Por Arthur Moura
O trabalho que o leitor tem em mãos tem como objeto o cinema político independente do Estado do Rio de Janeiro (2000-2020), compreendendo a Zona Sul, Zona Oeste, Zona Central, Baixada, Zona Norte, Niterói e São Gonçalo. Foram realizadas até o presente momento 44 entrevistas num total de 50. Os entrevistados e as regiões são os seguintes:
NITERÓI | SÃO GONÇALO | ZONA SUL |
João Arthur | Alberto Sena | Ana Maria Magalhães |
Miguel Vasconcellos | Ana Angel | Ana Rieper |
Rafael de Luna Freire | Flavia Vieira | Cacá Diegues |
Rafael Porto | Luana Arah | Clementino Jr. |
Reinaldo Cardenuto | Marcos Moura | Cavi Borges |
Rosa Miranda | Eunice Gutman | |
Vito Bombozila | Julia Couto | |
Luís Alberto Rocha Melo | Luciana Bezerra | |
Luciano Vidigal | ||
Malu de Martino | ||
Patrick Granja | ||
Rodrigo Mac Niven | ||
Sergio Santeiro | ||
Silvio Tendler | ||
Theresa Jessouron | ||
Vladimir Seixas |
ZONA NORTE | ZONA OESTE | BAIXADA |
Emílio Domingos | André Sandino | Ane Santos |
Godot Quincas | Cesar de La Plata | Higor Cabral |
Gustavo Melo | Gisele Motta | Igor Barradas |
Léo Barros | Rafael Silva | |
Márcio Coutinho | Vitã | |
Luis Carlos de Alencar |
ZONA CENTRAL | SEM TETO/INDEFINIDO |
Julia Couto | Breno Moroni |
Carlos Pronzato |
O presente texto, publicado em primeira mão aqui no Passa Palavra, é um apanhado geral do que venho pesquisando sobre o cinema independente do Rio de Janeiro. O texto trata das questões apenas en passant, pois é um um texto ainda em construção, já que a tese final só estará finalizada em dezembro do ano que vem.
O recorte temporal são as duas primeiras décadas do século XXI. Foi realizado amplo mapeamento de trabalhadores envolvidos na produção cinematográfica, assim como farto levantamento filmográfico produzidos por cineastas independentes do Rio de Janeiro. A filmografia dos entrevistados é extensa. Todas as entrevistas filmadas estão disponíveis na íntegra no meu canal do youtube (202 filmes).
Boa parte dos entrevistados acima mencionados produzem seus próprios filmes, o que resulta em ampla filmografia produzida por esse setor. A pesquisa busca compreender as vicissitudes do cinema independente e o seu caráter hoje, assim como a contraditória relação de produção que se insere no campo do trabalho, notadamente explorado pela força do capital. A teoria que se baseia essa pesquisa é o materialismo histórico dialético. Sobre o método de pesquisa, buscarei elucidar ao longo do trabalho. A pesquisa foi dividida por etapas: filmagem, leitura e escrita.
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Dado o desenvolvimento do cinema ao longo da história, suas escolas e tendências, diferentes contextos e processos, o cinema aqui qualificado como independente e político guarda suas próprias características ao passo que dialoga com questões históricas fundamentais. O cinema independente do Rio de Janeiro aqui analisado, podemos dizer em certa medida, é um cinema contra-hegemônico, que não só subverte a lógica de produção (muito por conta da sua condição de classe), financiamento e distribuição, mas também forja uma estética (ou podemos dizer estéticas) própria, formas de organização e distribuição, produzindo geralmente documentários ou curtas-metragens devido ao alto custo de obras ficcionais em formato de longa.
Essas produções, apesar da precariedade (da maioria), têm um peso social. Esse cinema em certa medida também reproduz contradições importantes de ser pensadas devido ao grau de influência que exerce sobre os produtores e os filmes produzidos. O cinema independente é multifacetado, o que resulta em enorme gama de propostas estéticas e políticas, que por sua vez aponta para demandas de cunho social. Essa multiplicidade é resultado também de disparidades entre os produtores considerados independentes, sendo muitas vezes uma categoria abrangente e genérica. A análise pode nos ajudar a pensar parâmetros mais objetivos para melhor compreender esse amplo setor. Por isso, a minha preocupação em entrevistar cineastas de diferentes territórios do Rio de Janeiro.
Em conversa com Solanges Pimentel, importante produtora cultural de Niterói à frente do São DomDom há anos, ela assim definiu a produção:
Produção é o nome que se dá a utilização de métodos para realização de uma atividade. O produtor é co-criador do objeto a ser colocado em evidência, podendo esse objeto ser artístico ou não. A produção é a arte da realização. É a constante busca de procurar o melhor caminho sem perder o processo orgânico na qual a arte está inserida. O produtor sim é um usuário de metodologias próprias; não exatamente repete o mesmo método. Por quê? Porque cada proposta tem uma força vetora. Cabe ao realizador analisar o curso do vento, a gente envolvida, consultar a bússola, se instrumentalizar para negociar conflitos, e acima de tudo estar bem ciente da motivação para produzir o “objeto” artístico. Agora sim, o produtor pode se fazer um serviçal do sistema e ser um realizador através dos métodos de sequências. Primeira etapa, segunda etapa, terceira, independente da motivação do objeto a ser produzido e por aí vai. Eficiente? Sim. Mas, quando o objeto a ser produzido é arte, a metodologia está totalmente refém do devir artístico e sua impermanência. São por assim, produtor e artista co-criadores. Para finalizar, acredito que o produtor cumpre uma função social, podendo ou não se profissionalizar. Essa para mim é a grande diferença de profissão na qual o sistema institucionaliza como profissionalizantes e outras atividades cotidianas que existem por vital necessidade existencial. O produtor tem função social por ser uma pessoa que serve para muitas coisas e diante disso cumpre o seu papel de realizador no caso da arte, a subjetividade artística, servindo como elo ou ponte entre o artista e o mundo das coisas.
Por mais que essa definição esteja mais ligada a produção de eventos como shows, exposições, cine debates, entre outros, há uma relação com a produção de obras de arte e criações artísticas em geral, entre eles a produção cinematográfica. A questão do método, no entanto, pode ser pensado a partir de uma prática e uma teoria, não estando tão à mercê “do devir”, que pode ser um mero escapismo para maior desenvolvimento de tais produções frente ao contexto de intensos problemas sociais; o que não quer dizer que não haverá um devir, mas que esse devir não submeta a produção ao acaso, mas a um entendimento racional, possibilitando a real concreticidade dos projetos principalmente os independentes.
O cinema independente do Rio de Janeiro já não bebe do nacionalismo defendido por tendências como o Cinema Novo. Não só o Cinema Novo (Glauber Rocha, Cacá Diegues, Leon Hirzman, entre muitos outros) defendiam o nacionalismo, mas cineastas estrangeiros como Fernando Solanas, que também teorizava sobre isso justificando uma tomada de posição com relação aos interesses nacionais, o que também tinha forte relação com a indústria cultural e o Estado burguês. As questões políticas em torno do cinema independente atual existem dentro de outro arranjo que buscaremos compreender ao longo deste trabalho. Ainda assim, ele está notadamente ligado a tendências de esquerda, progressista ou libertário, ou muitas vezes pautado em questões de cunho local ou identitário de caráter liberal-democrático.
Não é o foco dessa pesquisa o cinema produzido por tendências da direita e extrema-direita. Ainda que tenhamos que tratar do assunto, passaremos pelo tema en passant. Nesse sentido, seria impossível analisar a produção cinematográfica e seus trabalhadores apartados do contexto sócio-histórico e político do Brasil, estando, portanto, mergulhado no contexto geral das lutas de classes a nível mundial, o que certamente complexificará e alongará a análise.
A categoria independente se relaciona diretamente com as condições históricas, econômica, cultural e política de uma determinada sociedade. No Rio de Janeiro, o termo surge na década de 1940, sendo Moacyr Fenelon importante marco nesse processo. Todo o contexto amalgamado em torno do capital e seu modo de produção age diretamente sobre as produções culturais. Dessa forma, o que não tem lugar nesse sistema ocupa outras estratificações das relações sociais de produção configurando resistências ou muitas vezes reproduções do modo de produção burguês.
Nesse contexto, muita coisa é considerada independente; uns por não estar integrados às relações de mercado, outros por forjar alternativas de atuação profissional e produção antagônicos ao modo de produção burguês e seus valores hegemônicos buscando saídas radicais, outros por carecer de uma definição. Ainda que não sejam a maioria, há um pequeno setor dentro do cinema independente preocupados em associar teoria revolucionária e produção cinematográfica, como é o caso de Godot Quincas, Patrick Granja, Cesar de La Plata, Carlos Pronzato e a produtora Couro de Rato. Uma parte expressiva, no entanto, tem a prática voltada para carreiras em organizações corporativistas que ensejam empreendimentos de caráter empresarial, ou seja, fechados em pequenos grupos formando núcleos referenciais. Esses núcleos geralmente direcionam suas carreiras a festivais nacionais e internacionais, profissionalizando a produção com essa finalidade prioritariamente.
O caráter político do cinema independente é, portanto, evidente. Os cineastas geralmente encampam pautas e reivindicações a uma crítica social. Se se está integrado firmemente às redes de mercado, financiamento e distribuição, alguma major ou indústria cultural, ou até mesmo cargos em instituições do Estado, tem-se uma arte produzida a partir de um determinado amparo que sustenta a cadeia produtiva, garantindo o ciclo da produção. Ao não se ter a cadeia produtiva do cinema assegurada, o problema colocado aos independentes ganha outro caráter, já que a escassez se torna a regra. Nesse ponto exige-se algum nível de organização entre os produtores, o que também será analisado ao longo deste trabalho.
Fernando Solanas afirma que existem dois tipos de cinema: um que bebe da concepção burguesa-imperialista e outra anti-imperialista; e que mesmo aqueles que se pretendem fora dessas duas está imerso em alguma posição. Para Solanas todo cinema é político. Por isso, afirma que “cinema político é o de Lumiére e o de Griffith, o de Chaplin e o de Grierson, o de Eisentein e o de Jerry Lewis, o de Glauber Rocha e o de Jacopetti.” O cinema político, portanto, não seria uma categoria específica do cinema.
Se tivermos que fazer uma primeira grande categorização no interior do cinema, esta não seria indubitavelmente ‘cinematografistica, mas que devesse remontar ao aspecto primeiro que define o cinema, e que não é nem a técnica, nem a indústria, nem a ‘arte’, nem o comércio, nem o próprio cinema, mas a ideologia sustentada por cada obra em particular. (SOLANAS, 2022)
É sem dúvida o caráter político ou a visão de mundo e o seu lado na luta de classes que melhor define o cinema. A categoria “independente” é turva e historicamente foi atravessada por diversas questões. Não raro, os cineastas oscilam em movimento pendular no que diz respeito aos seus interesses pessoais, corporativistas ou de classe, contrastando com o que poderíamos denominar um projeto de sociedade revolucionário, que é o que muitas vezes se almeja e se vê representado nos filmes produzidos.
Para Solanas (2022), “cinema militante é o cinema que se assume integralmente como instrumento, complemento ou aporte de uma determinada política ou com relação às organizações que as levem alcançar: contrainformar, desenvolver níveis de consciência, agitar, formar quadros, etc.” Sua leitura, no entanto, é que ideologia é um conjunto de ideias, não sendo esse o conceito no sentido marxiano. Ideologia, para Marx, é um saber ilusório, que mistifica a realidade. Trata-se de um falso saber. O termo ideologia libertadora surge em Solanas relacionado ao nacionalismo revolucionário, ponto máximo de uma prática transformadora, segundo a sua concepção (o que guarda profundas complicações):
E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmara escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. (Marx e Engels, 2002, p.19)
Segundo Viana (2017), “a consciência ilusória é produto das relações sociais limitadas dos indivíduos, ou seja, a unidade entre ser e consciência existe, independente dela ser verdadeira ou falsa.” O nascimento da ideologia, na verdade, “ocorre com o surgimento da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual.” (Viana, 2017)
Os ideólogos são aqueles que produzem as ideologias, são os especialistas no trabalho intelectual, o espaço que é reservado para eles na divisão social do trabalho. Por isso, podem se dedicar a construir sistemas filosóficos, amplas doutrinas políticas, concepções científicas e teológicas em alto grau de complexidade. A ideologia, portanto, não é qualquer “falsa consciência”, é uma falsa consciência sistemática, um sistema de pensamento ilusório. A inversão da realidade demonstra seu caráter ilusório e o sistema de pensamento (ou sua sistematicidade) mostra sua especificidade diante das demais representações ilusórias. (VIANA, 2017, p. 147)
Solanas (2022) também fala em terceiro cinema – “Um cinema de destruição e de construção. Destruição da imagem que o neocolonialismo tem produzido sobre si mesmo e sobre nós. Construção de uma realidade palpitante e viva, resgate da verdade nacional em qualquer de suas expressões.” Segundo Andrade (2019),
Em suma, podemos dizer que o cinema é uma produção coletiva e que repassa uma mensagem através de meios tecnológicos de produção, produzindo imagens, diálogos que possibilitam a montagem (Viana, 2012). O que devemos nos atentar na representação de um filme é o que lhe é fundamental, a sua mensagem, que perpassa valores, sentimentos, concepções e interesses de classes. (…) Portanto, os filmes possuem uma mensagem e através desta expressam valores diversos que podem estar presentes no universo do filme de maneira que o conjunto do filme (a cena final é um elemento fundamental) deva ser analisado para pensar a intenção através da mensagem que os/as autores/as do filme propõem transmitir. (ANDRADE, 2019)
Se por um lado Solanas aponta corretamente para os interesses de classe do cinema (imperialista e anti-imperialista), sua concepção não extrapola o Estado e a burocracia como elemento central de aporte ao cinema proletário, estando dentro do velho burocratismo partidário (em última instância ligado originalmente ao PCUS). Nesse sentido, torna-se imperativo destrinchar algumas questões centrais em torno desse tema já que estamos falando de uma questão histórica.
As imagens que ilustram este artigo são do cineasta Jorge Bodanzky (1942 —)
A publicação deste artigo foi dividida em 4 partes, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4