitários para manter artificialmente as tradições em crise correspondem a uma fragmentação ideológica dos trabalhadores. O objectivo último dos multiculturalistas é o de se opor à formação de uma consciência unificada da classe trabalhadora mundial e, portanto, de se opor a uma cultura trabalhadora unificada. Os multiculturalistas pretendem reforçar o que denominam identidades, enquanto o projecto socialista de criação de um ser humano novo deve procurar que as diferenças culturais ou de cor de pele ou de sexo ou de preferências sexuais não sejam tomadas como caracteres pertinentes. Uma coisa é considerar a sociedade como uma colecção de divisões, outra coisa muito diferente é considerá-la como uma possível superação das divisões. Mas, curiosamente, os multiculturalistas encaram o desenvolvimento do capitalismo e a desagregação dos outros sistemas de produção subordinados exclusivamente sob o prisma da expansão da cultura capitalista — isto quando não a apresentam etnicamente como expansão da cultura ocidental. Mas abstêm-se cuidadosamente de considerar que ao mesmo tempo que se difunde uma cultura capitalista tecnocrática, mundialmente homogénea, criam-se também as bases para a possível formação de uma cultura mundial da classe trabalhadora. Para os multiculturalistas parece ser essa a única cultura que não tem direito de começar a existir.
Porém, para que as estratégias ideológicas tenham resultado é necessário que se alicercem em bases práticas. Neste caso, a base prática do multiculturalismo é a compartimentação das lutas sociais. A passagem de uma estratégia de luta conjunta para uma estratégia de lutas fragmentadas, representada pelo multiculturalismo, corresponde à perda de iniciativa dos trabalhadores, que deixaram de ter qualquer influência na orientação da sociedade globalmente considerada. A forma ideal do multiculturalismo é a de um armário com muitas gavetas e cada luta dentro da sua gaveta. Ao MST ficou destinada a gaveta dos pequenos camponeses, e se um número cada vez maior de pequenos camponeses abandona o campo e se dirige para as cidades, entra então na gaveta destinada à luta nas periferias urbanas.
Esta orientação transparece na atitude que o MST passou a adoptar relativamente às cidades, considerando-as globalmente como dissolutoras e pecaminosas. O Movimento, que durante a sua fase anterior se havia interessado activamente pela situação da antiga mão-de-obra rural emigrada para as cidades e que neste sentido havia promovido a criação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, MTST, considera agora que «mais de 300 mil trabalhadores e trabalhadoras foram expulsos das áreas rurais. Parte destas pessoas migraram para as periferias das grandes cidades, abrindo caminho para o aumento da criminalidade, da população carcerária, do desemprego e da prostituição» [5]. Este retrato está muito longe, felizmente, de corresponder à realidade, mas constitui um excelente indicativo da mentalidade que o MST adoptou, opondo à cidade, vista como um coio de vícios, o meio rural tradicional, considerado como fonte de virtudes. Também por este lado fica comprometida a unidade da classe trabalhadora.
É neste novo contexto que deve ser apreciada a reivindicação de soberania alimentar, correspondente à preocupação multiculturalista de fragmentar as sociedades e as lutas. Sob o ponto de vista histórico, esta reivindicação foi um dos temas dos nacionalismos entre as duas guerras mundiais, nomeadamente dos fascismos, como salientei num artigo publicado neste site [6]. Mas interessa-me agora chamar a atenção para os aspectos económicos. Os defensores da soberania alimentar propõem um elevado grau de isolamento do país relativamente ao comércio internacional de bens alimentares. João Pedro Stédile, por exemplo, defende que no que diz respeito aos alimentos se deve «dar prioridade ao mercado interno» [7], e como se trata do mais conhecido membro da coordenação nacional do MST, esta tomada de posição poupa-me uma longa lista de outras citações.
Mas a reivindicação de soberania alimentar é verdadeiramente criminosa. Quando os agroecológicos, incluindo o MST, protestam contra um sistema agropecuário vocacionado em grande medida para a exportação, não estão apenas a demonstrar a mais cruel indiferença para com a alimentação dos povos estrangeiros. Estão igualmente a comprometer a capacidade de alimentar a população do próprio país. Actualmente, as fomes catastróficas não se devem à falta de alimentos mas à ausência de capacidade para importar os alimentos. Por vezes existem alimentos suficientes no próprio país onde a fome se declara, mas a região atingida não tem condições sociais nem infra-estrutura material para os importar. Implicando um grau de isolamento perante o mercado, a soberania alimentar é uma porta aberta para a insegurança alimentar. É elucidativo ver defensores da agroecologia e do MST reclamarem contra a redução das tarifas aduaneiras praticada no Brasil a partir da última década do século XX, com o argumento de que baixaram o preço dos alimentos no país, o que arruinou muitos pequenos camponeses. Mas aparentemente não reflectem que os elevados preços praticados por uma agricultura familiar com baixíssima produtividade prejudicam o consumo da generalidade da população. São estes os paradoxos da soberania alimentar.
Como tantas vezes sucede, as correntes políticas dão voltas de cento e oitenta graus. Em 1815 foram promulgadas na Grã-Bretanha as corn laws, ou seja, a legislação sobre os cereais, impondo tarifas aduaneiras elevadas para evitar que os agricultores da ilha sofressem a concorrência de agricultores estrangeiros que produziam cereais a preços inferiores. As corn laws eram sem dúvida uma forma de soberania alimentar, e contra elas se pronunciavam os comerciantes, que viam ali um estorvo à sua actividade, e os industriais, pois a manutenção dos preços dos cereais num nível elevado fazia com que tivessem de pagar salários mais altos do que gostariam. Mas convém saber que o proletariado britânico lutava igualmente contra as corn laws, porque sabia que sem elas os preços dos alimentos desceriam. Depois de muitas petições, agitação e movimentos de massa, o parlamento britânico votou finalmente a abolição das corn laws em 1846. Dois anos mais tarde Karl Marx pronunciou em Bruxelas um discurso, depois editado em folheto, celebrando a abolição das corn laws e defendendo o livre comércio:
«Impor tarifas proteccionistas aos cereais estrangeiros é uma infâmia, é especular com a fome dos povos», declarou o fundador do socialismo moderno, que não gostava de meias palavras. Mas em seguida Marx dedicou-se a mostrar que a diminuição do preço do pão levaria os industriais a baixarem os salários e desvendou a contradição entre classes existente na reivindicação do livre comércio. «Os operários ingleses compreenderam muito bem o significado da luta entre os proprietários fundiários e os capitalistas industriais. Sabem muito bem que o preço do pão deveria baixar para que os salários baixassem e que o lucro industrial aumentaria na mesma medida em que a renda da terra descesse». Que concluir então? «Não pensem, meus senhores, que ao criticar a liberdade de comércio temos qualquer intenção de defender o proteccionismo. […] o sistema proteccionista não é senão um meio de estabelecer a grande indústria num dado país, ou seja, de o tornar dependente do mercado mundial; e a partir do momento em que fica estabelecida a dependência relativamente ao mercado mundial, já se está mais ou menos dependente do livre comércio. Além disso, o sistema proteccionista contribui para desenvolver a concorrência e o livre comércio no interior de um país. […] Mas em geral o sistema proteccionista dos nossos dias é conservador, enquanto o sistema de livre comércio é destruidor. Ele desagrega as velhas nações e leva a um ponto extremo o antagonismo entre o proletariado e a burguesia. Numa palavra, o sistema de liberdade comercial acelera a revolução social. É só neste sentido revolucionário, meus senhores, que eu voto a favor do livre comércio» [8].
Esta perspectiva em que Marx encarou o livre comércio constituiu mais tarde um dos eixos de O Capital. Mas os discípulos contemporâneos de Marx rodopiaram para a posição oposta. Será que o sabem? Foram estes mesmos cento e oitenta graus que o MST percorreu ao passar da insistência nas cooperativas de produção e na modernização tecnológica para a opção pela agricultura familiar e pela agroecologia.
Notas
[1] O MST e a Escola, Seminário do Coletivo Nacional de Educação, Brasília: Junho de 2008.
[2] Juliano Luís Borges, A Transição do MST para a Agroecologia, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Londrina, 2007, pág. 5.
[3] Bernardo Mançano Fernandes, «O MST e as reformas agrárias do Brasil», OSAL, 2008, ano IX, nº 24, pág. 75.
[4] Enid Rocha Andrade da Silva, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Relatório Técnico das Ações Desenvolvidas no Período 1995/1998, Texto para Discussão Nº 664, Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, Agosto de 1999, pág. 6.
[5] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2006, nº 264.
[6] Veja aqui.
[7] Veja aqui.
[8] Veja aqui.
Esta série reúne os seguintes artigos:
1) 1984-1995
2) 1995-2012
3) hoje
A respeito de a consciência se chocar com a realidade recordo que eu era uma militante de grande vulto, lutadora incansável, 245 horas por dia e que me dedicava a organizar lutas, atos, debates etc. Buscando me instruir para a luta, fui para a universidade. Lá, ainda lutei muito, mas depois de formada e com o novo quadro salarial, não mais miserável, desapareceu boa parte de minha revolta e de minha energia revolucionária. Eu me auto-enganei.
Esta série de textos deve ser assumida como nota de rodapé do “Manifesto das Organizações Sociais do Campo”. Divulgado há cerca de um mês – e assinado pelo MST, APIB, CÁRITAS, CIMI, CPT, CONTAG, FETRAF, MAB, MCP, MMC e MPA – o documento é a síntese do quadro que João Bernardo evidencia.Infelizmente.
Segue abaixo:
MANIFESTO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DO CAMPO
As entidades: APIB, CÁRITAS, CIMI, CPT, CONTAG, FETRAF, MAB, MCP, MMC, MPA e MST, presentes no Seminário Nacional de Organizações Sociais do Campo, realizado em Brasília, nos dias 27 e 28 de Fevereiro de 2012, deliberaram pela construção e realização de um processo de luta unificada em defesa da Reforma Agrária, dos direitos territoriais e da produção de alimentos saudáveis.
Considerando:
1) O aprofundamento do capitalismo dependente no meio rural, baseado na expansão do agronegócio, produz impactos negativos na vida dos povos do campo, das florestas e das águas, impedindo o cumprimento da função socioambiental da terra e a realização da reforma agrária, promovendo a exclusão e a violência, impactando negativamente também nas cidades, agravando a dependência externa e a degradação dos recursos naturais (primarização).
2) O Brasil vive um processo de reprimarização da economia, baseada na produção e exportação de commodities agrícolas e não agrícolas (mineração), que é incapaz de financiar e promover um desenvolvimento sustentável e solidário e satisfazer as necessidades do povo brasileiro.
3) O Agronegócio representa um pacto de poder das classes sociais hegemônicas, com forte apoio do Estado Brasileiro, pautado na financeirização e na acumulação de capital, na mercantilização dos bens da natureza, gerando concentração e estrangeirização da terra, contaminação dos alimentos por agrotóxicos, destruição ambiental, exclusão e violência no campo, e a criminalização dos movimentos, lideranças e lutas sociais.
4) A crise atual é sistêmica e planetária e, em situações de crise, o capital busca saídas clássicas que afetam ainda mais os trabalhadores e trabalhadoras com o aumento da exploração da força de trabalho (inclusive com trabalho escravo), super exploração e concentração dos bens e recursos naturais (reprimarização), flexibilização de direitos e investimento em tecnologia excludente e predatória.
5) Na atual situação de crise, o Brasil, como um país rico em terra, água, bens naturais e biodiversidade, atrai o capital especulativo e agroexportador, acirrando os impactos negativos sobre os territórios e populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas. Externamente, o Brasil pode se tornar alavanca do projeto neocolonizador, expandindo este modelo para outros países, especialmente na América Latina e África.
6) O pensamento neodesenvolvimentista centrado na produção e no lucro, defendido pela direita e por setores de esquerda, exclui e trata como empecilho povos indígenas, quilombolas e camponeses. A opção do governo brasileiro por um projeto neodesenvolvimentista, centrado em grandes projetos e na exportação de commodities, agrava a situação de exclusão e de violência. Consequentemente não atende as pautas estruturais e não coloca a reforma agrária no centro da agenda política, gerando forte insatisfação das organizações sociais do campo, apesar de pequenos avanços em questões periféricas.
Estas são as razões centrais que levaram as organizações sociais do campo a se unirem em um processo nacional de luta articulada. Mesmo reconhecendo a diversidade política, estas compreendem a importância da construção da unidade, feita sobre as bases da sabedoria, da maturidade e do respeito às diferenças, buscando conquistas concretas para os povos do campo, das florestas e das águas.
Neste sentido nós, organizações do campo, lutaremos por um desenvolvimento com sustentabilidade e focado na soberania alimentar e territorial, a partir de quatro eixos centrais:
a) Reforma Agrária ampla e de qualidade, garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas e comunidades tradicionais: terra como meio de vida e afirmação da identidade sociocultural dos povos, combate à estrangeirização das terras e estabelecimento do limite de propriedade da terra no Brasil.
b) Desenvolvimento rural com distribuição de renda e riqueza e o fim das desigualdades;
c) Produção e acesso a alimentos saudáveis e conservação ambiental, estabelecendo processos que assegurem a transição para agroecológica.
d) Garantia e ampliação de direitos sociais e culturais que permitam a qualidade de vida, inclusive a sucessão rural e permanência da juventude no campo.
Este é um momento histórico, um espaço qualificado, com dirigentes das principais organizações do campo que esperam a adesão e o compromisso com este processo por outras entidades e movimentos sociais, setores do governo, parlamentares, personalidades e sociedade em geral, uma vez que a agenda que nos une é uma agenda de interesse de todos e todas.
Brasília, 28 de Fevereiro de 2012.
APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil
CÁRITAS Brasileira
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CONTAG – Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura
FETRAF – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens
MCP – Movimento Camponês Popular
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Via Campesina Brasil
João Bernardo,
Com respeito ao abandono do cooperativismo adepto da modernização no campo, não terá sido o movimento influenciado pelo medo de converter-se, caso lograsse expandir-se no tocante à acumulação de valor, em um ornitorrinco, conforme Francisco de Oliveira apontou ter ocorrido ao sindicalismo?
Talitha,
Não creio que tenha sido esse o motivo, pelas razões seguintes:
1) Há exactamente vinte e cinco anos publiquei o livro Capital, Sindicatos, Gestores (São Paulo: Vértice, 1987) e há quatro anos publiquei, junto com Luciano Pereira, o livro Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008). Nesses livros mostro, aliás mostramos, que os sindicatos em todo o mundo — e igualmente no Brasil, qualquer que seja a central sindical a que pertençam — procedem a colossais investimentos capitalistas. A burocracia sindical não é socialmente indeterminada, camparável a um ornitorrinco. Pelo contrário, faz parte da classe capitalista dos gestores, como quaisquer outros administradores de empresa. Ora, o MST e os outros movimentos sociais não têm nenhuma possibilidade de proceder, a curto ou médio prazo, a investimentos dessa dimensão.
2) Mas talvez a vontade não lhes falte, e não me parece que a agroecologia afaste o MST dos perigos do capitalismo. Muito pelo contrário. O MST está neste momento a conduzir uma campanha para que o governo federal o aceite como fornecedor oficial dos chamados alimentos orgânicos para a Copa. Se isto suceder, representará o acesso do MST a um grande mercado, muitíssimo maior do que aquele com que poderia sonhar na fase das cooperativas de produção voltadas para a agroindústria. E mesmo que isso não suceda, o que importa aqui são as intenções.
3) De qualquer modo, para um movimento social, a inserção no capitalismo através do mercado é secundária relativamente à inserção através do crédito, e tanto o MST como alguns outros movimentos sociais se tornaram dependentes de instituições de crédito governamentais. Aliás, uma das vias mais graves de burocratização de um movimento consiste precisamente na formação de uma camada de militantes especializados na gestão desses créditos.
Pois bem, peço perdão mas da sua resposta minha compreensão só atinge, creio, o segundo item. Diante dele eu reformularia a pergunta da seguinte maneira: quais são os perigos do capitalismo, e há, por acaso, um caminho seguro para permanecer distante deles e, ainda, ter instrumentos para enfrentá-lo?
Talitha,
Não creio que haja quaisquer instrumentos seguros. Num capitalismo generalizado e mundializado, como aquele em que vivemos, não existem ilhas não capitalistas. Todas as formas de luta correm o risco de ser recuperadas pelas classes dominantes. Daí a necessidade da análise crítica, que se esforce por mostrar as contradições das organizações e dos movimentos. Contrariamente ao que pensam aqueles que defendem que as críticas não devem ser públicas, mostrar as contradições não fragiliza os movimentos, porque as contradições não são inventadas por quem as critica, elas já existem. Mostrar as contradições reforça os movimentos, porque permite desenvolver uma luta no interior dos movimentos contra a sua recuperação pelo capitalismo. Pelo menos é assim que eu considero a estratégia revolucionária, desde há muitos anos: uma luta, dentro da luta, dentro da luta…
Este último comentário chama a atenção para um aspecto fulcral que pode desanimar alguns mas que me parece absolutamente correcto: ou as lutas sociais dos trabalhadores conseguem edificar novas relações sociais e, por conseguinte, conseguem reproduzi-las e expandi-las ou a possibilidade de as novas formas institucionais criadas pela classe trabalhadora nos contextos revolucionários correm um sério risco de apropriação pelo capitalismo. E a questão de se mostrar as contradições e as ambiguidades da luta revolucionária é sempre um aspecto absolutamente essencial.
João Bernardo: assim como as relações entre a situação de mais-valia absoluta e ‘produção familiar’, você também não teve espaço no artigo para desenvolver a suposta relação funcional (ou melhor: funcionalista) entre “multiculturalismo” e fragmentação dos trabalhadores?
Aliás “multiculturalismo” é conceitualizado de modo muito estranho: pois parece que você constrói um boneco de palha, um saco de pancadas que supostamente existiria nas ciências sociais. Poderia citar os autores multiculturalistas, para ao menos termos uma base textual?
Essas ideias que você apontou de “defesa de identidades” ou o capitalismo (ou ‘sistema mundo’) em contraposição a “culturas” (que você parece pressupor que são todas arcaicas) não é de modo algum dominante nas ciências sociais. E principalmente na antropologia, aquela que você (e uma leitora mal-informada, citando uma matéria tosca) acusaram sem citarem e analisarem direito.
vida digna é o que todo mundo quer. o problema nao é sair da vida miserável, mas sim entrar num estilo de vida de ´´acumulaçãao de bens´´… abraço
Penso que este é o ponto cego e de ruptura do marxismo: campesinato, mito e natureza (contra estes dois últimos que o iluminismo prefere assestar sua artilharia). Estou falando do marxismo mais combativo e resoluto, que considera qualquer desenvolvimento na antropologia e no multiculturalismo como enganador. E acaba preconizando ao campesinato o seu desaparecimento como existência social, simplesmente porque não se enquadra nos seus modelos históricos!! Ainda sugerir ao campesinato para sair do seu “particularismo familiar” para adentrar numa solidariedade ampla através da introdução numa lógica capitalista ou sua intensificação é a quadratura do círculo. Esta crítica é semelhante ao dos anarquistas quando consideram absurda a proposta do socialismo estatal do desaparecimento do Estado através da tomada de seu poder.
Tenho severas ressalvas as ponderações no texto de JB. Tamanha angústia pelo que designa como sendo o “segundo nascimento do MST”, isto é, a virada ecológica do movimento (e não somente do movimento), entendo como uma tentativa deliberada de negar o movimento do movimento para além de uma visão ortodoxa e liner do desenvolvimento e da revolução marxistas. O autor menciona o conceito de agroecologia sem conhecer efetivamente seus pressupostos, por isso entende-a como arcaica, reacionária, assim como seu sujeito, o campesinato. Nesses termos, a agroecologia, que para a via campesina, o MST e milhares de camponeses e camponesas no mundo (organizados ou não em movimentos sociais) consolida-se como um modelo de desenvolvimento combativo, multidimensional e trasescalar, numa visão mais estreita da ortodoxia marxista, significa apenas “uma volta à natureza”, parafraseando Neil Smith.
Penso que a virada agroecológica do MST incita-nos a deixar de lado as mágoas vindas da decadência de uma teoria revolucionária feita na indústria e para cidade, e convida-nos a entender esse movimento complexo e os novos significados para a revolução.
Enquanto lia a série inteira, uma questão não me saía da cabeça. Me parece que além dos fatores externos, entre os quais o financiamento tem papel fundamental, há um fator interno de grande peso a ser considerado.
Não são poucas as cartilhas de formação sindical rural assinadas conjuntamente pela CPT, pelo MST e pela CUT nas décadas de 1980 e 1990 a indicar a necessidade imperiosa da formação de lideranças, resolvida através de um massivo processo político-pedagógico que envolveu não apenas a participação em cursos no Instituto Cajamar e em tantas outras escolas de formação sindical de então, mas também a progressiva inserção dos militantes de base nos quadros organizativos do movimento.
Ora, se o MST foi fundado em 1984 e só vem a se tornar uma força política nacional nos primeiros anos da década de 1990, aquelas primeiras lideranças formadas na década de 1980 tiveram tempo suficiente para trocar seu papel de militante de base pelo de dirigente político através da ascensão nos cargos internos do movimento. Coordenadores de acampamento/assentamento viram coordenadores regionais, que viram coordenadores estaduais, e assim por diante, num processo seletivo misto de eleição e cooptação. Isto tudo enquanto novas gerações de militantes vinham sendo formadas; hoje já é possível encontrar gente em coordenações estaduais — os antigos “sem-terrinha” — que teve toda sua vida escolar vivida em escolas do movimento, sem contar cursos universitários de Pedagogia da Terra e atividades de extensão como o Realidade Brasileira.
Tenho a impressão, mesmo sem ter me aprofundado nesta história, de que a ascensão destes quadros de base aos estratos dirigentes do MST é outro fator condicionante em favor da agricultura familiar. Se é verdade, como dá a entender a série, que o cooperativismo da primeira fase do MST foi “trazido de fora” por antigos assessores pastorais e sindicais transmutados em militantes do movimento, e que nunca foi totalmente incorporado pela militância de base sem grandes reservas e críticas, a ascensão desta mesma militância de base às instâncias dirigentes do movimento lhes dá a oportunidade de reverter uma linha política que lhes desagrada e instaura um dissenso entre eles e os antigos assessores pastorais e sindicais que lá já estavam.
Se esta minha hipótese for correta — coisa que não terei como testar por pura falta de tempo para pesquisar — isto quer dizer que o fim do PROCERA e a instituição do PRONAF deram a estas camadas ascendentes a oportunidade necessária para encerrar o estímulo ao cooperativismo dentro do movimento.
Não tenho como dizer até que ponto a mudança no padrão de financiamento foi influenciada por este conflito interno, mas me parece evidente que esta guinada pode ter sido estratégica para o governo federal. Com os serviços de inteligência de que dispõe até hoje, e que certamente mantiveram o governo informado sobre os quadros dirigentes do movimento e suas mudanças de perfil socioeconômico, foi uma oportunidade rara aproveitar este conflito interno para minar o movimento antes que lhe fugisse ao controle.
Eu cheguei a pensar alguma coisa parecida, mas em uma direção um pouco diversa. Porque bem, esses que Manolo diz que preferiam desde o princípio não incentivar o cooperativismo, se eu entendi, nos anos oitenta eram crianças, né, então não foram exatamente eles que definiram como seriam educados. Mas lembro de ter cursado geografia agrária no ano de 1998 e, num trabalho de campo, um assentado falou longamente sobre todas as dificuldades de se viver e produzir coletivamente, e contou como quem conta um sério fracasso que aquele assentamento havia desistido de ser uma cooperativa e tornara-se apenas uma comunidade de produtores individuais havia alguns anos. Uma das coisas que ele mencionava era a dificuldade de manter os assentados ligados ao movimento, e mesmo na condição de acampados, de mantê-los na luta sem a perspectiva de conseguir uma terra própria, individual, etc. (sei que uma coisa não exclui a outra, mas a propriedade coletiva era uma das possibilidades).
Pois bem, lendo a série de textos foi inevitável recordar a conversa com aquele assentado, o sentimento de derrota que ele transmitia, e parecia falar pelo movimento. E a primeira coisa que me ocorreu foi mesmo uma readequação do discurso em função das limitações da prática.
Creio que isto não é uma causa central, mas é algo sério e que também permeia uma pouco esta militância fragmentada (e é bom que se diga, profissionalizada e em parte terceirizada mesmo pelo capital no terceiro setor) que João Bernardo está chamando de multiculturalista: uma retração aparentemente irreversível da militância, num dado momento, junto a esta proliferação de ongs, mudou estruturalmente o tipo de militância preponderante. Daí, por assim dizer, quem está no inferno que abrace o diabo, porque parece que o que está aí é o que tem pra hoje, e a gente gosta do conforto emocional de achar que faz parte de movimentos com potencial transformador ao menos maior que o conservador.
Com os comentários do Manolo e da Talitha fazia-se uma série de artigos. Fica a sugestão.
Há dezasseis anos andei pela Rondônia a fazer palestras e cursos para sindicatos e movimentos sociais e convivi muito com um líder camponês, sobrevivente do massacre de Corumbiara, que foi assassinado no ano passado. Grande figura. Um dos temas de conversa era a dificuldade de fazer os camponeses passarem da agricultura familiar para a produção colectiva. Ele sabia que teria de ser uma pedagogia de longo prazo, um combate muito duradouro e persistente, e um dos factores que o levara, já nessa época, a romper com o MST fora o facto de achar que a direcção do MST tinha abandonado essa luta a prazo. Lembro-me de que ele me falava com respeito de uma dada pessoa do MST, que hoje se encontra entre os 51.
Pois, então, se não há ninguém querendo ser coletivista, abandonar a propriedade individual e viver no coletivo por que ainda falamos de socialismo, comunismo, anarquismo? Se isso não dá certo por que não encaramos a triste realidade? Talvez o nosso único papel seja o de fazer com que as lutas evitem que o capitalismo caia a um nível muito sádico.
João,
talvez a perspectiva das cooperativas de produção só seja realmente levadas adiante por proletários rurais em luta, que se apossem do maquinários e terra dos patrões.
Cético,
É precisamente essa a questão que preside aos três artigos. E a sua pergunta é complementada por outra: por que motivo o MST se desinteressou da convergência de esforços com o proletariado agrícola, nomeadamente com o proletariado do agronegócio?
Quer dizer que o MST nem proudhoniano consegue ser? Essa tática – proprietários individuais – leva ao comunismo ou tá mais pra liberalismo utópico? Enfim, qual é a justificativa dos dirigentes? Há algum movimento rural que discorda dessa tática?
A propósito:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/agora-nas-cidades-a-agroecologia-dos-sem-terra
Só agora tomei conhecimento deste último comentário, e a reportagem para a qual ele remete dispensa observações, senão a de que confirma a transformação do MST numa empresa agro-ecológica. Aliás, uma série de três artigos publicada neste site, «MST S.A.» (http://www.passapalavra.info/2013/04/75172 ), alertara igualmente nesse sentido.
Todavia, há um detalhe naquela reportagem que se arrisca a passar despercebido, quando relata que «dominando a cena», existe «uma pintura em tecido da grande inspiradora da agroecologia, Ana Primavesi». Por uma curiosa coincidência, há poucos dias atrás um amigo erudito mencionou-me esta personagem, impulsionadora da agro-ecologia no Brasil. A Wikipédia limita-se a informar pudicamente que Ana Maria Primavesi nasceu na Áustria (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Maria_Primavesi ), mas sem nos dizer a data em que emigrou para o Brasil. Ora, seria muito diferente se ela tivesse ido para o Brasil por ocasião do Anschluss, em 1938, ou se tivesse viajado depois da guerra. No entanto, uma entrevista recente (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/554700-observar-conhecer-e-integrar-passos-para-uma-perspectiva-sistemica-entrevista-especial-com-ana-primavesi ) elucida que Ana Primavesi chegou ao Brasil só em 1949, já que após a guerra, segundo as suas próprias palavras, ela e o marido perderam todas as propriedades agrícolas. Isto significa que o casal Primavesi foi expropriado por iniciativa das autoridades de ocupação soviéticas na Áustria, e só então decidiu abandonar o país e rumar ao Brasil. Lendo aquela entrevista vemos ainda que foi na vigência do Terceiro Reich que Ana Primavesi obteve os seus títulos académicos na Universidade Rural de Viena. Ora, durante o regime nacional-socialista a agro-ecologia era a doutrina oficial do Ministério da Agricultura, adoptada igualmente pelos SS, que a aplicavam nas suas explorações nos campos de concentração, o que indica que Ana Primavesi bebeu nas fontes. Naquela entrevista existe ainda uma passagem esclarecedora, quando Ana Primavesi se mostra adepta, mais do que da agricultura orgânica, da agricultura biodinâmica, ou seja, tal como foi concebida por Rudolf Steiner, o criador da antroposofia. Remeto o leitor interessado por estes temas e pelo ambiente em que se geraram para as págs. 1351 e segs., mas sobretudo 1371-1377, da versão de 2015 do meu livro Labirintos do Fascismo, que se encontra com facilidade na internet. São estas as águas por onde hoje navega o MST.
Caro João Bernardo, é uma grande satisfação “revê-lo” aqui neste espaço. Creio que todos sentem imensamente sua ausência…
Um dos trechos que mais me chamaram a atenção na referida matéria de Carta Capital foi o seguinte:
“(…) centralizando a distribuição de produção agroecológica de todo país em São Paulo”
Interessante notar que que a “centralização” da distribuição de produção agroecológica obedece quase que “ipsis litteris” a mesma centralização geográfica, portanto a mesma divisão territorial do trabalho, imposta pelo capital, revelando qual a lógica em que se insere a “agroecologia” do MST.
E por falar em “Labirintos do Fascismo”, peço sua licença e a licença do coletivo para pedir-lhes mais indicações de leituras que apontem o envolvimento do Brasil e do grupo de Getúlio Vargas com o fascismo.
Obrigado,
Gilberto.
Gilberto,
No Labirintos do Fascismo não abordei especificamente o regime de Getúlio Vargas porque não me pareceu necessário para os meus objectivos nesse livro, já que os regimes de Salazar e de Dollfuss ilustravam perfeitamente as variantes do fascismo conservador. Mas acho que um primeiro passo para a compreensão do Estado Novo brasileiro pode dar-se com a leitura da obra de Joseph L. Love, Crafting the Third World. Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil (Stanford: Stanford University Press, 1996). Esta obra mostra a repercussão que tiveram no Brasil as ideias de Manoilescu, o principal teórico do corporativismo fascista, e mostra como algumas das noções de desenvolvimentismo que depois foram formuladas na esquerda surgiram, na verdade, no campo do fascismo. A esquerda brasileira — e não só — ainda hoje é vítima deste funesto engano.
Caro João Bernardo,
Agradeço imensamente sua indicação.
Há também uma edição em português da obra indicada: Construção do Terceiro Mundo, a Teorias do Subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil /Autor: Joseph Leroy Love / Editora: Paz e Terra.
Obrigado!
Gilberto