Por Wanderley, entrevistado pelo Passa Palavra
Wanderley é Educador Social desde 2007. Trabalha com projeto de recuperação de menores em situação de risco situados na Cracolândia. Não é um doutor especialista no assunto, porém é alguém que vive, trabalha e pensa cotidianamente a respeito da situação de pessoas em condições de extrema vulnerabilidade. Viu e viveu situações de descaso e desrespeito da legislação por parte de agentes do Estado contra estas pessoas. Nesta conversa fala sobre projetos de revitalização das regiões centrais de São Paulo, organizações que trabalham com recuperação de dependentes químicos na região, o significado da atuação dos aparelhos repressores do Estado, assim como a relação da existência da Cracolândia com a questão da miséria e da especulação imobiliária. É a Wanderley agora a quem passamos a palavra.
Passa Palavra (PP): Como vê os reiterados projetos de recuperação das áreas centrais de São Paulo, tais como Viva o Centro, Nova Luz e Luz Viva?
Wanderley (W): O Viva o Centro surgiu no início dos anos noventa, quando o crack era novidade, e de certa forma representa uma visão higienista de comerciantes, na maioria, que não querem pivetes [meninos de rua] ou mendigos nas portas de seus comércios. A ideia central é essa, buscam sempre formar parcerias com as entidades do centro e principalmente com a Guarda Civil Metropolitana (GCM), e justamente por existir há muitos anos é muito forte junto à Prefeitura, a vereadores, etc. No entanto, não representa investidores que têm capital para investir pesado no mercado imobiliário. A Nova Luz apenas surge, mesmo depois de muita pressão da elite do centro, quando os investimentos ficam mais certos nas negociações, que devem ter se desenrolado durante muito tempo, e por isso a ideia de revitalizar o centro foi sendo empurrada com a barriga [avançou lentamente e a custo] apenas com ações midiáticas. Em 2007 muitas entidades realizavam atendimento com as crianças da Cracolândia, Sé e Vale do Anhangabaú. Os comerciantes reclamavam, a polícia dava geral em todo mundo, educador, criança de menos de dez anos, mas o trabalho acontecia. Por pressão do Viva o Centro, de 2007 para 2008, uma operação policial dispersou a população de rua. Já que não podiam eliminar a ação dos serviços de proteção social, inviabilizaram sua ação, agravando a situação de vulnerabilidade de muitos. O Vale [do Anhagabau] e a Sé tiveram uma diminuição da população de rua; contudo, a fuga foi para a Cracolândia, crianças que antes cheiravam uma colinha passaram a pipar pedras.
Nova Luz e Luz Viva são nomes criados para dialogar com a opinião pública, quando um fica queimado eles inventam outro. Em 2009 as desocupações começaram a se intensificar, com locais tradicionais como o Mercúrio sendo desocupados. E neste ano começou um projeto chamado Centro Legal, que, esse sim, é o projeto de intervenção higienista do centro que vai subsidiar a Nova Luz imobiliária. Com a participação de juízes, promotores e figuras como Luís Alberto Chaves de Oliveira, o Laco, coordenador de Políticas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça, defensor da internação compulsória, o Centro Legal propala a balela de que com internação se cura o adicto e se acaba com a Cracolândia. Participei de um seminário do Centro Legal onde defendia-se que o melhor fluxo para tratar o viciado era: internar compulsoriamente e depois de seis ou nove meses encaminhar para uma república de ex-dependentes que teriam o sangue testado periodicamente e, caso fosse detectada uma recaída, ele seria internado novamente. De fato, isso não chegou a acontecer dessa forma, o município não tem essa estrutura. No entanto, as internações, mal e porcamente, se intensificaram. Apenas internações compulsórias, nenhum outro tipo de trabalho. Há casos de adolescentes internados que ficam seis meses em uma comunidade terapêutica e em nenhum momento a família é contatada, nem se sabe para onde “devolver” o menino. Aumentou o número de atendimentos, mas ninguém é atendido de fato, apenas varrido para debaixo do tapete.
De certa forma, o problema da Cracolândia é secundário para a questão imobiliária. As desocupações são o carro chefe. Essa tentativa de acabar com a Cracolândia é a verdadeira operação “espalha bosta”. Logo quando se espalharem por Higienópolis, a elite do centro terá saudades dos tempos em que ficavam escondidos em becos inóspitos. Quando o investimento aparece, a Prefeitura senta a borracha e a obra começa, é a grana que dita o ritmo. O problema geral da população de rua não se resolve só na borracha e, por isso, as ações higienistas são necessárias para assimilar à institucionalidade do Estado essa população, internando, prendendo ou levando de um lado para o outro fingindo que sumiram [desapareceram].
A Nova Luz é um projeto de longo prazo e o Centro Legal veio pra ficar. Eles representam os anseios de uma elite higienista, que só quer pobre no centro trabalhando, morando não, na calçada menos ainda. E representam os interesses de especuladores imobiliários que perceberam o bom momento para investir no centro, já que a degradação que barateou os aluguéis por um tempo trouxe um público novo que reacendeu o comércio, os serviços e a ira dos fascistas.
PP: E quanto às novas iniciativas de ocupação do Centro da Cidade, como o churrascão do último dia 15 na Cracolândia?
W: Esse evento foi patrociado por um vereador e a Soninha Francine tá na fita [jogada]. O PPS [Partido Popular Socialista] tá doidinho pra assimilar o pessoal naipe jovem que anda de bicicleta, come soja e frequenta cinema cult aqui em Sampa [São Paulo], é um samba do criolo doido de entidades, esse pessoal só representa a classe média.
PP: Quais são as organizações que trabalham de forma responsável com a questão dos usuários na Cracolândia? Qual é o foco que procuram dar ao próprio trabalho?
W: É difícil dizer quem é ou não é responsável. O que posso adiantar é que existem muitas instituições vinculadas a Igrejas e financiadores internacionais, que não mantêm relação contratual de convênio com a Prefeitura. Elas fazem da forma como querem o seu trabalho. Acredito que a deficiência destas instituições, além dos óbvios contornos ideológicos, é o não desenvolvimento técnico e teórico para o trabalho. A coisa parte da intuição e não de um conhecimento acumulado sobre a prática. O que é ruim mesmo é o que é oferecido pela Prefeitura. Duas ONGs [1] são as mais embasadas [os que têm mais base] e por isso mantêm o foco no atendimento. Cada situação é única e o que deve ser feito é conhecer melhor a história de cada indivíduo e o contexto em que está inserido; a resolução é construída em conjunto e longitudinalmente. É muito raro ver instituições que abandonaram totalmente o assistencialismo e passaram a trabalhar de forma mais profunda. Diferenciar uma ação, responsável ou não, talvez só possa ser feito com base no tipo de continuidade que se dá a partir do momento que o usuário dá entrada no serviço. Com os nóias [como pejorativamente são chamados os usuários de crack] da Cracolândia isso não acontece e quem tenta, como uma destas ONGs, é boicotado pela burocracia e pela falta de insumos [inputs].
PP: Qual é o papel da Polícia Militar (PM), da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e demais aparatos de repressão para a manutenção/desmantelamento da Cracolândia?
W: A GCM é comparsa do Viva o Centro. A Secretaria de Assistência ora ou outra convoca a GCM para aplicar um plano de operação padrão e participar de eventos, é o braço armado da Prefeitura contra a informalidade e a população de rua. Mas pouco eles podem fazer de efetivo, além de violentar gratuitamente as pessoas e roubar os trabalhadores. Vive-se distribuindo material de apreensão da GCM pelas secretarias e departamentos, garrafas de café, DVDs e até mesmo objetos pessoais de moradores de rua, como o caso do senhor que morava num mocó [barraco] em Pinheiros e realizava pequenos consertos na vizinhança e teve a furadeira e as ferramentas roubadas em uma ação da GCM. Num dia eles tomam o RG [bilhete de identidade] do morador de rua, no outro encaminham para o Poupatempo [programa do governo do estado de SP que reúne em um único local serviços de atendimento ao cidadão, sobretudo emissão de documentos].
A PM é simplesmente a dona da boca [ponto de venda de droga] e muito a contra gosto está atendendo às ordens do governador; ela fatura mais de cem mil [reais] por semana. No meio da Cracolândia duas viaturas param em frente a uma casa, PMs empunham armas para todos na rua, de um outro carro desce um oficial graduado de boina, entra na casa, fica menos de 5 minutos e sai escoltado… para bom entendedor meia palavra basta. Esta cena era muito comum quando eu fazia campo na Cracolândia. No geral a PM pouco agiu na Cracolândia durante estes anos; só é chamada para desocupação e reintegração de posse. A droga chega ao centro pelo DENARC [Departamento de Investigações sobre Narcóticos], que faz vista grossa para o tráfico na região há muitos anos. A PM não quer acabar com a Cracolândia, a GCM faz o que o Prefeito manda. No geral, a presença da GCM é mais constante e sua atuação é mais requisitada pelos munícipes conservadores.
PP: Qual foi o papel costumeiro que o Estado deu para estas pessoas em situação de risco na Cracolândia? Houve alguma mudança nos últimos tempos? Desde quando isto vem acontecendo?
W: Em 2007 e 2008 as duas ONGs já citadas trabalhavam na rua, e uma delas era a única instituição com ação na Cracolândia in loco. A Prefeitura mantinha um serviço de CRECAS [Centros de Reabilitação de Cidadania], abrigos provisórios e um sistema de transporte para apoiar todos os serviços da rede nos encaminhamentos. Como, evidentemente, a qualidade destes abrigos era muito ruim, as crianças circulavam de um para o outro, a todo instante, e em nenhum lugar se dava continuidade ao trabalho. Em 2009 a Prefeitura já havia desmontado o serviço de transporte e a presença de agentes de proteção nas ruas, fechou muitos abrigos e extinguiu juridicamente o abrigo provisório. Agora é necessária uma ordem judicial para o abrigamento. Em 2011 fomos proibidos de atuar na rua e na Cracolândia, a Prefeitura montou um serviço chamado Atenção Urbana e conveniou espaços de convivência. Através de uma manobra na data da concorrência, excluiu uma das ONGs de concorrer ao serviço nas ruas (Atenção Urbana), viramos espaço de convivência e perdemos o transporte para visitas domiciliares. Os serviços criados na gestão Alda Marco Antônio [vice-prefeita de São Paulo e Secretária Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social] apenas empurram de um lado para o outro as demandas, todo mês tem portaria nova ditando regras para o serviço, novos fluxos e prestação de conta. Estão obviamente perdidos e as pessoas contratadas, no geral, nunca tiveram experiência no assunto. É raro um educador ou técnico ficar no cargo mais de um ano, a não ser que seja cupincha de alguém na Secretaria. Depois do dia três somos obrigados a enviar um relatório de quem da Cracolândia foi atendido e para onde foi encaminhado, às 9, às 5 e às 21. A pressão é muita e o trabalho é muito precarizado, a maioria faz quarenta horas, sem capacitação, insalubridade, tudo vira banco de horas, os insumos [inputs] são poucos, 200 reais em alimentação por semana e eles querem que atendamos setenta crianças por semana. Na ONG que trabalho, trabalhamos 28 horas em acordo informal com a coordenação para compensar perdas salariais de cinco anos. Podemos dizer que o Estado atua montando e desmontando uma rede de serviços de baixo custo para que não se desenvolva nem uma cultura nem uma prática dirigida ao respeito e à dignidade desta população e principalmente impede que sua entrada na institucionalidade do Estado signifique gasto e precedentes para o fortalecimento de direitos. Fazem de tudo para que o cidadão desista de lutar pelo direito de uma moradia, por exemplo, distribuindo esmolas a poucos sortudos escolhidos. Todos dão entrada no sistema, ninguém é ouvido.
PP: Como Educador Social que trabalha na região da Cracolândia, percebe alguma relação entre a questão da moradia, a pobreza e a especulação imobiliária?
W: De certa forma o que disse acima responde um pouco esta questão. Os interesses são tanto de uma elite higienista tradicional do centro quanto de alguns investidores, que ainda não são tantos quanto a Prefeitura gostaria, e da PM, que é a dona da boca. O que as ocupações no centro denunciam é a repulsa que se tem contra moradias populares no centro pelo poder público e por essa elite. Pobre só mora no centro em situação irregular, as elites da cidade toda concordam que a periferia deve ficar na periferia, porque na verdade o grande problema de moradia da cidade está lá. A população de rua do centro e o grande número de famílias em ocupações são uma consequência da miséria da periferia, das péssimas condições de serviços públicos e infraestrutura urbana, do péssimo transporte… Todo mundo quer morar no centro, independentemente da classe social, mas a elite paulistana acha que o centro não é para todo mundo, muito menos para trabalhador. O problema está além dos imóveis ociosos que não são destinados a quem precisa. Afinal, essas famílias merecem algo melhor do que um prédio em pedaços reformado com uma mão de tinta. Existem, sim, terrenos e prédios que podem ser aproveitados para moradias populares no centro, além de um grande número de pensões irregulares que poderiam ser regularizadas numa perspectiva assistencial. A Favela do Moinho, incendiada covardemente, era um fenômeno recente; aquele terreno poderia abrigar um pequeno conjunto residencial popular antes de virar favela. O que mais vai expulsar a população de baixa renda do centro é a inflação dos aluguéis, que já começou a coagir muita gente que paga aluguel, não mora em ocupação, trabalha e estuda no centro. Mas como o mercado é quem manda, o Kassab [Gilberto Kassab, prefeito, ou seja, presidente da Câmara, de São Paulo] parece estar convencendo a opinião pública de que o centro vai ficar limpo e civilizado para a classe média; quem aluga sobe o preço e procura por um outro perfil de inquilino. Este processo, apesar de lento, é efetivo e não depende do fim da Cracolândia, apenas da fé dos capitalistas de que o centro hoje vale mais.
Nota
[1] Por solicitação do entrevistado, as referências aos nomes das ONGs que atuam na região central de São Paulo foram suprimidas.
Ainda não tive tempo de ler a entrevista. Mas li a apresentação. O que me leva a fazer o seguinte comentário, ao ver as expressões até então mais ou menos restritas a uma certa sociologia, em geral relacionada aos gestores públicos: “situação de risco” e “vulnerabilidade”. Para mim sempre foram eufemismos para designar os fodidos pelo capitalismo. Sujeito em “situação de risco” ou de “vulnerabilidade” já é aquele no estágio mais avançado de desumanização na sociedade (capoitalista). Fica parecendo que o sujeito está bem e pode, quem sabe, lhe acontecer algo ruim.
Olá Léo,
Pois eu vejo de outro modo: acho que você deveria ler a entrevista – que é bem mais rica do que qualquer observação terminológica de qualquer introdução.
Acho, sim, pertinente a sua observação – mas, ao mesmo tempo, não dá para ignorar que esse vocabulário foi influenciado justamente pelo contato direto com o referido educador.
No mais, acho que o emprego de tais termos pode abrir uma via de acesso para dialogar com um setor que, equivocadamente como você bem diz, deixa de lado as relações de exploração capitalista se utilizando de uma terminologia que busca colocar no horizonte a tal da inclusão. Me explico: para além do som das palavras, que estão realmente encharcadas de ideologias que se referem às práticas de dominação e exploração, outro educador social pode ler a entrevista e começar a contestar o papel que cumpre nesse sistema de internação compulsória da população considerada “vulnerável”.
Estou pensando aqui também, a partir de seu comentário. Ou seja, não tenho total certeza no que digo.
Abraços.