Por Manolo

Esta é uma versão melhorada e atualizada de um ensaio (“In monetae signo vinces”) que teve relativa circulação em alguns meios militantes em Salvador. Como se trata de uma análise de conjuntura, precisei atualizar todos os dados onde foi possível. A atualização, entretanto, não comprometeu em nada as conclusões parciais ou gerais a que se chegou, pois – feliz ou infelizmente – todas as tendências verificadas terminaram se realizando, algumas até mais agudamente que o antecipado.

Costuma-se dizer que a política urbana vigente no Brasil é a política do favor, do clientelismo. A política do favor está mais viva do que nunca. A força das empreiteiras nas cidades, a força do capital imobiliário e a política do favor, essa coisa atrasada, elas estariam mais vivas do que nunca.

Vemos algo diferente da política do favor e da força das empreiteiras ao analisar a conjuntura das lutas urbanas em Salvador? Precisamos retornar às eleições de 2008 para estabelecer pontos de partida.

Dos R$ 2.925.231,64 arrecadados para a campanha de João Henrique de Barradas Carneiro a prefeito de Salvador em 2008, R$ 310.000,00 (ou seja, 10,59% do total) vieram de empresas do complexo produtivo imobiliário (construtoras, empreiteiras, imobiliárias, incorporadoras). Já as transferências do Comitê Financeiro Municipal Único do PMDB em Salvador para João Henrique representam 78,51% do total de doações recebidas pelo então candidato. Mas que empresas doaram para este Comitê Financeiro Municipal Único? Dos R$ 2.296.675,50 doados pelo Comitê Financeiro Municipal Único do PMDB a João Henrique, R$ 1.780.065,11 (ou seja, 77,5%% do total) vieram do complexo produtivo ligado à construção civil, às imobiliárias, às incorporadoras etc. Uma conta simples demonstra que, somados os R$ 310.000,00 de doações diretas do setor ao candidato com os R$ 1.780.065,11 de doações intermediadas pelo Comitê Financeiro, chegamos a R$ 2.090.065,11 doados pelo setor ao candidato – impressionantes 71,44% do total de sua arrecadação de campanha!

É preciso, antes de continuar, responder a outra pergunta fundamental: a situação seria muito diferente caso Walter de Freitas Pinheiro (PT) houvesse levado a Prefeitura no segundo turno das eleições de 2008? Muito embora seu perfil de captação de recursos de campanha seja diferenciado e dependa fundamentalmente do Diretório Nacional do PT, no seu caso pau que dá em Chico dá em Francisco. Ou, melhor dizendo: do total de R$ 4.524.713,93 arrecadados pelo então candidato – que terminou sendo eleito senador em 2010 – R$ 480.000,00 (ou seja, 10,60% do total) vem do setor da construção civil (construtoras, imobiliárias, empreiteiras e incorporadoras). Muito embora o grosso da verba de campanha de Walter Pinheiro haja vindo do Diretório Nacional do PT (R$ 2.648.000,00, 58,52% do total arrecadado), a participação das verbas do setor imobiliário em sua campanha, mesmo irrisória quando comparada com aquela destinada pelo setor a João Henrique, representa 46,33% das doações de pessoas jurídicas recebidas pelo então candidato, contra, por exemplo, 7,5% doados pelo setor de combustíveis (especialmente postos de abastecimento) e 8,18% doados pelo Banco BMG como representante do setor financeiro. Estes dados mostram, em escala local, que as opções dos partidos de esquerda para chegar ao poder – em todos os níveis: federal, estadual e municipal – só os comprometeram mais com a gestão do capitalismo nos diversos níveis, quando não com a pauta política imposta pelos capitalistas. Não sendo capazes de fazer avançar autonomamente sua própria pauta e de (re)compor seu próprio campo de poder, estas organizações da esquerda – e o PT em particular – optaram por diversas estratégias já consolidadas de sustentação política ou de inviabilização de gestão – em ambos os casos, transformando em outra coisa as reivindicações oriundas de uma base social composta por trabalhadores de diversos tipos. Seria este mesmo o caso? Infelizmente, não é possível responder a esta pergunta no espaço deste ensaio.

Mesmo sendo, confessadamente, a segunda pior prefeitura do país no ranking de arrecadação de impostos municipais – o que a mantém num permanente alerta vermelho contra o défice orçamentário – a Prefeitura de Salvador, graças à hegemonia do setor da construção civil na economia soteropolitana, embarcou numa onda avassaladora de obras públicas de embelezamento da cidade. Isto quando não delega diretamente sua execução e planejamento para o setor privado. Um exemplo: o tamponamento do Rio dos Seixos, margeado pela Av. Centenário, seguido, no Imbuí, pelo dos rios Cascão, Saboeiro, das Pedras e Baixo Pituaçu. Não obstante o protesto do Instituto de Gestão das Águas e Clima (Ingá), órgão estadual responsável pela gestão das águas na Bahia, e mesmo uma liminar conseguida pelo Ministério Público para embargar a obra do Imbuí, nada foi capaz de barrar obras com orçamento que chega a R$ 57,7 milhões (canal do Imbuí). Há outros tamponamentos previstos para o trecho de nascente do Rio dos Seixos, no Vale do Canela (orçado em R$ 6,6 milhões) e e de todo o resto ainda descoberto do Rio Lucaia (orçado em R$ 53,3 milhões). Desconsiderando diversos pareceres técnicos a indicar o comprometimento ambiental causado pelo tamponamento, e mesmo o fato de muitos países já haverem abandonado o tamponamento como técnica de saneamento básico, a Prefeitura seguiu nas obras, e pressiona pelo licenciamento ambiental das demais. É a valorização dos imóveis do entorno que importa: enquanto este resultado é mais evidente nos casos do Imbuí (bairro de classes C e B), do Vale do Canela (rodeado por bairros de classes B e A) e da Av. Centenário (margeada, no trecho tamponado, por bairros de classe C e B, à exceção do Calabar), na Av. Vasco da Gama (margeada por bairros de classes C e D, incluindo algumas ZEIS) a contribuição de melhoria resultante das obras contribuirá, certamente, para a expulsão branca das famílias de renda mais baixa.

Outro exemplo: os diversos megaprojetos anunciados pela Prefeitura. Em 2009 foi anunciada com estardalhaço a decretação de utilidade pública de uma área de 324 mil metros quadrados entre a Calçada e a península de Itapagipe, incluindo patrimônios históricos – tombados [reconhecidos oficialmente] ou não – como o Abrigo D. Pedro II, o Forte Monte Serrat e a Fábrica Luiz Tarquínio. Diante dos inúmeros protestos, a Prefeitura decretou no dia 30 de março de 2011 a nulidade do decreto desapropriatório. Mas o que houve foi uma troca de absurdos: desfeita esta primeira loucura, a Prefeitura anunciou, com igual estardalhaço, o lançamento do projeto Salvador Capital Mundial, reunião de vinte obras estruturantes na malha viária e na estrutura urbanística da cidade destinadas a preparar Salvador para a Copa do Mundo de 2014, que sediará com outras cidades do país. O projeto prevê “futurismos” – como a construção de uma esteira rolante suspensa entre o Largo do Pelourinho e o Largo do Desterro (Nazaré) e de uma ponte suspensa sobre o Parque de Pituaçu – e o reforço a velhos privilégios – como a retirada de casas na península de Itapagipe (outra vez ameaçada) para “ampliar a vista para o mar” e permitir a construção de hotéis cinco estrelas na região.

O primeiro passo da Prefeitura na execução deste franco redesenho da estrutura urbanística da cidade foi a desapropriação, em abril de 2010, de 5 milhões de metros quadrados de terras em áreas que variam desde muitos trechos isolados entre o Iguatemi, o Itaigara e a Av. Tancredo Neves até grandes pedaços do Bairro da Paz, do Saboeiro, da Av. Vasco da Gama (olha o tamponamento!) e do Trobogy, além de um trecho que vai da esquina do Campo Grande até o muro externo do Forte de São Pedro, apinhado de casas antigas, cortiços e pequenos negócios populares. A pressão contrária ao projeto é, novamente, grande, e já resultou na demissão, em 12 de maio, do Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente, Antonio Eduardo Abreu – ex-executivo da Braskem, versado o suficiente em preservação do patrimônio histórico para declarar que um campo de futebol na Boa Viagem era mais “emblemático” e “histórico” do que a Fábrica Luiz Tarquínio – e sua substituição por Paulo Damasceno, quadro técnico com mestrado em Arquitetura.

Estes fatos demonstram uma hegemonia que os números confirmam. A política soteropolitana é hegemonizada de facto por um bloco político não-partidário composto pelas empresas dos setores da cadeia produtiva imobiliária (construtoras, imobiliárias, incorporadoras, corretoras etc.) e da cadeia produtiva turística (hotelaria, entretenimento etc.). O primeiro setor tem como principais instrumentos políticos a Associação de Dirigentes das Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI) e o Sindicato das Empresas da Indústria da Construção Civil (SINDUSCOM). O setor turístico expressa-se politicamente através da fala individual de certos diretores de blocos carnavalescos (Joaquim Nery, Windson Silva etc.), da recém-formada Associação dos Blocos de Trio do Carnaval de Salvador (ABTCS) e da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis – seção Bahia (ABIH-BA). Enquanto o setor imobiliário age diretamente sobre todo o território municipal visando produzir imóveis, via de regra desrespeitando a legislação ambiental e urbanística existente, o setor turístico age apenas sobre as frações do território que considera de seu interesse para transformá-las em áreas de turismo de alta rentabilidade, o setor turístico, em geral, age a reboque do setor imobiliário, mas tem suas pautas específicas, todas tendentes a fazer a cidade corresponder à imagem da “baianidade” – falsa representação social de um povo “dócil”, “alegre”, “sensual”, “festivo”, “cordial” e “receptivo” que permite um racismo aparentemente mais suave, adoçado e gentil, talhado para manter a maioria do povo soteropolitano nas mais baixas condições de vida, afastado da centralidade de tudo, enquanto sua produção cultural lhe é expropriada pela indústria cultural (dominada por brancos) sem que lhe seja revertido proveito econômico algum.

Embora muito se fale da “indústria do carnaval”, que segundo a Saltur arrecadou em 2010 R$ 6,5 milhões em patrocínio a mais que em 2009 (87% de aumento), os 215 mil postos de trabalho então por ela gerados foram – e são – em sua maioria temporários. Dentre as dez ocupações com maior saldo de admitidos e demitidos entre janeiro de 2004 e janeiro de 2010 em Salvador, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Trabalho, a campeã foi a de servente de obras, e a de pedreiro está em terceiro lugar; a soma do saldo de admitidos das duas (31.362) é ligeiramente menor que o saldo de admitidos de todas as outras oito somadas (34.592). Em dezembro de 2009, o setor da construção civil ficou em segundo lugar em postos de trabalho ocupados em Salvador, atrás apenas do setor de serviços e seguido pelo setor do comércio.

E o presidente da Associação dos Dirigentes das Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (ADEMI-BA), Nilson Sarti da Silva Filho, quer dar o tom do desenvolvimento econômico baiano:

Ajudar a fazer de Salvador uma cidade mais humana e igual é dever de todos. Salvador tem sido generosa conosco e precisamos agradecer, criando empregos; melhorando a qualidade de vida através de projetos mais humanos, com programas de responsabilidade social, conservação do patrimônio histórico e que auxiliem a administração pública e organizações sociais a desenvolverem projetos estruturantes para a cidade. (…) É urgente investir em educação, pesquisa e novas tecnologias que promovam a eficiência energética, o tratamento de resíduos, a redução do consumo de água e sua reutilização. Por isso, a Ademi/BA está programando um seminário sobre sustentabilidade urbana envolvendo os Poderes Públicos, Universidades, ONGS, e vai criar um guia de sustentabilidade para orientar a sociedade como um todo. (…) É necessário também ampliar as fronteiras além da Região Metropolitana de Salvador, conhecer, atuar e contribuir para o desenvolvimento do mercado imobiliário no interior da Bahia, planejando as ações em sintonia com as prefeituras e empreendedores locais, contando com o apoio da Secretaria de Indústria e Comércio, na identificação dos vetores de crescimento de nosso estado. Temos que nos estruturar para enfrentar as demandas de um mercado que saltou de 3.151 unidades vendidas em 2005 para uma previsão de 15.000 unidades este ano. Há muito espaço para crescer. O crédito imobiliário em relação ao PIB representa apenas 3%. Nas carteiras dos bancos privados, o crédito imobiliário sobre o crédito total é de apenas 6%. Uma maior participação será possível se as taxas de juros caírem de 10% a.a. para 7% a.a., permitindo maior acesso das famílias com renda inferior a dez salários mínimos à casa própria, através do SBPE. (“Palavra do presidente”. Revista ADEMI Bahia, ano 9, nº 43)

Mas há um fato importante a ser observado na conjuntura. O número de lançamentos imobiliários em Salvador em 2009 (6.249) foi bastante inferior ao de 2007 (9.068) e infinitamente menor que o de 2008 (14.130). Se tomarmos como base o total da área municipal com construção autorizada por alvarás em 2009 (2.641.120,32 m2), ela é muito menor que a área liberada em 2008 (4.570.732,92 m2), e retorna a patamares de 2007 (2.353.822,40 m2) e 2006 (3.041.140,82 m2), quando o mercado imobiliário estava desaquecido. Estes fatos demonstram, por um lado, que o boom imobiliário causado pelas modificações no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) aprovado em 2008 está passando, mas, por outro lado, é também possível deduzir de tal frenagem brusca do mercado imobiliário que já deve estar acabando o estoque de terras livres do território municipal, estimado em 40km2 quando da elaboração do Plano municipal de habitação de Salvador – 2008-2025 (14,3% do total de terras do município, divididos em 3,51% de terras muito aptas para construção, 7,21% regularmente aptas e 3,56% menos aptas). Que farão as empresas do setor imobiliário diante disso? Mais doa quem mais tem; isto é o corriqueiro na política, mas uma lista comparativa das empresas do setor imobiliário que doaram a João Henrique e a Walter Pinheiro parece indicar que a diminuição progressiva no mercado do volume de terra apta para construção detonou uma competição no setor que transbordou para a política. Como regra geral, empresas que doaram a um candidato não doaram a outro. Das 38 empresas doadoras, somente cinco – Concreta, Costa Andrade, Fênix, Gerdau, Liz e Sertenge – doaram aos dois candidatos simultaneamente (embora a OAS e a Santa Emília hajam feito o mesmo, o volume de suas doações a Walter Pinheiro foi tão pequeno que a desproporção não justifica inclui-las nesta lista). Como se dará esta divisão de financiamentos nas eleições de 2012? E a que necessidades práticas ela responde?

Leia aqui o próximo artigo.

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito boa a análise, o tema segue ainda muito atual e a especulação imobiliaria na cidade não tem cessado, apesar do resfriamento nas vendas de imóveis, são ainda inumeras estratégias que o capital imobiliario tem encontrado para agir por aqui.
    A cidade sangra, o meio ambiente está sendo destroçado. Precisamos nos mobilizar!

  2. TO BE OR NOT… (sem catraca no projeto):
    Defender o meio ambiente ou criar um mundo em que não seja necessário “defender o meio ambiente”?

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