O xadrez pode ser parte de uma socialização/educação alternativa, mas isso exige um outro ethos enxadrístico. Por Marcelo Lopes de Souza
Leia aqui a 1ª parte deste artigo.
O xadrez como um “fim” e o xadrez como um meio
Poderia parecer óbvio para muitos que, na qualidade de um hobby, de um passatempo, ou mesmo de uma “ginástica da inteligência”, o xadrez não poderia aspirar a ser outra coisa que não um meio – notadamente um meio de entretenimento, de distração ou, mais ambiciosamente, de capacitação mental/intelectual, sobretudo de crianças e adolescentes. Entretanto, sob o capitalismo, a mercantilização potencial de todas as coisas propiciou que também a diversão e a cultura dessem margem ao surgimento de “indústrias” (“indústria do entretenimento” e “indústria cultural”). Assim como jogadores de futebol ou basquete, também enxadristas podem se profissionalizar e, literalmente, viver do xadrez (muito embora, em um país como o Brasil, onde o xadrez é muito pouco valorizado, isso seja praticamente impossível). Ademais, assim como intelectuais e literatos, grandes jogadores de xadrez podem ganhar expressivas somas de dinheiro publicando livros de xadrez e virando “celebridades” (a exemplo de Bobby Fischer e, bem mais recentemente, de Garry Kasparov).
Se já não bastasse o imaginário capitalista em geral, os apelos e as possibilidades concretos que, pelo menos em alguns países, se apresentam no que tange à profissionalização do enxadrista, ajudam a criar uma situação um tanto aberrante: aquela em que jovens abrem mão de se dedicar como deveriam ou poderiam aos estudos escolares, ou a adquirir mais cultura geral, ou a devotar-se a algum tipo de atividade mais altruísta e politicamente relevante, para consumir várias horas por semana ou mesmo por dia jogando xadrez, lendo livros sobre xadrez, estudando partidas de xadrez…
Para mim, a exemplo de tantos outros enxadristas, é indubitável que uma partida de xadrez pode não só emocionar mas, igualmente, possuir grande beleza, além de ser inspiradora também por outras razões. O prodígio Bobby Fischer abandonou a escola ainda adolescente para se dedicar integralmente ao xadrez, e nunca saberemos exatamente se a ciência, a arte ou a reflexão filosófica (ou a carpintaria, a jardinagem ou qualquer outra atividade humana construtiva) perderam muita coisa com essa decisão. O que sabemos é que, graças a ela, o xadrez, em sentido estrito, tornou-se ainda mais sublime. O ponto, contudo, não é esse. Uma “ginástica da inteligência” que não evita que atitudes anticavalheirescas sejam cometidas (como aquela antológica de Alekhine contra Capablanca, ao recusar-se a dar-lhe a revanche após a conquista do título mundial, como havia sido previamente acordado), e talvez mesmo contribua, pelo exagero da dedicação unidimensional (podendo chegar ao vício, à obsessão), para “desinteligências emocionais”, posturas irracionais e falta de sabedoria – bem, uma tal “ginástica”, nessas circunstâncias, não está provocando um efeito muito “saudável”, nem no plano individual nem no coletivo. Sobre o tópico “desinteligências emocionais”, aliás, o mesmo Fischer ilustrou como poucos o quanto de insanidade e, nessa esteira, de tragédia pessoal e de desperdício de energia pode ser (re)alimentado pela dedicação unidimensional obsessiva; isso é plenamente atestado por suas declarações antissemíticas e por outras tantas palavras e atitudes típicas das últimas décadas de sua atribulada vida (ou mesmo já desde a sua adolescência [1]), caracterizadas pela degradação e pelo sofrimento do banimento (perda da cidadania estadunidense e processo contra ele nos EUA) e do quase total isolamento. [2]
Faz-se mister admitir que o ethos enxadrístico dominante, embebido no imaginário individualista e competitivo da sociedade burguesa, estimula permanentemente a transformação de um meio (de autoaprimoramento, de aproximação com os outros etc.) em um “fim” – com todos os “efeitos colaterais” que podem daí advir. Certamente, o xadrez nada tem de excepcional quanto a essa possibilidade de propiciar “exageros” e “distorções” (meio de sublimação de desejos, estímulo a comportamentos antissociais etc.): isso pode ocorrer, e ocorre frequentemente, com muitas outras ocupações e atividades, intelectuais e mesmo físicas. Mas, no caso de uma atividade que, a despeito de sua beleza e de seus benefícios potenciais, não contribui diretamente para aumentar o nosso conhecimento sobre o mundo ou diminuir as injustiças e as dores e misérias humanas, a problemática da passagem do “remédio” a um “veneno” (lembrando da máxima de Hipócrates: “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”), aqui representada e imediatamente suscitada pelo ethos enxadrístico (pequeno-)burguês, torna-se particularmente nítida.
Indo mais longe, não é apenas a partir de uma perspectiva preocupada com o aumento da autonomia individual que o valor do xadrez como um meio, e não propriamente como um fim, deve ser advogado e afirmado. É principalmente do ângulo da autonomia e dos interesses coletivos que os comportamentos antissociais e outras distorções merecem ser censurados. O xadrez pode ser, sim, parte importantíssima de uma paidéia, de uma socialização/educação alternativa, comprometida com a construção de uma sociedade mais livre, solidária e justa. Mas isso exige um outro ethos enxadrístico, muito distinto do ethos (pequeno-)burguês. Exige, a meu ver, um ethos libertário. O que, por sua vez, pressupõe (e reforça…) uma praxis libertária.
“Jogando com as pretas”
Um ambiente particularmente propício ao exercício desse ethos enxadrístico libertário são, justamente, os espaços nos quais homens e mulheres vêm, em muitos países, procurando desenvolver práticas de resistência política, cultural e econômica, contrapondo-se, de modo e com intensidades e ambições variáveis, ao Estado e ao mercado capitalistas. Nos “territórios dissidentes” de piqueteros na Argentina, de sem-teto e sem-terra no Brasil, de zapatistas no México etc. temos a possibilidade de ver florescer uma nova forma de encarar o jogo de xadrez, no contexto de preocupações (político-)pedagógicas embebidas em sentimentos e convicções antiautoritários e não-conformistas.
Os movimentos sociais emancipatórios, pode-se dizer figurativamente, “jogam com as pretas”: suas desvantagens materiais, sua falta de prerrogativas legais para gerir e planejar autonomamente os seus espaços, a escassez de recursos e a estigmatização (e mesmo a criminalização) com que têm de lidar diariamente – tudo isso é inegável. Mas nada disso é irreversível ou imutável. Mesmo com “desvantagem material”, aquele que “joga com as peças pretas” pode, explorando e refinando seus dotes estratégicos e táticos, “obter vantagens posicionais”, diminuir aos poucos a “desvantagem material” (“ganhando a qualidade”, aqui e ali [3]), “colocar o rei branco em xeque” e, quem sabe…
Abandonando agora o terreno metafórico e retornando ao jogo de xadrez concreto, mas mantendo a ponte com o sentido figurado, pode-se dizer que a “Arte de Caissa” constitui um excepcional treinamento para aqueles que precisam ou precisarão antecipar os lances de um oponente, construir cenários e formular alternativas, pensar tática e estrategicamente, saber explorar as debilidades de um oponente que está em vantagem e aprimorar o raciocínio espacial, sempre combinando ousadia com paciência…
Em 2009, apresentei um projeto a meus jovens colaboradores da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, pesquisadores engajados, faziam parte, ao mesmo tempo, do “grupo de apoio” ao movimento dos sem-teto: intitulado Ocupando os tabuleiros, ele era voltado para a disseminação do xadrez junto às crianças e adolescentes das ocupações de sem-teto do Rio de Janeiro. Infelizmente, depois de um começo promissor, a empreitada não avançou, devido a diversos empecilhos. Mas creio que permanece sendo um exemplo bastante válido, ainda que modesto, daquilo que pode e deve ser feito. Em uma época em que o romantismo foi largamente banido do ambiente enxadrístico − uma época em que jogos solitários contra programas de computador ou partidas pela Internet tantas vezes substituem a interação presencial com parceiros de carne e osso −, quem sabe se não será das ocupações de sem-terra e sem-teto, dos barrios pobres e dos guetos, dos loteamentos de periferia e das favelas (seja lá o nome que assumam: barriadas, callampas, villas miséria, bairros de lata…) que virá um renascimento da “ginástica da inteligência”, desta feita a serviço do inconformismo, da desalienação e da justiça social?…
Espero que este pequeno texto incentive, para além de uma motivação meramente lúdica, o aprendizado e a (re)contextualização crítica do xadrez por parte de nossos jovens – disseminadores privilegiados, e a quem estas linhas são, prioritariamente, endereçadas. E, para aqueles que já dominam o xadrez mas, mesmo sendo dotados de um espírito crítico e inconformista, nunca refletiram sobre as possibilidades brevemente exploradas nos parágrafos precedentes, oxalá estas páginas estimulem iniciativas que promovam a difusão do jogo associada à sua valorização político-pedagógica.
Notas
[1] Consulte-se, a esse respeito, os capítulos 2 e 3 do livro de David Edmonds e John Eidinow (op. cit.).
[2] Sintomática é, a respeito simultaneamente da genialidade e do drama de Fischer, o seguinte trecho de uma declaração de Garry Kasparov sobre ele, postada na Internet logo após a morte do ex-campeão, em janeiro de 2008: “[a] implacável energia de Fischer exauria tudo o que ele tocava – os próprios recursos do jogo, seus oponentes no tabuleiro e fora dele, e, tristemente, sua própria mente e seu próprio corpo” (“Fischer’s relentless energy exhausted everything it touched – the resources of the game itself, his opponents on and off the board, and, sadly, his own mind and body”).
[3] Para quem não está ainda familiarizado com o jogo de xadrez, esclarece-se que “ganhar a qualidade” significa trocar uma peça de menor valor relativo por outra de maior valor relativo (um peão por um cavalo ou um bispo, um cavalo ou um bispo por uma torre etc.).
Olá,
Aproveitando as questões abordadas no artigo e também apontadas pelo Tomazine na primeira parte do artigo, achei pertinente compartilhar uma pequena reportagem sobre esse importante trabalho desenvolvido na Zona Sul da cidade de São Paulo.
Seus proponentes são parceiros, por meio de seu grupo de rap e projeto, e estão presentes em várias lutas e debates com vários coletivos autônomos aqui de São Paulo – como a Rede Extremo Sul e a Rádio Várzea Livre, para ficar em apenas dois exemplos.
No mais, seria muito interessante que o Marcelo e outras pessoas conhecessem in loco essa experiência aqui de São Paulo capital.
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18/06/2012
Xadrez e hip-hop viram reforço escolar no GrajaúGrupo de rap
Xemalami cria programa para melhorar a concentração dos jovens alunos na Zona Sul da Capital
O xadrez e a dinâmica do rap ajudam na memorização, concentração e raciocínio
No Jardim Reimberg, localizado próximo do Grajaú, na Zona Sul da Capital, um grupo musical adotou o jogo de xadrez como filosofia de vida e instrumento de transformação social.
Há cerca de dez anos, o rapper Drezz, de 35 anos, conseguiu unir o hip-hop e o jogo de xadrez no projeto “Xadrez Itinerante”. Ele e alguns amigos aplicaram elementos da cultura do rap ao tradicional jogo de xadrez. Essa é a liga e o motor propulsor do projeto que ensina o jogo e promove torneios na praça Anisio Barbosa da Silva.
As competições e aulas são embaladas pelas apresentações do grupo, chamado Xemalami, que significa Xeque Mate La Misión.
O rap funciona como chamariz para que as crianças e adolescentes do bairro se aproximem e participem do projeto. “O xadrez, assim como o hip-hop, pode ser o ponto de partida para uma transformação na vida das pessoas. Eles despertam qualidades, habilidades e valores que serão importantes no futuro”, afirma Drezz.
Por dois anos, em 2008 e 2009, o coletivo conseguiu financiamento da prefeitura através do programa VAI para desenvolver as oficinas durante o Projeto “Xadrez Sem Muros”.
As oficinas são livres e também têm foco em alunos com dificuldade escolar. O xadrez e a dinâmica do rap ajudam na memorização, concentração e raciocínio. “Depois que começa a jogar xadrez, o aluno expande o seu pontencial de concentração, de planejamento e avaliação de risco. Tanto na escola quanto na rua, ele passa a aplicar esse padrão de raciocínio para aprender”.
Batalha/ Graças à popularidade do Xemalami no movimento hip-hop, as batalhas e os desafios de xadrez estão presentes em muitos shows de rap. As inscrições são gratuitas e qualquer pessoa pode participar.
http://www.diariosp.com.br/noticia/detalhe/25053/Xadrez%20e%20hip-hop%20viram%20reforco%20escolar%20no%20Grajau
Xavier, muito obrigado! Fiquei extremamente curioso – e contente, claro. Já está anotado: da próxima vez que eu for a Sampa, gostaria muitíssimo, sem dúvida, de conhecer “in loco” o projeto “Xadrez Itinerante” e o Xemalami. A cultura do hip-hop é bastante forte em São Paulo, e lembro de experiências (que cheguei a conhecer) de cooperação/intercâmbio entre rappers e uma parte do movimento dos sem-teto. A valorização do xadrez é, sem querer fazer trocadilho, uma ótima jogada.