Por Coletivo Usina*
Cena 1
Quem se aproxima da enorme ocupação já a reconhece por meio de uma alameda de pinheiros altos, cercas feito barricadas, com lanças de bambu apontando para a rua e bandeiras vermelhas dependuradas, pedindo apoio, estimulando a luta. Lá dentro, o espaço da associação de moradores fica logo na entrada e é acessível a todos. O terreno ocupado é em grande parte plano, as ruas de terra são largas alinhadas e foram demarcadas com quadras numeradas alfabeticamente; os lotes bem definidos, com muitas e muitas casas construídas, de tijolo e de madeira – barracos e sobrados; jardins e pequenos comércios, igrejas, salas de culto, tudo feito “no braço” ao longo de oito anos. No centro do terreno, uma praça: Zumbi dos Palmares. Na praça, o parquinho das crianças, uma igreja e um barracão de madeira, espaço das assembléias e festas. Na parte baixa do terreno algumas centenas de pessoas fizeram a sua vida, plantando, colhendo, criando animais, construindo em mutirão um galpão para reunião, estudos e uma piscina – recolhendo a água que brota fácil. O espaço construído enfrenta a precariedade mas também expressa a organização coletiva. A praça é ampla e abriga as assembléias; os galpões transformam-se em cozinhas coletivas; as famílias se reúnem em núcleos, para discutir questões coletivas e planejar o próximo dia – desejando produzir para viver. Os coordenadores de cada um dos núcleos, mais de uma dezena, também se reúnem com frequência; o MUST, Movimento Urbano Sem Teto, mobiliza as famílias fazendo contatos, angariando apoios e recursos, orientando a luta, com soldados que são também pedreiros, mecânicos, metalúrgicos, manicures, pais e mães de filhos ali nascidos. Frente a escusos interesses privados, que insistem na reintegração de posse para fazer valer o direito supremo da propriedade, as ruas largas vêem surgir as barricadas, que prometem resistir.
Cena 2
No domingo, dia 22 de janeiro, uma parte da equipe da Usina estava numa assembléia com o movimento de moradia em Suzano, onde desenvolvemos dois projetos habitacionais com autogestão, quando recebemos a notícia que a reintegração de posse do Pinheirinho começara a ser executada naquela madrugada. Chegando a São José dos Campos, nos deparamos com um cenário bem diferente do Pinheirinho que conhecíamos. No céu, helicópteros mantêm a área sob vigia enquanto na avenida da ocupação um forte esquema militar bloqueia todos os seus acessos. Sob o olhar vazio de dezenas de policiais, uma família sai do terreno em direção à cidade. Uma mulher chora e carrega um saco de lixo nas costas, com os pertences que conseguiu juntar. Em direção à entrada principal, aumentava o número de policiais, ambulâncias, carros de bombeiros, camburões e avistava-se a tropa de choque. Começamos a escutar uma série de notícias alarmantes, inclusive de pessoas desaparecidas e mortas. Policiais invadem casas da vizinhança, como se buscassem pessoas específicas. Mais à frente, chegamos a uma praça cercada por grades com grandes tendas brancas onde centenas de pessoas se amontoavam num lamaçal cheirando a es
trume. Os ânimos estão exaltados. De repente, uma grande gritaria. Crescente. Forte. A reintegração parecia ter sido cancelada. Muitos começam a correr em direção à saída para tentar voltar para suas casas. Uma comemoração passageira. Confusão, mais tiros. Apesar da gritante desproporção de forças, jovens desesperados extravasam sua revolta arremessando objetos e pedras na direção dos policiais, que respondem com tiros de balas de borracha e bombas de efeito moral. A reintegração continua.
Famílias se enfileiram para conseguir cadastro, assistência social, abrigo, comida. São oferecidas passagens para os que quiserem retornar a sua terra de origem. Chamam o espaço de Triagem. Adquirem senhas. Pulseiras de identificação. Viram números.
Por quê?
Baixando a nuvem de poeira e gás lacrimogênio da reintegração de posse, além das mobilizações para reverter parcialmente essa injustiça flagrante e punir responsáveis, ainda é preciso um esforço coletivo para encontrar explicações para o tamanho da violência que ali ocorreu e as causas da incapacidade da sociedade brasileira, de seus governantes e suas avançadas leis de Reforma Urbana e Direitos Humanos em alcançar uma solução para aquele caso. Não parece razoável que no Brasil atual – onde não faltam recursos para política habitacional e desenvolvimento urbano, em que sobram instrumentos legais para fazer cumprir a função social da propriedade, promover a regularização fundiária, garantir o direito à moradia e a segurança na posse, além de saber projetual acumulado para urbanizar áreas ocupadas informalmente – a questão social volte a ser tratada como caso de polícia. Parece ter sido um raio das forças do atraso no céu azul do Brasil “Lulista”: um país em crescimento e sem perdedores à vista. A grita do PT diante da injustiça dá a entender que se trata de mais um capítulo da criminalização da questão social pelo PSDB. Mas os anos de existência do Ministério das Cidades não foram suficientes para encontrar uma solução negociada para o Pinheirinho e sua tragédia anunciada. Aliás, são centenas de despejos que estão ocorrendo no Brasil em nome dos grandes eventos esportivos patrocinados pelo governo federal. Se o Brasil ganha prêmios em sua “tecnologia social” de gestão da pobreza e urbanização de favelas, também é campeão na tecnologia de remoções forçadas sem solução planejada e negociada – lado negativo que é decorrência do falso positivo: a gestão premiada dos bolsões de pobreza, ao invés de políticas públicas plenas. Voltemos brevemente ao Pinheirinho antes do despejo.
Recuo
O terreno fora ocupado em 2004, por trabalhadores de diversas origens, parte proveniente da reestruturação produtiva e privatização da Embraer e suas empresas prestadoras de serviço. De outro lado, a propriedade do imenso terreno no bairro Campo dos Alemães era da Selecta, uma holding do mega-especulador Naji Nahas, que nos anos 1980 introduziu novos mecanismos de alavancagem artificial de preços de ações na Bolsa do Rio e a fez quebrar em 1989. Condenado a 24 anos de prisão e depois absolvido, Nahas associou-se posteriormente ao golden boy das privatizações tucanas, Daniel Dantas e, segundo a investigação da Operação Satiagraha, era responsável tanto por manter uma rede de influência junto a grandes investidores quanto por lavar dinheiro por meio de empresas off-shore como a Selecta, sediada nas Ilhas Cayman. Como forma de lavar dinheiro ou dar lastro real para sua nuvem de capital fictício e especulação financeira, Nahas, desde os 1980, já adquiria terrenos, imóveis de luxo, obras de arte, iates etc. O terreno do Pinheirinho foi por ele arrematado do maior loteador de São José dos Campos, o “Comendador Bentinho”, que diz ter comprado da família Lahud, que por sua vez comprou de outros e não se sabe como alguém ficou proprietário dessa terra, que pertencia a um casal de alemães sem herdeiros e brutalmente assassinados em 1969. A investigação está sendo feita pela Defensoria Pública, pois a fraude cartorial no registro de grandes terrenos é mais regra que exceção, como explica a urbanista Ermínia Maricato. A ilegalidade não está apenas na ocupação popular para os que não têm onde morar, mas na constituição de grande parte do patrimônio fundiário das elites brasileiras, que se valem da “aplicação seletiva da lei”. A Selecta nunca pagou os impostos do terreno, que já acumulam mais de 15 milhões de dívida de IPTU, não zelou pela proteção do seu imóvel e muito menos cumpriu a função social daquela propriedade, que permaneceu vazia até 2004, quando foi ocupada pelos “novos excluídos” do parque tecnológico mais avançado do Brasil.
Não foi por acaso que o Pinheirinho passou a ser organizado por sindicalistas, como os metalúrgicos, e não pelos movimentos tradicionais de bairro ou ligados às comunidades de base da Igreja Católica. Os nexos da luta e organização no mundo do trabalho e no espaço da vida se faziam presentes de vários modos. É isso provavelmente que explica o fato de ser talvez a única grande ocupação urbana que é orgânica ao PSTU e a Conlutas. Ao contrário do que a grande mídia tem afirmado, esses grupos de esquerda não desejaram o confronto, mas sempre uma solução negociada. O nosso coletivo, a Usina, foi contatada algumas vezes pelos coordenadores do Pinheirinho na expectativa de desenvolver um projeto de urbanização para a área e colaborar na definição da estratégia para sua regularização e financiamento público. No último encontro, junto com a Frente de Resistência Urbana, parecia que tudo estava encaminhado e que governos estadual e federal haviam se entendido para desapropriar a área e instalar infra-estrutura, por meio do programa Cidade Legal (de regularização fundiária, criado em 2007). Contudo, não conseguiram sequer que a área se tornasse uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) e que um Decreto de Interesse Social fosse realizado indicando a futura desapropriação. Todo arsenal de instrumentos legais de reforma urbana e de fundos públicos disponíveis para tanto não foi mobilizado por nenhuma instância de governo.
Levados em “banho maria”, os moradores do Pinheirinho acreditavam que as coisas se acomodariam, como em outras ocupações de periferias urbanas que foram sendo “deixadas à sua sorte”, como forma de acomodar os pobres na cidade às custas deles próprios – fenômeno que sempre sustentou nossa industrialização a baixos salários. Em janeiro desse ano o espectro da remoção rondou novamente, por iniciativa de juízes que adotaram procedimentos contestáveis, revogaram uma liminar de uma juíza federal, bloquearam os recursos de defesa e não prepararam, com o poder municipal, a ação de atendimento habitacional emergencial e muito menos permanente para as famílias a serem desalojadas. Diante dessa ameaça o Pinheirinho formou seu exército de resistência, que teve foto publicada com destaque na primeira página da Folha de S. Paulo, no dia 14 de janeiro. Imagem do povo entrincheirado com tacapes pré-históricos e sucata da era digital, como um escudo de parabólica, protegidos por capacetes de motoqueiros, numa imagem de confronto urbano que não se vê comumente. Imaginemos se os ameaçados de despejos resolvessem fazer isso em todo o Brasil? E se a capacidade de organização do Pinheirinho e de construção do seu espaço de vida fosse feita noutros tantos lugares? Ainda apoiados por grupos de esquerda e oposição aos governos? Certamente uma lição como essa não poderia ser ensinada aos demais deserdados da terra.
A exceção na regra
O Pinheirinho não é um caso isolado. Sistematicamente ocorrem ações de despejo, incêndios em favelas, remoções, reintegrações, e urbanizações “pacificadoras” (pela força). Precisamos entender todos esses conflitos espaciais como fundamentalmente políticos, como uma disputa entre o direito à cidade e a cidade como negócio. De um lado, a terra transformada em mercadoria, de outro, em condição de vida, a terra compartilhada e habitada. Os moradores do Pinheirinho, como de tantas ocupações informais no Brasil, tinham a esperança de ver seu espaço regularizado, com moradias mais dignas, infra-estrutura urbana e novos equipamentos coletivos, como uma escola e um posto de saúde. Acreditavam, no limite, no Estado brasileiro, no direito de serem atendidos, como cidadãos, por uma política pública. Por isso se organizavam coletivamente, politicamente. Seriam reivindicações tão inviáveis, tão radicais, inflamadas por “trotskistas incendiários”? Afinal, não temos os mais avançados instrumentos legais de Reforma Urbana? Não temos o maior programa habitacional em andamento no mundo ocidental, o Minha Casa, Minha Vida? A CDHU não afirma ser a companhia estadual de habitação mais rica e moderna da América Latina? Mas nada foi feito.
O Pinheirinho, mesmo sendo parte da regra foi combatido com uma veemência especial, foi literalmente esmagado para que não sobrasse nada. Mas no campo da batalha simbólica, agora há um preço a pagar, pois a repercussão foi maior do que a esperada e a inabilidade da condução do processo ficou evidente. Para qualquer brasileiro com algum senso de justiça a ação foi inominável.
Foi a organização do Pinheirinho – materializada no espaço que ali se via -, sua disposição à resistência, a ligação com partidos de esquerda não alinhados a governos e o enfrentamento de uma propriedade escusa da terra que não despertaram a compaixão dos donos do poder e do dinheiro. É este o objeto do ataque, omitido pelos veículos de comunicação, mas que explica boa parte da desproporção da repressão policial. Não se reprimia apenas pobres “invasores”, mas uma organização política. Gente que há oito anos ocupou um terreno abandonado e deu a ele um desenho urbano que chama a atenção por sua qualidade e dignidade, com uma praça central batizada em homenagem a Palmares – e agora mais uma vez um quilombo devastado pela repressão dos dominantes.
Faltavam certamente o investimento público, a infra-estrutura, os serviços urbanos, não era um bairro sem problemas e carências, mas erguido coletivamente, da maneira que foi possível. Uma cidade apropriada e construída por todos que ali estavam, com espaços pensados para a vida coletiva, praças, parquinhos, centros comunitários, campos, cozinhas e padarias coletivas. Por isso a resistência: ela é a imagem da defesa daqueles produtores de sua obra urbana, não era apenas reação de desespero. A ação covarde ocorreu de madrugada, num domingo, com o “efeito surpresa” de uma ocupação militar. Por sorte, ou azar, a resistência não pôde ocorrer como imaginada. Chegaram tratores e escavadeiras que foram transformando em pó algo que havia sido bravamente construído e que emanava ares de liberdade, de auto-organização e de não aceitação da ordem – resultado de uma reivindicação elementar: o direito a um lugar para viver.
O ataque ao Pinheirinho foi um ataque a todos os que lutam por outra sociedade e por outra cidade. Seguiremos erguendo nossos quilombos, comunas, mutirões, assentamentos, palhoças, mesmo que sejam novamente derrubados. Somos todos Pinheirinho.
* Coletivo de arquitetura e política formado há 21 anos que apóia movimentos de luta por moradia, reforma urbana e reforma agrária em projetos autogestionários de construção civil e transformação de territórios. Ver http://usinactah.org.br.
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