Por Manolo

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Como forma de contrabalançar as tendências negativas deste cenário de horrores (pois eliminá-las pediria outro tipo de esforço), há quem aposte na participação dos movimentos sociais nos espaços institucionais dos conselhos de políticas públicas, das conferências setoriais, das audiências públicas etc. Ao menos no que diz respeito aos movimentos sociais urbanos, este espaço institucional resultou da demorada, sofrida e sacrificada luta pela conquista e efetivação do direito à moradia digna. Os resultados desta luta, mesmo quando bastante impactantes, pouco se viam de imediato, mas formaram ao longo do tempo um campo institucional renovado, menos tecnocrático e mais participativo.

Segundo dados do IBGE (Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2001), há 28 mil conselhos de políticas públicas espalhados nos 5.562 municípios brasileiros, focados nos mais diversos eixos, mas principalmente nas áreas de Assistência Social, Educação e Saúde. Em 2004 estes conselhos municipais reuniam 170 mil conselheiros da sociedade civil – mais que o triplo de vereadores eleitos em todo o país no mesmo período (51,8 mil).

Apesar da baixa capacidade propositiva dos conselhos (em geral causada por entraves logísticos e institucionais impostos por agentes políticos contrários à sua implementação ou a seu papel propositivo e fiscalizatório), estes dados demonstram existir uma institucionalidade participativa já bastante estruturada no país, a cujo cargo está a gestão das políticas públicas da área social em regime de cogestão entre Estado e sociedade civil. Esta institucionalidade participativa abre novas possibilidades para a democracia no país ao mesmo tempo em que impõe novos desafios, pois a gestão de políticas públicas através de tais conselhos, mesmo sendo conquista democrática do mais alto valor, reproduz em seu funcionamento concreto e cotidiano a burocratização dos movimentos sociais – especialmente os urbanos – percebida nos últimos quinze anos.

A heterogeneidade na composição destes conselhos, verificada pela diversidade das organizações neles representadas, caminha ao lado de uma tendência à elitização da participação, pois os conselheiros, no que se refere à renda, escolaridade e engajamento político-partidário, estão bem acima da média nacional. Um perfil típico do conselheiro no Brasil descrito em pesquisa de 2004 (Democracia e participação: os conselhos gestores do Paraná) mostra que são brancos, com leve preponderância das mulheres, maiores de 30 anos, casados, de religião católica, com alta escolaridade, predominando aqueles com nível superior. Estão inseridos no mercado formal de trabalho, concentrados no serviço público municipal – inclusive os que representam a sociedade civil – e recebendo a partir de 5 salários mínimos (R$ 2.550,00 em valores atuais) como renda mensal.

Quando estes conselheiros vêm de movimentos sociais, o perfil muda, mas os riscos são semelhantes. A experiência da institucionalização dos conselhos de políticas públicas, das conferências setoriais, das audiências públicas etc. demonstra que, via de regra, não são poucos os conselhos e conferências em diferentes escalas federativas que terminam sendo ocupados pelos mesmos movimentos sociais envolvidos na questão em pauta – quando não pelas mesmas pessoas, que ocupam vagas em dois ou até mesmo três conselhos nas áreas de seu interesse. Assim, está em consolidação a formação, entre os trabalhadores, de uma nova camada social plenamente integrada entre si, formadora de uma verdadeira burocracia participativa, uma nova camada social plenamente integrada ao jet-set participativo, de lideranças que abandonam até mesmo a linguagem dos movimentos sociais e pautam-se pelas necessidades, prazos e jargão deste espaço institucional onde atuam.

É nos conselhos de políticas públicas, é onde as pautas dos movimentos é apresentada pela burocracia participativa, que a burocracia estatal age como quem luta judô: a força ofensiva dos golpes é absorvida e redirecionada em favor de quem se defende. O funcionamento destes espaços ocorre ao contrário do que tanto se reivindicara antes de sua conquista e consolidação. Sua composição, em geral feita por cooptação (nada de negativo neste termo, empregue aqui no sentido puramente sociológico e politológico do chamamento e integração em determinados espaços daqueles que lhes são mais próximos e que inspiram confiança em quem já os integra), dificulta a compreensão, por parte dos “inorganizados”, dos critérios empregues no processo. Sua pauta, quase sempre técnica, dificulta a participação destes mesmos “inorganizados” em debates cujo conteúdo, dissipada a névoa tecnicista, lhes interessa diretamente. Seu caráter, quase sempre consultivo, sequer aponta, no campo a que se dedicam, possibilidades reais de contestação aos desmandos de qualquer dos três Poderes; a bem da verdade, o episódio da aprovação do programa Minha Casa, Minha Vida, sem qualquer consulta ao Conselho Federal das Cidades, escanteado e impotente, demonstra que na correlação de forças políticas frente aos órgãos centrais do planejamento econômico os conselhos tem pouco ou nenhum peso.

A busca preferencial dos movimentos sociais – em especial aqueles das cidades – por estes espaços institucionais é sintoma da incorporação, por parte das lideranças dos movimentos sociais, de técnicas de controle e gestão dos trabalhadores empregues pelos próprios capitalistas. Na luta contra a injustiça sob o regime capitalista, estas lideranças terminaram fazendo avançar sua pauta secundarizando o aspecto pedagógico que a participação popular tem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para estas lideranças burocratizadas, a conquista de reivindicações imediatas transformou-se de meio de luta para a transformação da sociedade em meio de vida; sendo assim, nada mais natural que aprender a gerir as expectativas e pequenos conflitos no seio dos movimentos para mantê-los sob seu controle e, posteriormente, transformá-los, nas mesas de negociação junto a burocratas do Estado, na forte moeda política que são as “listas de cadastros”, “número de ônibus”, “número de pessoas” etc.

Neste ritmo, convocatórias para atividades simples como a exibição de um filme nos espaços ocupados são feitas com o mesmo chamamento: “atenção meu povo, agora é hora de assembleia e a gente vai discutir as casas!” Sob a desculpa de que “de outro jeito o povo não vem”, estas práticas são refinadas ao ponto de, em determinadas atividades, certas lideranças porem em circulação listas de presença que funcionam como relógios de ponto nas fábricas, garantindo prioridade no acesso aos direitos reivindicados através da luta – de todos! – a quem mais participe: “participar de passeata dá cinco pontos, participar de assembleia dá três pontos, participar de reunião dá dois pontos…” Nas cooperativas, a gestão financeira concentra-se em poucas pessoas, quando não numa só; mesmo sem o desejarem, estas pessoas são vistas e tidas como patrões. Nas mobilizações, as assembleias funcionam mais como demonstração de força das lideranças para as “autoridades” que como espaços de debates sobre os rumos dos movimentos; são, em geral, momentos em que as lideranças – e apenas elas – dão “informes”, sem espaço para discuti-los ou explicá-los.

Um esprit de corps se forma dentro desta burocracia participativa, o que dificulta a penetração em seu seio de pessoas pouco afinadas com ele. Quando as reivindicações apresentadas nos espaços de gestão participativa são suficientemente genéricas (diretrizes gerais de execução de políticas públicas etc.) elas afetam positivamente outros movimentos, mas quando são mais específicas (construção de casas, obras de saneamento básico etc.) atendem mais aos interesses do próprio movimento que representam que aos interesses gerais a serem alcançados pelas políticas propostas. Os recursos públicos – de qualquer tipo – chegam mais fácil para quem está inserido neste métier, e quem está fora dele mal sabe como acessá-los. Como as tônicas da gestão pública brasileira na última década são a ampliação da implementação dos conselhos gestores de políticas públicas nos mais diversos setores e o aprofundamento de suas competências administrativas, o dilema para os movimentos sociais neste período é o de submeter-se à lógica burocratizante dos espaços de participação ou ficar à margem das decisões e conquistas.

Pior ainda é o caso daqueles movimentos sociais que tentam manter-se à margem deste processo. Tentam manter as bases mobilizadas, buscam estimular ao máximo a participação nas atividades coletivas, esforçam-se para quebrar a burocracia do Estado, mas vêem-se envolvidos por um complexo de fatores que desemboca na apassivação das bases. É regra geral que quanto mais velha a ocupação e quanto mais tempo aguarda por regularização fundiária ou construção de conjuntos habitacionais ao invés de começar de imediato um processo coletivo de construção autogerida, mais se fragmentam as relações sociais e mais difícil se torna a mobilização. Além disto, a profusão de programas habitacionais, a facilitação ao crédito imobiliário e o incontornável espetáculo da transformação de Salvador num canteiro de obras a céu aberto – novos prédios surgem nos lugares mais improváveis, e aos borbotões – dão a impressão de que basta esperar e tudo ficará bem. E enquanto esperam, as famílias podem sofrer nas ocupações com a falta de saneamento básico, com as batidas policiais, com a chegada de pequenos varejistas de drogas, com as chuvas, com os incêndios – para elas, tudo isto é sofrimento, dor e angústia, mas no final das contas a casa chegará. Às lideranças destes movimentos que tentam “correr por fora” da burocracia, diante deste grau de apassivamento das bases, resta verem-se forçadas a trabalhar de graça para o Estado fazendo tudo o que é de responsabilidade do setor de assistência social dos órgãos responsáveis pela habitação na Prefeitura de Salvador (Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente – SEDHAM) e no Governo da Bahia (Secretaria de Desenvolvimento Urbano – SEDUR). Sob a desculpa de “falta de pessoal”, estes órgãos empurram para as lideranças de movimentos a preparação das listas de cadastrados, a checagem de cadastro por cadastro em busca de erros, a solução dos muitos problemas de documentação das pessoas, as convocatórias telefônicas para entrega de chaves (gastando todos os créditos de seus celulares)… e assim o tempo e os recursos que poderiam ser empregues em ações mais importantes, no fortalecimento do tecido social das ocupações, na consolidação de alianças com outros movimentos e na construção de estratégias para os movimentos, este tempo e estes recursos são sorvidos, mesmo contra a vontade destas lideranças, pelo incontornável turbilhão burocrático dos programas habitacionais.

A reivindicação dos movimentos de luta pela reforma urbana de Salvador pela implementação do Conselho Municipal da Cidade precisa ser vista por esta ótica. Reivindicação apresentada à Prefeitura pelos movimentos sociais de luta por reforma urbana em manifestação convocada pela bancada de oposição da Câmara Municipal para o dia 19 de maio de 2010, o Conselho, na verdade, já fora instituído no PDDU (art. 296) como atendimento às reivindicações da bancada de oposição a João Henrique, mas, até o momento, depende de um decreto da Prefeitura para sua implementação. Esta reivindicação vem no bojo das críticas dos movimentos sociais aos decretos desapropriatórios decorrentes do plano Salvador Capital Mundial como tentativa de estabelecer um contrapeso à hegemonia conjunta das empresas do setor imobiliário e dos latifundiários urbanos sobre a cidade. A julgar pela experiência dos malfadados Conselho Municipal de Transporte e Conselho do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social – o primeiro, convocado somente para conferir um “amém” democrático aos aumentos de tarifas programados; e o segundo, criado apenas para viabilizar o acesso do Município a programas federais de habitação geridos pelo Ministério das Cidades e para colocar movimentos sociais para brigar entre si sobre que projetos habitacionais enviar para captação de recursos – a julgar por tal experiência, qual seria o papel de um Conselho Municipal da Cidade na conjuntura política? Seria preciso, como no caso do Conselho Municipal de Transporte, uma mobilização popular como a Revolta do Buzu (2003) para fazer com que os conselheiros – representantes do povo, vindos do povo para agir em favor do povo! – façam avançar propostas mais aptas a sacudir a hegemonia vigente e redirecionar o desenvolvimento urbano de Salvador? E, mesmo diante da baixa probabilidade de uma mobilização de massas como esta, por fatores já ditos e outros vários mais, qual seria, nela, o papel destas lideranças já domesticadas pela “participação”: freio ou acelerador das lutas?

6 COMENTÁRIOS

  1. Excelente texto, Manolo. Duvido que alguém possa ter vivido a experiência da “participação” e não ter presenciado o que vc relata: engodo e travamento das lutas. Faltou a cooptação partidária das lideranças – algo que o PT aperfeiçoou no âmbito dos conselhos. Um exemplo vivenciado: em 2007, fomos surpreendidos com a informação da filiação de Z.B, liderança em ascensão do Movimento Sem-Teto da Bahia, ao PT, em especifico à corrente do Secretario de Desenvolvimento Urbano. Mas onde foi mesmo que ele conheceu o secretário?

  2. Vavá, o caso de ZB foi clássico em termos de cooptação. Não só de cooptação, mas de pilantragem mesmo. Durante o incêndio que houve numa ocupação ano passado, ele voltou a aparecer por lá, mesmo tendo sido corrido de lá pelas mulheres anos atrás. Tentou “pongar” no apoio que vinha sendo prestado, correndo a notícia de que ele é quem havia mandado ofícios a torto e a direito para conseguir lonas, cestas básicas etc. E ainda tenta aparecer em outra ocupação melando o trabalho de uma comissão de construção em estágio ainda embrionário. Enfim…
    Mas tem gente que fez o caminho contrário, e você conhece bem: militante estudantil da DS, foi “esquerdizando-se” à medida que travou contato com o cotidiano do(s) movimento(s) e os entraves burocráticos à sua ação. Ou seja: a via é de mão dupla, e é aí que mora o perigo.

  3. Não sei se foi Kollontai, mas com certeza foi uma mulher comunista, que certa vez foi acusada por um operário social-democrata, ou algo do gênero, de ser uma burguesa e que por isso não deveria estar falando da vida dos trabalhadores. Ela, de pronto, disso que os dois eram a mesma coisa, exatamente por causa da origem de classe de cada: ambos eram traidores. Pois é, os gestores, ainda bem, também gostam de pular uma cerca vez ou outra.

    Outra coisa é que nossas almas não descararão em paz enquanto não contarmos ao mundo o que vivemos naquela ocupação. Para expurgar este fantasma, só relatando como nos transformamos comunistas à medida que criávamos [ou pela menos ajudávamos a criar] um monstro. Se não foi aquela a experiência mais rica das nossas vidas, pela complexidade, contradições e intensidade, eu tenho medo do que me aguarda pela frente.

    Manolo, desculpa fugir ao tema central ao seu artigo, mas vocês provocaram…

  4. Não acho que se fugiu do tema, muito pelo contrário. É destas experiências aparentemente pequenas que vão surgindo relações sociais de outro tipo, que as rotinas vão sendo rompidas, que solidariedades práticas se consolidam… ainda mais quando se tratou de uma experiência coletiva. Que, é claro, merece ser contada — e não creio que haja melhores pessoas para isto além daqueles que a viveram diretamente, como você e Vavá.

  5. Manolo, parabens pela percepção da diferença participação institucional x movimentos sociais: estes são privilégio das fases de acampamentos em massa, reivindicações em urgências etc. Não percamos essas chaves do social – empunhadas pelos tais grupos do povão. Avanti!

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