Se não há “estrada real para a Geometria”, diante do tabuleiro tampouco há privilégios de classe, étnicos, de gênero ou etários. Por Marcelo Lopes de Souza

Acredito que parecerá estranho publicar um texto sobre o jogo de xadrez no Passa Palavra – e, ainda por cima, com um título que pode soar como beirando a pieguice. Contudo, penso não ser necessário que o leitor seja aficionado por xadrez para compreender o nexo que proponho (já anunciado pelo subtítulo), e que vou construindo ao longo do texto, até desembocar, no final, em uma sugestão de cunho prático. No fundo, talvez seja, de fato, uma suprema ousadia essa minha, a de incentivar pessoas dotadas de elevado senso de crítica social a olharem com outros olhos uma forma de entretenimento que, o mais das vezes, tem sido associada (e com razão) a valores e comportamentos individualistas, competitivos, conservadores e até machistas. Mas… e se subvertêssemos as formas usuais de cultivo desse passatempo intelectual, para recontextualizá-lo político-socialmente? Pouco nos custará, afora o esforço de aceitarmos que contribuições para uma socialização crítica e um projeto emancipatório, por mais indiretas que sejam, podem vir do teatro, da literatura, da música, do cinema ou… de um simples jogo.

Um jogo que é (e, sobretudo, pode ser) muito mais que um jogo

Chegou a hora da revolução. Nem monarquia, nem exército, nem hierarquia, nem patrões, nem padres.

Segundo Goethe, o xadrez é uma “ginástica da inteligência”. [1] Não é difícil concordar com isso, desde que se tenha em mente que a inteligência possui numerosas facetas e que nem todas, certamente, são exploradas ou evidenciadas durante uma partida deste que, nas palavras de Montaigne, seria “muita ciência para ser jogo, e muito jogo para ser ciência”. [2]

O xadrez tem muito a ver com concentração, memória, raciocínio lógico (ainda que dentro dos limites da lógica formal) e imaginação. A isso se devem acrescentar a combatividade e, mesmo, uma certa sensibilidade, um certo “tino psicológico”. Se levarmos em conta apenas o período que vem do século XIX até os nossos dias, destacaram-se nos tabuleiros indivíduos com as mais diferentes formações profissionais, pendores e aptidões: o campeão mundial Wilhelm Steinitz (1836-1900, campeão entre 1886 e 1894) estudou Engenharia; tanto seu sucessor, Emanuel Lasker (1868-1941, que deteve a coroa durante 27 anos, entre 1894 e 1921), quanto Max Euwe (1901-1980, campeão entre 1935 e 1937), outro campeão mundial, eram ambos matemáticos. Alexander Alekhine (1892-1946), um dos maiores enxadristas de todos os tempos e que foi por duas vezes campeão do mundo (entre 1927 e 1935, e depois novamente entre 1937 e 1946), possuía formação jurídica, tendo se graduado e doutorado em Direito. De sua parte, Reuben Fine, um grande enxadrista estadunidense, estudou e doutorou-se em Psicologia. E o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, era um amante da “Arte de Caissa” − como poeticamente é costume os cultores do xadrez se referirem ao seu jogo [3] −, tendo chegado a ser secretário do primeiro clube de xadrez do Rio de Janeiro, além de ter publicado problemas de xadrez em jornais e revistas. [4] Aliás, durante muito tempo se discutiu se o xadrez teria basicamente afinidade com a ciência ou a arte – quando, na verdade, deveria ser óbvio que ele possui algum grau de parentesco com ambos os domínios… Ou, como disse o genial Capablanca (campeão mundial entre 1921 e 1927), o xadrez é “uma diversão intelectual que tem algo de arte e muito de ciência.” [5]

Outro aspecto, curiosamente tão evidente e, no entanto, pouco comentado, é o fato de que o xadrez é um jogo essencialmente espacial, e que, por conseguinte, demanda uma grande dose de raciocínio espacial. Principalmente para a finalidade deste texto, esse é um aspecto que merece ser valorizado. No xadrez, como na guerra – e o que é o jogo de xadrez senão a simulação de dois exércitos em confronto? –, a estratégia e a tática remetem a movimentos e posições; às vezes exigem sacrifícios temporários (um gambito, [6] ou mesmo a entrega de uma dama) com a finalidade de, posteriormente, obter vantagem (de uma simples margem de manobra maior na abertura até o mate uns tantos lances depois); obrigam a fazer balanços sucessivos das perdas e dos ganhos relativos (materiais e posicionais). E tudo isso é espaço, é espacialidade. Mais rigorosamente, entretanto, estamos falando de espaço-tempo: saber criar cenários (pensar alguns ou muitos lances à frente, antecipar as jogadas do adversário, imaginar tantas variantes quanto possível) significa, efetivamente, saber manejar o espaço-tempo da partida.

Jogo marcial, que sempre fascinou estadistas e generais (se bem que Napoleão, gênio militar, tenha sido um enxadrista um tanto medíocre… [7]), é claro que o xadrez é, no que se refere às suas peças, uma metáfora heterônoma, pois nele se inscreve a hierarquia militar e, mais amplamente, a estratificação social de uma sociedade aristocrática tradicional, com rei, rainha (dama), bispos… É bem verdade que há detalhes muito interessantes, como o da possibilidade da promoção do peão (a peça de menor valor) a cavalo, bispo, torre ou mesmo dama (a peça de maior valor), desde que consiga atingir alguma casa situada na primeira fileira do adversário. Uma metáfora da mobilidade vertical – e com uma audácia praticamente impensável para a situação concreta de uma sociedade tradicional do passado (imaginem: um camponês pobre tornando-se bispo ou membro da realeza…). Outra coisa muito curiosa é o fato de que justamente uma peça que representa uma personagem feminina, a dama, é aquela que, depois do rei, possui o maior valor, por possuir máxima mobilidade. Não o campeão do rei ou um general é a peça mais agressiva e perigosa, mas sim uma “mulher”… (De certo modo, um aspecto que deveria, pelo menos, abalar um pouco o orgulho machista. [8]) Seja lá como for, não resta dúvida de que esses pormenores apenas “suavizam” a natureza hierárquica das peças e das regras de mobilidade das mesmas.

Por outro lado, entre os jogadores nada existe, em princípio, que impeça a igualdade de condições – a não ser a pequena vantagem que as brancas possuem por terem o lance inicial (vantagem espaço-temporal!), mas que pode ser compensada quando, na partida seguinte, os mesmos jogadores trocarem de cor. (E o próprio fato de quem inicia com as brancas é aleatório, uma vez que depende de um sorteio.) É lógico que os dois jogadores podem ter habilidades e talentos completamente díspares. Aqui falo, entretanto, da igualdade efetiva de oportunidades, que pode ser sempre construída. Se não há “estrada real para a Geometria”, como disse o matemático Ptolomeu ao jovem e um tanto preguiçoso faraó do qual era preceptor, diante do tabuleiro tampouco há privilégios de classe, étnicos, de gênero ou etários: um adolescente ou mesmo uma criança pode ganhar de um adulto, uma mulher de um homem, uma pessoa de origem humilde de um indivíduo abastado, o escravo de seu senhor…

Se o xadrez exercita, para além da concentração, da memória, do raciocínio lógico e da imaginação, também a combatividade e o raciocínio espacial, constituindo um excelente treinamento do pensar estratégico e tático, claro deveria estar que ele interessa a todos que desejam desenvolver as suas habilidades na “Arte de Caissa”, para muito além de sua função mais comum – a saber, a de passatempo de classe média. Se a “Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra”, como provocou Yves Lacoste, insistindo sobre a necessidade de “saber pensar o espaço para saber nele se organizar, para saber aí combater” – e endereçando essa mensagem não aos opressores, mas sim aos oprimidos –, [9] o xadrez, por analogia, merece ser visto como algo a ser apresentado e ensinado às crianças e aos jovens pobres, e também aos seus pais (pois nunca é tarde demais para aprender). Em outras palavras, àqueles que são, tantas vezes, os ativistas dos movimentos sociais emancipatórios de hoje − e, mais ainda, aos ativistas de amanhã. Eles são, para usar uma bela expressão alemã, os verdadeiros Hoffnungsträger (= portadores da esperança) quando se trata de desejar e lutar por um mundo substancialmente melhor. O xadrez, portanto, não possui virtudes somente cognitivo-pedagógicas; potencialmente, há uma função político-pedagógica muito relevante que, de um ponto de vista libertário, ele deveria ser chamado a desempenhar.

O ethos enxadrístico em três versões

Nós nos movemos, com o nosso quinhão de livre-arbítrio, em meio a um quadro estrutural que nos condiciona – e no qual somos socializados. Um forte reconhecimento disso é aquele que veio com o pensamento de Marx, sintetizado nas célebres frases que abrem o segundo parágrafo de O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “[o]s homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” [10]

Mas ninguém mostrou a natureza da “fabricação” social dos indivíduos de modo tão profundo e original, sem precisar para isso recorrer a um economicismo “materialista”, quanto o pensador greco-francês Cornelius Castoriadis, que em importantes obras analisou a questão dessa “fabricação” no contexto de imaginários específicos. Um imaginário é, para Castoriadis, a matriz que institui, para os membros de uma sociedade, o sentido de seu existir, de seu fazer, de seu pensar. Um imaginário compõe-se de “significações imaginárias sociais”, sendo que estas não têm necessariamente (sobretudo aquelas significações mais importantes, centrais) e muito menos se esgotam em referentes “reais” e “racionais”; elas compreendem os valores, as “visões de mundo”, as “ideologias”, as crenças, os mitos e os tabus que “organizam a realidade” − e aos quais o aspecto funcional se acha subordinado, uma vez que nada, nem mesmo as atividades econômicas mais essenciais, existe fora do plano simbólico ou descolado dele. Decerto que Castoriadis não regrediu a uma posição “idealista”, subestimando ou desqualificando as restrições e os condicionamentos econômico-materiais. Todavia, para além da obviedade que é, no plano da sobrevivência individual e da espécie, o fato de que não se pode subsistir sem comer, sem se proteger das intempéries etc., uma sociedade só existe (não no sentido da existência “física”, “animal”, mas enquanto existência humano-social, o que implica a construção de sentido para as coisas e o mundo) ao gerar novos sentidos e ao criar o seu próprio “universo de significações”. [11]

No vocabulário das ciências da sociedade, o ethos (do grego êthos = “caráter”, “modo de ser”) consiste em um traço distintivo da identidade de um determinado grupo social, referente a seus hábitos e costumes. Cada ethos específico é gerado nas condições particulares de uma sociedade e de um imaginário concretos. É lícito considerar, contudo, que o ethos de um dado grupo social, definido este com base no exercício de uma determinada atividade (por exemplo, os aficionados e praticantes regulares de xadrez), pode variar de acordo com as circunstâncias. Pode-se dizer, com efeito, que, muito embora o ethos enxadrístico hegemônico seja (pequeno-)burguês, ele não possuiu o monopólio absoluto ao longo da história do jogo, e tampouco precisa ser visto como algo incontornável.

Nos marcos do ethos enxadrístico dominante, o individualismo e a competitividade tendem a ser, como no próprio capitalismo em geral, colocados em primeiro plano e mesmo exacerbados. Em geral eles são, no máximo, apenas suavizados por um certo cavalheirismo formal (nem sempre muito respeitado, em decorrência de “excentricidades”, de disputas políticas ou pessoais fora dos tabuleiros ou da pura e simples arrogância narcísica). Um dos principais símbolos desse caráter competitivo é o “rating”, que é a pontuação que representa o grau de excelência de um enxadrista, em função de seu sucesso em torneios e da qualidade destes. Para um jogador forte típico (não necessariamente um mestre), melhorar o seu rating costuma ser quase uma compulsão. O rating indica o seu “lugar” na hierarquia enxadrística, e subir na hierarquia é uma meta a ser perseguida com afinco e, mesmo, obsessivamente. Em conformidade com esse ethos burguês, que por sua vez leva a metáfora da guerra/batalha para o plano psicológico e ético de um modo às vezes incrivelmente intenso, o oponente não é, em primeiro lugar, um parceiro (ainda que esta palavra seja usada), mas sim um adversário, ou mesmo um inimigo – e que deve, como tal, ser “abatido”, “esmagado”, “massacrado”. Fruto de uma sociedade heterônoma e embebido em um imaginário heterônomo, o ethos enxadrístico dominante contribui para incutir e reforçar nos indivíduos uma mentalidade de “darwinismo social”: survival of the fittest [sobrevivência dos mais aptos]… E que os fracos sejam implacavelmente subjugados e eliminados. O enxadrista (hiper)competitivo é, não raro, um arremedo de candidato a Übermensch [super-homem] nietzscheano.

Um outro ethos, que no fundo foi uma espécie de variação do primeiro, e que hoje em dia praticamente desapareceu na esteira da implosão do modelo social que o sustentava (com exceção, muitíssimo relativa, de situações como China e Cuba), é aquele que se poderia chamar de burocrático-“socialista”. A geração desse ethos, que teve lugar em um ambiente social específico – essencialmente a extinta União Soviética e os países do igualmente desaparecido bloco de satélites da Europa Oriental –, coincidiu fundamentalmente com o período em que a União Soviética reinou quase inconteste no cenário do xadrez mundial, produzindo um campeão mundial após o outro. [12] Nesse país (e, em menor escala, em seus satélites), tratou-se de “aparelhar” o xadrez, transformando-o em arma e fator de prestígio na disputa com o Ocidente. Nas palavras de Kotov e Yudovich, o xadrez “forneceria a prova irrefutável da superioridade da cultura socialista sobre a decadente cultura das sociedades capitalistas.” [13] A dimensão genuinamente lúdica do jogo empalideceu diante da construção de uma “máquina” – a “Soviet chess machine” [“máquina de xadrez soviética”], como disse, acompanhando outros antes dele, o ex-campeão mundial Kasparov. [14] O xadrez, ensinado nas escolas, não era encarado (pelo menos não pelos burocratas do Partido) como fator de estímulo da autonomia e da emancipação individual e coletiva, dentro de uma concepção humanística, mas sim como um meio de afirmação da superioridade do “homem soviético”. [15] O imaginário totalitário permeava o mundo do xadrez no assim chamado “socialismo real”.

Um terceiro tipo de ethos enxadrístico pode, todavia, ser vislumbrado e incentivado. Ele poderia ser chamado de ethos libertário. Sem negar a importância do indivíduo, valores coletivos seriam, sob os seus auspícios, porém, também enfatizados, de modo a compensar a parcela de “egocentrismo” com uma parcela não menor de “alocentrismo” ou, mais precisamente, de solidariedade, e de maneira a evitar a competitividade exagerada sem deixar de saudar uma combatividade salutar. Aqui, o parceiro, tanto ou mais que um “oponente”, é alguém que, efetivamente, ajuda a aprender e a se exercitar – e a quem, por extensão, devemos respeito e gratidão. Aliás, perder a partida deixa de ser algo para ser demasiadamente lamentado: se, como dizia Capablanca, se aprende mais com as partidas que perdemos que com aquelas que ganhamos, [16] “ganha-se”, por conseguinte, tanto ganhando quanto perdendo…

No âmbito de um ethos enxadrístico libertário, busca-se, conscientemente, crescer com o outro, e não, acima de tudo, contra o outro ou às custas do outro. O xadrez é valorizado, entre outras coisas, como um veículo de aproximação com o outro, em vez de ser cultivado de uma maneira tal que pode engendrar ou agravar tendências de isolamento e misantropia. E, last but not least [em último lugar, mas nem por isso menos importante], o jogo de xadrez pode ser encarado, mais que como uma diversão, igualmente como uma simulação e um treino para aqueles conflitos e confrontos realmente importantes, de cunho político-social: em vez de atribuir real importância a vitórias ou derrotas no tabuleiro, com as partidas sendo levadas a sério como uma espécie de Ersatz [substituto] da própria vida em seu sentido mais pleno e político, reservam-se as energias “agonísticas” (gr. agonistikós: relativo a luta, combate) para os confrontos por causas verdadeiramente relevantes, em vez de consumir-se, alienadamente, em um simulacro ou um escapismo.

Leia aqui a 2ª parte deste artigo.

Notas

[1] Cf. Orfeu Gilberto D’Agostini, Xadrez básico (Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d), pág. 1.

[2] Ibid., pág. 1.

[3] A designação “Arte de Caissa” remete a uma das lendas que cercam a origem do jogo. Deixo falar, a esse respeito, Paulo Giusti (História ilustrada do xadrez; Rio de Janeiro, Ciência Moderna, 2006, pág. 4), que informa que, segundo essa lenda, “o xadrez foi criado por Marte, deus romano da guerra, e relaciona sua criação com Caissa, a quem hoje os enxadristas consideram a deusa do xadrez. Mas o que poucos sabem é que Caissa não é da mitologia grega nem romana, mas sim nasceu da poesia. Um jovem inglês de 17 anos, William Jones, escreveu em 1763 o poema ‘Caissa ou o jogo de xadrez’, onde ganhou vida esta ninfa encantadora que promete a Marte corresponder-lhe, caso este invente um jogo sugestivo. Por aquela ninfa do bosque, segundo o poema, Marte concebe o xadrez e o apresenta com o nome de Caissa.” Deixando agora o terreno do mito e adentrando o da história, é atualmente consensual que as origens do xadrez remetem a um jogo indiano chamado chaturanga (ver, sobre detalhes do chaturanga, ibid. págs. 4-5).

[4] Cf. Idel Becker, Manual de xadrez (São Paulo, Nobel, 2004 [reimpressão a partir da 8.ª ed., de 1972; 1.ª ed.: 1948]), págs. 273-5.

[5] Cf. José Raúl Capablanca, Lições elementares de xadrez (São Paulo, Hemus, s/d [1942]), pág. 11.

[6] Para quem não está ainda familiarizado com o jogo de xadrez, esclarece-se que um gambito é a situação em que um jogador oferece, na abertura, uma peça em sacrifício, seja para obter jogo mais livre, seja para ganhar tempo, seja, ainda, para viabilizar uma posição de força alguns lances depois, como um ataque direto ao rei do oponente (o gambito pode ser, entretanto, recusado). A peça em questão é, quase sempre, um peão.

[7] Cf. Paulo Giusti, op. cit., pág. 323.

[8] Orgulho esse que, infelizmente, se acha profundamente arraigado no ambiente enxadrístico, fortemente patriarcal. Um exemplo, entre muitos, foi a tirada do ex-campeão mundial Garry Kasparov, que havia dito que, mesmo dando uma vantagem material de um cavalo, poderia ganhar de qualquer mulher que fosse (palavras que teve de engolir em 2002, ao ser derrotado pela brilhante Judit Polgár, a qual, em 1999, já derrotara Viswanathan Anand, futuro campeão mundial, e alguns anos antes havia ganho de dois ex-campeões mundiais, Boris Spassky e Anatoly Karpov). Note-se, aliás, que, inexplicavelmente, existem torneios e títulos especificamente femininos, ao lado daqueles “gerais” (mas vistos, no fundo, como essencialmente masculinos) − o que significa, implicitamente, assumir que as mulheres não poderiam concorrer em pé de igualdade com os homens.

[9] Consulte-se, de Yves Lacoste, La geografia: Un arma para la guerra (Barcelona, Anagrama, 1977; tradução espanhola de La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre, originalmente publicado em 1976).

[10] Cf. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, de Karl Marx (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978 [1852]), pág. 17.

[11] Ver, sobre tudo isso, principalmente A instituição imaginária da sociedade (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983 [1.ª ed. francesa: 1975]), o mais importante livro de Castoriadis.

[12] Deixando de lado Alekhine, de origem nobre e politicamente de direita, que emigrou após a Revolução Russa e terminou por adquirir a cidadania francesa, o início desse reinado começou com Mikhail Botvinnik, patrono da “Escola Soviética” de xadrez e que foi campeão mundial três vezes (entre 1948 e 1957, de novo entre 1958 e 1960 e uma última vez entre 1961 e 1963). A Botvinnik seguiram-se Vassily Smyslov (campeão mundial entre 1957 e 1958), Mikhail Tal (entre 1960 e 1961), Tigran Petrosian (entre 1963 e 1969) e Boris Spassky (entre 1969 e 1972). Após o breve interregno representado pelo estadunidense Bobby Fischer (campeão mundial entre 1972 e 1975), a URSS voltou a ver um de seus cidadãos, Anatoly Karpov, sentar-se no trono deixado vago por Fischer (que, por discordar das condições estabelecidas pela FIDE [Federação Internacional de Xadrez], recusou-se a pôr o título em jogo contra Karpov, perdendo, com isso, a coroa). Karpov foi campeão de 1975 até 1985, quando perdeu o título para Garry Kasparov. Este dominaria o primeiro plano do xadrez internacional até 2000, quando a União Soviética já tinha deixado de existir.

[13] Apud David Edmonds e John Eidinow, Bobby Fischer goes to War (Nova Iorque, Ecco, 2005), pág. 33.

[14] Cf. Garry Kasparov, On my Great Predecessors [= Part IV: Fischer] (Londres, Everyman Chess, 2003), pág. 5.

[15] Ao que os estadunidenses responderam com a mitificação de Bobby Fischer, estilizado como uma espécie de “heroi solitário” que desafiou e venceu aquilo que o ex-presidente Ronald Reagan alcunhou de o “Império do Mal”. Note-se, a propósito, que, como é relatado por David Edmonds e John Eidinow (op. cit., pág. 276), ninguém menos que o próprio Henry Kissinger intercedeu quando, por conta de idiossincrasias e excentricidades, Fischer ameaçava abandonar o match válido pelo título mundial, em que enfrentava o então campeão, o soviético Boris Spassky, em 1972, na Islândia. Este foi seguramente o ápice da importância geopolítica do xadrez no cenário internacional.

[16] Cf. José Raúl Capablanca, op. cit., pág. 56. Vale a pena citar a passagem inteira, bom exemplo da sabedoria e do fairplay do generoso Capablanca (filho de um diplomata cubano), não exatamente muito típicos do ethos (pequeno-)burguês: “[e]u considero (…) boa prática para os que desejam progredir, jogar de vez em quando partidas arriscadas, fazer ou tratar de fazer combinações, sacrificar peças por um ou dois peões com o objetivo de obter o ataque. Tudo isto, deliberadamente, mesmo que se perca a partida. A idéia é combinar. Dessa forma o jogador adquire experiência de certa classe de posições de ataque e defesa, o que pode ser mais tarde muito útil para ele. O amador deve habituar-se a perder com equanimidade; assim gozará mais do jogo. Ademais, como já disse em outras ocasiões, se aprende muito mais nas partidas perdidas que nas partidas ganhas.”

4 COMENTÁRIOS

  1. Tenho certeza que não é mera coincidência, mas conheci alguns ativistas com um grande trabalho de base, no Brasil e fora dele, que eram, além de outras coisas, professores de xadrez junto às crianças e aos jovens dos espaços onde militavam. Acho isso muito pertinente. Tem um camarada do Paraná, que atualmente estuda e milita no Rio, que pensa (e faz) muito sobre o recurso dos jogos como ferramenta de formação política e formação tout court. Bem, Guy Debord estava tão convencido de tal pertinência que chegou mesmo a criar um jogo, o Kriegspiel, que visava apurar a sensibilidade tática e estratégica dos jovens mediante a assimilação das premissas da guerra klausewitziana (a propósito, foi desenvolvida recentemente uma versão online do Kriegspiel). Acho que a esquerda que ainda considera o trabalho de base e a ação direta como centrais à prática política precisa levar a sério tudo o que diga respeito à formação de sujeitos políticos e que consiga desenvolver uma socialização diferente daquela que é hegemônica. Parabéns pelo texto!

  2. o Kriegspiel é uma transposição lúdica da dialética da guerra, tal como Klausewitz a concebia. Eu e um amigo construímos esse jogo com materiais recicláveis, o que pode ser feito junto a adolescentes dentro e, sobretudo, fora da escola. Porque o Kriegspiel demanda um tempo maior de combate do que o Xadrez (o que se deve a uma maior extensão do tabuleiro, de um maior número de peças e de movimentos do jogo criado por Guy Debord), o que dificulta o seu desenvolvimento nas tecnocráticas escolas públicas republicanas, por exemplo. Outro impedimento relevante para esse projeto, é o incessante desenvolvimento da Indústria dos jogos eletrônicos (seria agora uma Indústrial da Simulação a tomar o lugar da já ultrapassada indústria cultural?), que tornam os clássicos jogos de tabuleiro em artigos de museu. Mesmo o Kriegspiel de Debord, uma tentativa de ATUALIZAR o xadrez, no sentido em que este é uma transposição lúdica, no jogo de tabuleiro, de uma forma específica de guerra, aquela que se praticava nas sociedades aristocráticas tradicionais, mesmo o Kriegspiel parece aos jovens algo obsoleto, frente aos jogos de guerra em 3D. Talvez as versões digitais do xadrez e do jogo da guerra de Debord contribuam com a sua preservação, e que a internet os coloquem em movimento, propagando-os entre as novas gerações! Concordo com o autor do texto quando diz que o xadrez pode atuar como uma ferramenta pedagógica contra-hegemônica, na medida em que o adversário no xadrez deve vir a ser um partner, alguém com quem se aprende, mais do que alguém com quem se compete. Ótimo texto, parabéns!

  3. A quem interessar possa: a última versão do Kriegspiel online pode ser encontrada no seguinte link: http://r-s-g.org/kriegspiel/

    Agora, mais importante do que se ater à eficácia de um jogo ou outro para o trabalho de formação política é pensar no papel da dinâmica dos jogos para tal formação, assimilando e transformando ferramentas novas e antigas, criando programadores, webdesigners, escritores, radialistas etc. orgânicos da classe trabalhadora.

  4. Bom dia,

    Poucas pessoas pensam o esporte dessa maneira, a competitividade sem limites está sempre presente, e o adversário é o inimigo a ser abatido. Olhar o Xadrez como um esporte no qual seu adversário torna-se seu companheiro de aprendizado pode estimular sentimentos que não são tão valorizados. É muito comum ver nas pessoas a necessidade de ser melhor que os outros, de vencer os outros (e isso vai além do esporte, faz parte do cotidiano), o que é mais raro é a tentativa de melhorar junto com o outro.

    O texto é ótimo.

    Abraços.

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