Por Anderson Barbosa
A situação está bastante crítica nos alojamentos onde os pinheirenses estão.
Eu acompanhei de perto todo esse processo de organização da resistência dos moradores e moradoras, passando aproximadamente 15 dias na ocupação, junto com o pessoal que fazia a segurança durante a madrugada, dentro da ocupação. O clima era de apreensão em alguns momentos. Ninguém dormia. Havia pessoas que, antes da falsa trégua do dia 17 de janeiro, estavam sem dormir há 10 dias, isso quando cheguei na ocupação.
Como de costume, diante do pano de fundo de eminente e, depois, evidente confronto, a vida seguia normal. Às 5:30 da manhã começava a movimentação das pessoas que saíam para trabalhar, algumas com suas crianças, para levá-las para as creches que ainda aceitavam moradores do Pinheirinho; outras com seus carrinhos para reciclagem; outras com seus carros. Esta rotina normal não foi vista por todas as pessoas, inclusive pela sociedade conservadora de São José dos Campos, que limitava suas análises sobre os moradores e moradoras da ocupação a dizer que se tratava de bandidos, vagabundos, prostitutas, como se pessoas que sejam vagabundas, prostitutas e bandidas não tivessem o direito de ter uma casa.
Durante a madrugada do dia 17, quando a justiça federal cassou a liminar, por volta dos 30 minutos do dia, sob uma forte chuva que caía, viaturas da Força Tática (FT) se posicionaram próximas a um dos acessos à ocupação. Iniciou-se uma movimentação de moradores que faziam rondas de motocicletas no terreno e nas ruas próximas. Um morador do bairro, que mantinha relação com a ocupação, disse que os policiais o abordaram perguntando se ele vivia no Pinheirinho e ele disse que não. Os policiais disseram para ele dar o recado que quem estivesse no portão, dentro de meia hora seria alvejado. Minutos depois se inicia uma correria e boatos de que ônibus estavam sendo queimados na cidade. Um desses ônibus foi incendiado ao lado da ocupação e, segundo fotojornalistas da região do Vale do Paraíba que conseguiram chegar até o ônibus em chamas, uma vizinha da ocupação disse que havia visto uma viatura da FT parando o ônibus que só transportava o motorista e o cobrador e outros 3 homens, de barba bem feita e cabelo bem cortado, atearam fogo no ônibus. Relato que eu ouvi de um outro fotógrafo com quem conversei neste último sábado (28/01), 15 dias após o ocorrido, pois ele estava de carro e o ônibus pegou fogo com seu carro parado ao lado.
Com isso, o clima de correria começou, em meio à lama, debaixo de chuva. O pessoal que estava fazendo treinamento para o confronto se mobilizou, tentou-se derrubar alguns pinheiros que ficam à margem do terreno, para evitar o avanço dos matadores a serviço do Estado – não é relato de militante, mas sim de quem presenciou essa tensão, de perto. Visto que nada acontecia, e com a tentativa de acalmar os ânimos por parte das lideranças e advogados do movimento, a situação ficou mais tranquila, até a hora do anúncio de que a justiça federal havia cassado a liminar. Uma festa tomou conta do lugar e olhos, que há horas atrás ferviam em sangue, derramavam lágrimas – e isso não é poético, mais uma vez foi o que eu vi. Quando cruzei com um dos moradores que falava ao celular e ele me viu, gritou chorando e me abraçou: “O Pinheirinho é nosso!”.
Com o vaivém das liminares e depois com a falsa trégua dos 15 dias, pude me aproximar mais das pessoas e acompanhar o dia a dia de algumas delas e saber um pouco de suas histórias. Resumidamente e sem detalhes mais longos, todas se alimentavam, além da esperança, também da persistência e do sentimento de pertencimento àquele lugar, construído com suor, sem ajuda do Estado. Uma senhora me contava de sua varanda que construíra sua casa com dinheiro recebido por cuidar de filhos de vizinhos que não tinham onde deixar para trabalhar. Ela ainda tinha dentro de casa material de construção que seria usado para terminar sua suíte. Outro caso, de um casal de idosos que construíram a casa com trabalho de reciclagem. Coisas que ficaram na história dessas pessoas e que, como todos já sabem, foi tratorado pelas grandes forças da justiça.
Ter vivido esse processo todo, mesmo que apenas por 15 dias, me fez sentir parte daquele lugar, talvez por ter sido contaminado pelo sentimento que todas aquelas pessoas tinham ali. Aquilo era delas, por uso e justiça. Muitas tiveram ali a possibilidade de ter algo de que podiam dizer: “Isso é meu”, desde a casa a eletrodomésticos, inclusive carro, que conseguiram graças a se livrarem da exploração de imobiliárias e especuladores imobiliários.
Após todo o ocorrido que repercutiu mundo afora, nos confrontos durante a reintegração de posse, um dos piores que presenciei em minha vida de fotojornalista que acompanha as lutas por moradia há quase 11 anos, toda incerteza vista nos rostos daquelas pessoas me fez pensar sobre a validade de muitos de nossos códigos de sociabilidade. Vale a pena ser legalista? Vale crer na incerteza de uma justiça supostamente oferecida pelo Estado?
E como todo pós-guerra tem os campos de refugiados e de concentração, o Pinheirinho não foi diferente. Realmente, a alguns dos alojamentos não é permitido o acesso nem das lideranças, menos ainda da imprensa, para que não se divulgue o que está acontecendo lá dentro. Ontem, quando voltava de lá, de carona com uma amiga fotógrafa, trouxemos Claudineide da Silva para São Paulo, para a casa de uma irmã, que está fazendo tratamento contra metástase óssea (um tipo de câncer que ataca os ossos), que na primeira noite pós-desalojamento passou o tempo todo sentada na cadeira de rodas, tomando morfina para aliviar a dor e tentar desinchar as pernas. Além do caso da Pamela, travesti soropositivo, que tentei ver na tarde de ontem, mas impedido de entrar, há também o caso de outra mulher que teve um AVC e está totalmente paralisada, literalmente jogada em um dos abrigos. Nos primeiros dias ela estava na igreja do Campo dos Alemães; agora, não sei onde está.
Os relatos são de uma enorme brutalidade. Sim, o pior é relatar o que vi esses dias e conversar com essas pessoas e ter que segurar o nó na garganta e saber que não posso fazer muita coisa além de tentar levar para mais pessoas esse relato que a imprensa convencional não faz, e sem o sentimentalismo, para mim falso, feito pela chamada imprensa alternativa. Para terminar, o que contribuiu alimentando a carga de desespero foi presenciar, entre os escombros da demolição das casas, grupos de proteção animal em busca dos animais, e frases do tipo: “Ah coitadinho, vem cá meu amor!”. E ao perguntar se eles haviam feito algum contato anterior com os moradores, diziam que não pois tinham medo de se aproximar. O mesmo era dito pelos saqueadores e as saqueadoras que estavam pegando telhas e outros materiais de construção das casas que ainda não haviam sido demolidas.
Essas coisas não serão apagadas da minha memória, mesmo que eu delete todas as fotos que fiz, pois vivenciei e pude sentir visceralmente na pele o que essas pessoas sentiram nestes últimos dias dentro daquele lugar que lhes pertencia, não simplesmente pela posse do terreno, mas pelas histórias que surgiram, pelas histórias que recomeçaram ali. Gente que não tinha mais nada, nem nome limpo no comércio, que conseguiram – dentro do que compreendem por dignidade – que conseguiram resgatar tudo.
Para mim, Pinheirinho será a experiência mais marcante de toda minha vida, em todos os sentidos, desde o modo de organização, a preparação da resistência, a truculência da reintegração, o atraiçoamento do Estado e da justiça, o tratamento de última categoria pelo qual estão passando, me fazendo fortalecer e resgatar princípios de negação do Estado e busca por outros meios de organização social.
Para mim, Pinheirinho será uma referência.
29 de janeiro de 2012
Nota
O autor, Anderson Barbosa, é fotojornalista.
A falta de apoio por medo da repressão é até cabível de entendimento, mas até que ponto esta omissão passa a ser justa e não um sinônimo de apoio as forças militares e ao governo, ou o desejo de ver pessoas pobres longe daquele local.
Belo relato Anderson Barbosa,eu conheci esta área por volta de 2007 quando eu ainda era militante do PSTU, atualmente não milito mais, mas também observo a força do Estado que massacra, que não perdoa e não tem compaixão.
Tento imaginar você acompanhando e vivendo a situação, parabéns pelo post.
Ola, Sou Anderson Barbosa, fotojornalista que fez esse relato e fiz a cobertura fotografica para a agencia de fotojornalismo chamada Fotoarena.
Muito obrigado pela publicacao deste relato. Acho que eu devia ter feito algumas correcoes antes de ser publicado, pois ha alguns erros de concordancia e alguns trechos meio confusos que poderiam ser corrigidos. Eu nao tinha a menor pretensao de ser publicado. Foi um relato para complementar um outro que foi enviado a lista do Forum Centro Vivo, sobre o que uma pessoa de Brasilia fez, sobre os dois ultimos dias pos reintegracao com as pessoas nos abrigos/campos de refugiados em que estao.
Pra fazer justica, a pesso aque trouxe a Claudineide para Sao Paulo, onde ele faz tratamento do cancer, se chama Juliana Pereira, que havia ido comigo para o Pinheirinho, pois ela faria um trabalho com as mulheres da ocupacao, que eu me esqueci de citar na mensagem.
Para quem quiser ver outros trabalhos que venho fazendo sobre os movimentos de moradia, ha quase 11 anos, envio o link. Nao esta atualizado pois eu perdi a senha e o e-mail que eu cadastrei essa conta, nao existe mais
http://vidassemteto.wordpress.com/
Abraco a todos e todas
Anderson Barbosa