Quase todo mundo que “marcou época” no período frequentou os mesmos cinemas, bebeu nos mesmos bares, cantou as mesmas músicas, tomou banho nas mesmas praias, usou as mesmas drogas. Por Mano Xarô

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Do filme «O Bandido da Luz Vermelha»

Lá no final da década de 60 o cineasta Rogério Sganzerla conseguiu captar muitas das formas de sociabilidade que marcam o Brasil até hoje. O bandido da luz vermelha, do filme com o mesmo nome, de 1968, é aquele revoltado sem compromisso com coisa alguma além de si mesmo e sua satisfação pessoal. É curiosa a forma como foi construída sua imagem: “se trata de um gênio ou um imbecil”, uma pergunta constantemente reiterada pela mídia, antecipando o tipo de espetáculo grotesco que se vê todo dia nos programas de cobertura policial de tipo “balanço geral”.

Mas o que me chama ainda mais atenção é o que me parece certa perplexidade do Sganzerla no que concerne aos projetos da esquerda terceiro-mundista. O Bandido da Luz Vermelha desenvolve uma estética do lixo, carregada, urbana, densa. “O terceiro mundo vai explodir! Quem tiver sapato não sobra!” Considerando aquele momento, praticamente o xeque-mate da ditadura com o AI-5, fico imaginando como podemos pensar em um mundo em que só se salvarão miseráveis se eles não existem, ou pelo menos não existem no universo criado pelo filme? Mas o que eu não consigo ter certeza é se o autor tinha isto claro. Olhemos para a cena intelectual daquela época.

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Pintura de Sérgio Ferro

Era comum os vanguardistas de então, na arte e na política, serem conhecidos, até mesmo amigos íntimos. Houve muitos que viveram os dois papéis. Veja-se Sérgio Ferro: arquiteto da mais inovadora geração da FAU-USP depois de Niemeyer e Vilanova Artigas, também pintor dos bons, militou na Aliança de Libertação Nacional (ALN) e, graças às revistas técnicas publicadas pela Light, ajudou Sérgio Souza Lima (também arquiteto, também militante da ALN) a desenhar um mapa de todas as subestações elétricas da cidade de São Paulo, a serem tomadas e inutilizadas pelas forças guerrilheiras como ação de apoio ao assalto a um quartel militar. Nem os milicos acreditaram no grau de precisão daquele mapa, porque a história verdadeira tinha cara de lorota. Mesmo um certo José Eugênio Soares, filho de família abastada e então nada além de mero frequentador da boemia carioca pós-bossa nova e aspirante a artista, andou pelas franjas da ALN por um tempo. Os meios intelectuais das grandes metrópoles durante toda a década de 1960 viviam uma efervescência política comum ao tempo, à esquerda e à direita (ou para os dois lados, como Otto Maria Carpeaux), e era impossível não ter posição a respeito de temas como desenvolvimento econômico, socialismo, guerrilhas, revolução, etc.

Não só os meios intelectuais viviam estes debates, mas toda a população — a julgar como minha avó, dona-de-casa semianalfabeta, à época com trinta e poucos anos, me chama até hoje de “comunista” com um misto de receio e horror. Estava tudo ali, à mão! Sganzerla não se furtou a este debate. Cineastas marginais como ele tomaram posição quase antagônica àquela dos cinemanovistas: estes eram épicos e idealistas, e por seu lado os marginais faziam uma estranha síntese entre realismo e psicodelismo enquanto abusavam da metalinguagem. Os primeiros viam o cinema quase como uma alavanca estética para a reflexão sobre a nação e o desenvolvimento; mas os últimos, quase como resposta, tratavam dos aspectos mais sujos e desprezados desta mesma realidade, quase sempre considerados como problemas insolúveis com os quais é preciso conviver, inevitavelmente. Os marginais estão para o cinema novo assim como os tropicalistas estão para a geração de Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Taiguara, dos Centros Populares de Cultura (CPC), etc., tanto em estética quanto em política.

Não entendemos as coisas se esquecermos a ambiguidade e o trânsito entre os mais radicais de cada um dos lados da contenda. Edu Lobo e Sérgio Ricardo, para ficarmos apenas em dois exemplos, foram parte forte também da consolidação da forma hegemônica da canção brasileira. No mesmo período em que faziam críticas públicas e álbuns inovadores na Música Popular Brasileira (MPB), também participavam de concertos em Nova York com Tom Jobim e eram figura fácil de várias gravações dos artistas que eles abominavam e falavam mal por aí. No cinema e na arquitetura aconteceu o mesmo. Será esse um indício de que todos eles eram amigos em conflito a todo momento?

Edu Lobo
Edu Lobo

É exatamente disto que se trata. Edu Lobo foi, na verdade, da segunda geração bossanovista, junto com Elis Regina, Nara Leão & etc.; todo o povo dos CPCs tomou overdoses de bossa nova; os próprios tropicalistas dizem ter feito o que fizeram para resolver uma relação fetichista que sua geração tinha com a bossa nova; e por aí adiante. São variações sobre o mesmo tema, embora às vezes se varie ao ponto do estranhamento.

O mesmo com o cinema novo. A ruptura com a influência hollywoodiana do “estilo Vera Cruz” de fazer cinema se deu a partir da inspiração direta do neo-realismo italiano, por sua vez uma reação à influência hollywoodiana sobre o cinema italiano e à sua apropriação pelo fascismo (semelhanças com a relação entre chanchadas e Getúlio Vargas não são mera coincidência); o cinema marginal que se lhe seguiu, curiosamente, tem como principal influência a nouvelle vague francesa, cujos diretores diziam-se diretamente influenciados pelo neo-realismo italiano. Algo marca este jogo de imitações: cinemanovistas e marginais não apenas se conheciam como não raro se frequentavam, trocavam ideias e migravam de escola a escola, influenciando-se mutuamente até certo ponto.

Nara Leão, Dorival Caymmi e Edu Lobo
Nara Leão, Dorival Caymmi e Edu Lobo

Assim como Nara Leão, por exemplo, musa cool da segunda geração bossanovista, cantou no disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis. E por aí vai. Como, em música, o “normal” até recentemente era abandonar pequenos selos e gravadoras locais — como a JS Discos (em Salvador, onde Gilberto Gil gravou seu primeiro compacto em 1962) ou a Rozemblit (no Recife, responsável pelas primeiras gravações da geração de Alceu Valença, Zé Ramalho, etc.) — em favor da Phillips, da CBS, da PolyDor, etc., cujas sedes eram no Rio de Janeiro ou em São Paulo, pode-se dizer que quase todo mundo que “marcou época” no período frequentou os mesmos cinemas, bebeu nos mesmos bares, cantou as mesmas músicas, tomou banho nas mesmas praias, usou as mesmas drogas, etc.

Tudo isto enquanto Cartola comia o pão que o diabo amassou lavando carros nas ruas do Rio de Janeiro e Batatinha ralava no fedido parque gráfico de um jornal soteropolitano.

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