Por Militantes anônimos pela Memória, Verdade e Justiça
No dia 7 de abril, o “dia do médico legista” e também “dia do jornalista”, cerca de 200 militantes pela Memória, Verdade e Justiça – familiares de mortos e desaparecidos na ditadura, participantes de entidades de direitos humanos, coletivos de jovens sensibilizados pela causa – inauguraram a prática do “esculacho popular”. Esculacho Popular para lembrar e impedir que a tortura e a violência policial continuem a fazer vítimas. É o terrorismo de Estado do período da Ditadura que continua presente e impune. É preciso lembrar as vítimas do passado e do presente.
O “esculacho popular” se expressou através de uma marcha pelas ruas do bairro de Vila Madalena, em direção à casa do médico Harry Shibata, o legista do esquecimento que foi colaborador prático e intelectual da obra de terrorismo de Estado durante a ditadura militar. Assim, como tantos outros médicos legistas, sua participação foi a de fornecer laudos falsos, ocultando evidentes sinais de tortura como a causa real da morte. Atestavam que as mortes resultavam de “atropelamentos”, “suicídios”, “mortes em tiroteio”. Durante todo o percurso da marcha, foi explicado à população, com paradas em alguns pontos, quem foram os militantes cujas mortes sob tortura foram acobertadas por Shibata. Por exemplo: Carlos Marighela, Vladimir Herzog, Sonia Maria de Moraes Angel, Antonio Carlos Bicalho Lana, Luís Hirata, Emanuel Bezerra dos Santos, entre muitos outros.
Fomos denunciar a impunidade do médico legista da ditadura, que ensinava como esconder as marcas de torturas, prática policial usual até hoje. Seu registro foi cassado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, mas ele conseguiu anular essa cassação com um mandato judicial. Na frente de sua casa foram lembrados com a saudação “Presente, Agora e Sempre!” todos aqueles cuja morte sob tortura foi ocultada por laudos desse legista. Foi também colocada uma coroa de flores com suas fotos, foram escritas no chão palavras de ordem e foi lido o Manifesto da Frente de Esculacho Popular (ver aqui). Na noite anterior, já haviam sido colados nas ruas do bairro cerca de 800 cartazes explicando à população quem foi Harry Shibata e quem foram as vítimas de seus laudos falsos.
Com este ato buscamos construir uma prática política essencialmente reflexiva, defendendo a construção de uma “geografia da memória” que ressignifique na cidade os pontos símbolos, signos da memória do terrorismo de Estado.
Este primeiro ato de Esculacho Popular foi precedido de uma longa preparação e amadurecimento político, iniciado por um grupo de jovens que não viveram a ditadura civil-militar, mas que se sensibilizaram pela luta por Memória, Verdade e Justiça por razões diversas, sejam familiares, sejam ideológicas. A reflexão incluiu um certo tipo de compreensão de como essa luta se insere no Brasil atual. A intenção inicial, obtida, era conseguir a adesão do mais amplo espectro de militantes, seja em termos geracionais, seja em termos de apreciação do momento político que vivemos, reproduzindo a diversidade em que se dá a luta.
A luta por Memória, Verdade e Justiça ficou adormecida por longos anos após o fim oficial da ditadura civil-militar, desviando-se todo o ardor militante para a luta eleitoral em torno de um partido, com a esperança de que, “chegado ao poder”, tudo seria diferente. Só poucos militantes conservaram a chama de lembrar os mortos e desaparecidos. Por isso o Manifesto, relembrando o papel específico desses laudos no estabelecimento de uma falsa história, escreve:
“Estes médicos, que utilizaram seus conhecimentos para esconder a violência do terrorismo de Estado, são exatamente uma das peças centrais da amnésia histórica. Não foram um ou dois monstros desumanos, foi uma estrutura institucional do Estado que funcionava como uma engenharia da mentira e do acobertamento. O esquecimento do extermínio faz parte do extermínio.
Trata-se simplesmente da domesticação da memória. As vozes do poder tentam dissimular o passado elegendo seletivamente porta-vozes revisionistas da geração, que nos pedem para ‘esquecer tudo que escreveram’.
Alguns se colocam como se fossem os exclusivos responsáveis pela conquista da democracia. Como se ela tivesse sido inteiramente conquistada e como se não a conquistássemos cada dia, como se a luta de classes desaparecesse pelo simples direito mínimo ao voto direto. E terminam por isolar o golpe como um acaso histórico. Sabemos que quando se isola a Ditadura militar e se fixa a mesma no passado longínquo, como algo que nunca voltará a acontecer, se acobertam as arbitrariedades que continuam por parte dos agentes militarizados do Estado.”
Por outro lado, neste recomeço de luta por Memória, Verdade e Justiça a que assistimos nos últimos anos, é possível verificar que, “chegados ao poder”, pouco mudou. Como agora a reconstituição da história não mais pode ser evitada, o que se vê é uma luta ideológica por deformações interessadas. Deformações por parte da direita, representada essencialmente pelos militares, porém endossadas aqui e ali, em alguns pontos, por correntes que se consideram progressistas porém mal escondem seu desejo de obstaculizar o conhecimento da verdade, ou seja, de impedir radicalmente o fim da tortura. Um dos elementos dessa reconstituição da história é a chamada “teoria dos dois demônios” que a todo momento aflora, como se pudesse haver paralelismo e neutralidade entre as duas partes, de um lado agentes agindo em nome do Estado, de outro militantes lutando. Por isso o Manifesto insere esta interpretação como peça da “engenharia do esquecimento”:
“Como se os mortos e desaparecidos políticos fossem responsáveis por sua própria morte. Como se a guerrilha ou o direito de uso da violência contra um regime opressivo justificasse a tortura e a execução sumária. A Lei de Anistia cinicamente reproduz esta lógica perversa. Como se nós, por buscarmos justiça, fôssemos revanchistas.”
Pela mesma razão, lembra qual é o papel da nossa Lei da Anistia, de 1979, instrumento de conciliação e, portanto, de esquecimento, ressaltando:
“a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em dezembro de 2010, condenou o Brasil a investigar e punir todos os crimes da ditadura militar. Mas vigora a Lei da Anistia que configura um acordo entre carrascos que extorquiram uma falsa reconciliação. E esta Lei hoje protege com uma vergonhosa fortaleza de mentira jurídica estes criminosos de guerra, peças mestras do terrorismo militar de Estado durante a ditadura.”
A perspectiva de ação da Frente de Esculacho Popular é a unidade de todas as forças que lutaram contra a ditadura civil-militar, seja através da luta armada, seja através de outros meios combativos, bem como a unidade de todos aqueles que hoje, jovens ou “de muitas primaveras”, ainda continuam lutando para que efetivamente se alcance a Memória, a Verdade e a Justiça. Por isso diz o Manifesto que a luta hoje deve ser feita por:
“grupos de diferentes tendências, partidos, agrupamentos e linhas políticas anticapitalistas (…) para além dos diferentes matizes, para resistir às ofensivas da extrema-direita. A Frente de Esculacho Popular se integra neste esforço e saúda todos os aliados. (…)
Acreditamos que apenas com a auto-organização de situações e espaços de poder popular e de memória militante poderemos re-costurar as fraturas da memória social. (…) Sentimos a necessidade histórica de ir para as ruas buscar expor para o bairro, para os vizinhos, para a cidade, para a família, colegas e toda a população, em atos de memória militante, nosso passado fraturado.”
A ascendência do avanço popular em outros países da América Latina é reivindicada pelos militantes da Frente de Esculacho Popular ao lembrar que:
“Os Escraches Populares na Argentina e também as Funas Chilenas foram nossa inspiração. Em todos estes países foi necessária uma forte pressão popular para o julgamento e a punição dos militares genocidas. Por isso, cansados de tanto sermos esculachados impunemente, sentimos a necessidade de construir o Esculacho Popular, como uma forma de expor, lembrar e acusar os responsáveis pelos crimes da ditadura, homenageando nossos mortos e desaparecidos políticos, refletindo sobre o esquecimento e pressionando a sociedade e o Estado por justiça e pelo fim da impunidade.”
Os militantes que se uniram para esta iniciativa entendem que o próprio “fim” da ditadura civil-militar tem que ser entendido como relativo e inserem essa sua luta no contexto da violência policial e terrorismo de Estado de que é vítima, hoje, uma enorme parte da população brasileira, os pobres. As homenagens de memória à luta dos que tombaram devem ser inspiradoras. Por isso, na data do primeiro ato, relembraram:
“Na verdade, é como se os gritos daqueles mortos e desaparecidos voltassem a ser ouvidos. A tortura é uma prática institucional do Estado ainda hoje. E a todo instante esquecemos que enquanto estamos aqui, alguma pessoa deve estar sendo torturada em alguma delegacia ou prisão no Brasil. (…)
Hoje, estamos aqui também para interrogar, para buscar na memóriade nossos mortos e desaparecidos um sentido para a compreensão do horror. Porém, só conseguiremos isso interrogando não apenas a memória de suas mortes, mas também o sentido da luta destes camaradas.
Somos militantes da vida. Acreditamos que podemos interrogar e disputar o significado de juventude que queremos. Uma identidade combativa de juventude que representou esta geração, uma memória viva na militância. Esta identidade oculta de uma geração que buscava, muito além de uma democracia burguesa, uma perspectiva revolucionária anticapitalista.
Lembramos como viveram e morreram para continuar lutando para que acabe a roda-viva da desigualdade e da opressão contra os mais pobres. Sabemos que a impunidade dos torturadores é a correia de transmissão que sistematiza e intensifica a continuidade das práticas de brutalidade pela Polícia e pelo Exército no Brasil. Temos que reaver nossa história que foi seqüestrada e desaparecida junto com os corpos de nossos camaradas. Para isso temos que constituir um trabalho de identificação de sítios e lugares de memória da violência da repressão, uma geografia política da memória que exponha os responsáveis e que nos ajude a não esquecer onde e como se passaram estes crimes. (…)
Estamos aqui porque há polícia por toda parte e justiça em lugar nenhum. Os mesmos métodos da ditadura foram utilizados nos crimes de maio de 2006, na USP, na Cracolândia, no Pinheirinho, no Quilombo dos Macacos, contra os Guarani Kaiowá, em Sonho Real, em Eldorado dos Carajás, no Carandiru, nos assassinatos dos Sem Terra e com tantos militantes e jovens negros e pobres pelas periferias do país.
Assim, denunciamos que a repressão, a tortura, o extermínio seletivo não começaram e não terminaram com a ditadura militar. Permanecem como uma prática institucional, como instrumento da criminalização da pobreza, e no machismo, na homofobia, no racismo e na repressão política.”
E é por tudo isso que o primeiro ato da Frente de Esculacho Popular foi acompanhado das seguintes palavras de ordem:
“Pelo fim da farsa da Lei da Anistia para torturadores.
Não esquecemos, não perdoamos, não reconciliamos!
Se não houver justiça, haverá esculacho popular!“
Fotos por Zanini H.