Raimundo Braga entrevistado por Tales dos Santos Pinto e estudantes da UFG.

No dia 06 de Julho de 2012 ocorreu na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG) o debate “A repressão aos trabalhadores das Usinas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia”, organizado pela Associação Brasileira de Advogados do Povo (ABRAPO) e pela Liga Operária. O depoimento de Raimundo Braga da Cruz Souza, ex-operário da Camargo Corrêa que trabalhou durante oito meses no canteiro de obras da Usina de Jirau, serviu para que professores, estudantes e militantes de grupos políticos tomassem conhecimento das condições de trabalho e da repressão aos trabalhadores nas grandes obras em andamento no Brasil – as hidrelétricas no norte do país e os estádios para a Copa do Mundo – e, assim, tentassem iniciar uma discussão sobre o assunto.

Em sua fala, Raimundo relatou como chegou a Jirau, sua rotina de trabalho, a vida longe da terra natal, a doença laboral adquirida e a experiência singular vivenciada após a greve deflagrada pelos trabalhadores da obra, em Março de 2012. Apesar de não ter participado ativamente da paralisação, Raimundo sofreu as consequências das perseguições aos trabalhadores efetuadas pela Força Nacional de Segurança, Policia Federal e a Guarda Patrimonial da obra: foi torturado e durante 54 dias ficou preso no anexo Pandinha, do presídio Urso Branco [1] em Porto Velho, capital de Rondônia.

Ele foi absolvido, por falta de provas, da acusação de ter iniciado o incêndio nos alojamentos dos operários. Mas outros trabalhadores não tiveram o mesmo destino. Após a greve foram expedidos vinte e cinco mandatos de prisão contra operários que participaram ativamente da luta. Destes, apenas treze operários foram devidamente localizados, sendo que onze foram libertados e dois ainda continuam presos em Porto Velho. Há doze operários que não foram localizados. Uma campanha de solidariedade contra esta situação foi lançada e informações podem ser obtidas aqui.

O evento em Goiânia fez parte do périplo que Raimundo, 22 anos e natural de Luzilândia, interior do Piauí, fez pelo Brasil com o objetivo de denunciar as péssimas condições de trabalho e a repressão a que estão submetidos os trabalhadores nas obras das grandes hidrelétricas. Após o debate, entre um cigarro e outro, ele contou mais uma vez sua peculiar história em Jirau numa conversa com um grupo de estudantes que o rodeava na porta do prédio da faculdade. A conversa, que se iniciou com questionamentos sobre a mudança de percepção do operário sobre o papel da greve, segue transcrita abaixo.

O áudio com a integra da entrevista pode ser ouvido aqui.

Pergunta [P]: Eu queria te perguntar, porque deu para ver que você não estava tão engajado com o movimento da greve. Depois de tudo isso que rolou, de tudo isso que aconteceu, como é que tu vê aqueles, os operários, aquele pessoal que estava se organizando pela greve?

Raimundo Braga [RB]: Como estavam se organizando?

P: Você não falou antes: “Ah, tudo entrava por um ouvido e saía por outro.” A minha pergunta é: e agora, depois de tudo que aconteceu, como é que tu tá vendo aquele pessoal, aquele movimento?

RB: Eu acho que…, não sei se mudou alguma coisa lá dentro, não sei se mudou alguma coisa, se pediram, se atenderam o que estavam pedindo, né.

P: Não! Minha pergunta é como você via. Não estou te pedindo para dar relato, não.

RB: Ah! Como vê.

P: Como você vê eles? O que você acha que eles são, assim? Como é que você acha que eles são, se eles são doidos, se são muito corajosos… Como é que você vê eles?

RB: Agora entendi. Eu acho que estão certos, que estão brigando por um direito deles. Porque eu tenho certeza, lá na casa da gente, pode ser ruim o que for, a gente pode ser pobre, mas não passa o que passa lá dentro, você tá entendendo? Porque lá nós trabalha, não é humilhação não, aquela humilhação de gente gritando no seu ouvido: “Embora!”, não sei o quê, entendeu? Não tem isso.

P: Mas antes você achava que eles estavam certos?

RB: Eu acho que sim.

P: Mas por que estava entrando tudo por um ouvido e saindo por outro?

RB: Eu acho que entrava por outro, mais pra mim, pelo jeito deles lá, as conversas deles, eu só… aí eu via muita gente. Então… rapaz, então será… . Depois foi que eu fui relatar, fui observar como era o procedimento de uma greve? Por que que… Eu não entendia ainda. Aí foi que eu fui relatar direitinho como era a greve, porque eles estavam brigando…

P: E hoje em dia se você estivesse lá, você puxava a greve, você participava da greve junto com eles?

RB: Aí nós ia bagunçar mesmo, que aí eu não ia preso, que eu não baguncei e fui… Eu ia bagunçar mesmo.

P: Quando você foi preso, os outros presos sabiam por que vocês estavam lá?

RB: Eles sabiam…

[Interrupção]

P: Mas tem que dar um jeito de entender o quê que aconteceu. O quê que você está contando…

RB: Eu não estava entendendo o quê que ela tava falando. Só que eu não entendi o negócio desse movimento dessa greve, não. Eu, para mim, entrava num ouvido e saia no outro, porque eu num…

P: Mas hoje é diferente?

RB: Agora hoje sim, eu entendo já por que que estavam brigando, a greve, que estavam relatando aquilo. Pelos … Por essas coisas melhores, porque a gente vem de lá que a gente é obrigado a ficar aqui pior que um cachorro, não. Eles tem de tratar a gente muito bem, entendeu, porque a gente tá lá dentro suado, tá gastando o suor da gente para conseguir o pão de cada dia. Pra ajudar o pai da gente e outros… Tem muitos lá que tudo tem família, que tem filho, então… eles têm que mandar. O pai deles está trabalhando aqui para mandar recurso lá, para a família dele, para mãe deles, para tratar dos filhos, o pai não tá lá, então… Ele chega aqui, aí eles querem tratar a gente…, querem dar mixaria [ninharia] para a gente. E a distância que a gente não tá. E diz que o nordestino é um comedor de calango [lagarto], que ele chamou meu parceiro…

P: É, eu sou comedor de calango também, do Ceará.

RB: E eu tenho orgulho de comer calango.

P: E eu também!

RB: Diz que os calango de lá já acabou…

P: A comida lá é tudo boliviana?

RB: As comidas não. As coisas que vendem lá. É tudo pertinho da Bolívia, tudo …

P: E lá eles põem os preços lá em cima [preços muito altos]? Ouvi falar dos estudantes, que armazém lá era caríssimo.

RB: Tudo caro lá, você vai comprar as coisas lá… Tem loja lá dentro. Tem loja de celular [telemóvel], tem tudo. Tem loja lá.

P: Que eles aceitavam o cartão?

RB: Hã?

RB: No comércio da cidade aceitavam o cartão que você..?

RB: Aceitam o cartão, o Bicard, no comércio.

P: Qual que é o nome do cartão mesmo?

RB: Bicard.

P: Bicard?

RB: É. Que é o …Tem um nomezinho lá que eles chama lá, mas que eu chamo mesmo é Bicard. Só tem Bicard no meu. Então…

P: Você ainda não viu sua mãe, não, depois que você saiu?

RB: Depois que eu saí não vi ainda não.

P: Mas você está indo para o Piauí?

RB: Estou indo. Vou segunda-feira ver ela, que ela se operou ontem. E diz que ontem passou mal. Eu vou ver que eu vou lá.

P: E você tem irmão?

RB: Tenho duas irmãs.

P: Vocês conseguiram fazer uma denúncia falando que você foi torturado?

RB: Lá não. No Posto [Porto] Velho não tive chance, que o pessoal estava tudo… [Interrupção.]

P: Como eram as condições lá, para banhar? Condições de trabalho, de alojamento?

RB: A questão de alojamento. É porque lá é um… tudo é no vale. Mas quando um lado esculhamba [quando qualquer coisa se estraga]… Quando um lado esculhamba lá é o maior sacrifício para o povo ajeitar, entendeu? E num [não] liga, parece, para aquilo. Ajeitar… Você bota o nome lá, quarto tal está esculhambado, o ar estragou, não presta. Você bota o nome… com duas ou três semanas que eles vão ajeitar, a gente fica naquele quidurão [dificuldade]. Então os alojamentos estavam tudo péssimo, tudo caindo tudo lá. Tudo podre as tábuas. Agora que tá novo, agora que eles construíram.

P: Depois da greve?

RB: Depois da greve. Que eu entrei lá estava até no … Estava mais ou menos no meio, o alojamento que eles estavam construindo.

P: Não tinha assistência nenhuma lá, praticamente?

RB: Praticamente não estava nem ligando para os trabalhadores. Eles não ligam e o que está lá dentro.

P: Como funciona assim … hospital, se alguém passava mal, tinha remédio, esses trem [essas coisas], ou nada?

R: Não, remédio lá tem. Você vai lá, fala o que tem e aí pronto, dão uma pílula para a gente.

P: Uma pílula qualquer?

RB: Comprimido. Bota lá o que você tem: “Tenho isso.” Ele vai, e tá aqui.

P: Mas conta mais uma vez essa questão dos acidentes de trabalho, como é que é essa relação?

RB: O negócio de acidente de trabalho lá é assim, porque o cabra [sujeito, fulano] cai de uma altura de mais ou menos de cinquenta metros, por que lá é muito alto. A barragem é alta. Você fica trepado muito alto. Todo na madeira, tem ferro também, mas tem aquelas tábuas, que apodrece. Então eles só trocam aquela tábua. Então você vai naquela parte caminhando, você desaba lá de cima, a tábua quebra, você cai. O técnico de segurança o que é que ele faz? Ele isola a área e diz que tá vivo. Retira o corpo de dentro do canteiro de obra. E diz que morre no caminho de Porto Velho. Não morre dentro da obra. Por quê? Você caiu em cima de um monte de ferro, em cima de um monte de concreto daquele. Você tá vivo o quê? Quando você vem no meio do caminho você já vem morto. Quando você cai que voa sangue para todo lado que você tá vivo? Você tá vivo? Acho que não. Só se estiver vivo no outro mundo, porque neste não está mais não.

P: E neste caso o sindicato interfere nestes acidentes de alguma forma, ele se posiciona de alguma forma? Você já viu alguma situação desta?

RB: Não vi ele nunca lá não, quando acontece acidentes destes. Eu só vejo ambulância vem e pega, e tira para fora. IML, né? Leva. Pronto. Passou do portão ninguém sabe mais de nada. Que é justamente lá dentro que poucos funcionários sabem o que aconteceu, que morreu este funcionário lá, e que teve esse acidente. Eles não falam que morreu. Aconteceu um acidente. E morre não fala.

P: Era algum amigo seu, que morreu?

RB: Nunca chegou a morrer nenhum amigo meu, da minha cidade, não.

P: Foram muitos com você?

RB: Foram poucos, não foram muitos não, da minha cidade. Assim foi muitos, mas poucos os que eu conheço, que mora perto lá de casa. Que eu conheço assim, que eu converso com eles.

P: Conta de novo como foi, como é o “gato” [angariador de mão-de-obra]. Como funciona o aliciamento de vocês?

RB: Esse aliciamento, desse tempo, era com um cidadão chamado Antônio Milagre. Que ele ia lá, e botou na rádio que a Camargo Corrêa estava precisando de homens para trabalhar em Porto Velho. Então, quando chegava lá ele pedia seu RG e CPF [bilhete de identidade e número de contribuinte]. Você dava, anotava lá e ele cobrava 500 reais, nesse tempo. Então essa carrada dele veio, e eu botei só o meu nome. Meu nome ficou lá, mas só que no dia eu não tinha dinheiro. Aí eu fui e depois arrumei. Com uns quinze dia depois eu consegui o dinheiro emprestado. Então me localizei e vim. Aí eu já encontro os meus colegas reclamando na rodoviária. Eles tinham ficado rodado. E ele, ninguém conseguia saber. E a Camargo Сorrêa não estava fichando. Então durante mais ou menos um mês que ela começou a pegar gente. Nós fomos lá e botamos a carta pelo SINE [Sistema Nacional de Emprego], entrou a carta do SINE para dentro da obra, e com uns quinze dias chamaram nosso nome. Foi quando conseguimos entrar para dentro do canteiro de obras.

P: Você ficou parado lá um mês?

RB: Ficamos parados lá. Um mês lá.

P: E como você fez para sobreviver lá?

RB: Não, eu ainda tinha um dinheirinho, um trocadinho. Eu fiquei num hotel lá, até quando acabou o dinheiro. Quando eu não almoçava eu jantava. Tinha que poupar o dinheiro, se não você ficava rodado, então você virava tipo um mendigo. Que hoje em dia eu garanto que se não fosse os companheiros da Liga Operária, eu acho que eu, não tivesse cabeça, não tivesse juízo, botava minha cabeça no lugar, eu acho que eu tinha virado um mendigo, do jeito que eles me trataram lá, que eles me jogaram lá para fora, que não me ofereceram nem a passagem. Então garanto que se não tivesse minha cabeça e eles não tivessem me encontrado, fatalmente podia até ter virado um mendigo, que eu não tivesse pedido dinheiro para a família para voltar para a cidade da gente.

P: Você falou que trabalhava de servente lá, na área de limpeza…

RB: Eu era ajudante civil, de limpeza.

P: Conta um pouco qual o tipo de trabalho que você fazia.

RB: Tem uns ponteiros que lá que chama martelo, eu trabalhava naquilo. Limpeza. Limpava aquele concreto, era a parte de limpeza. Ferro velho, madeira, entendeu. O serviço era aquele.

P: Colocava nos carrinhos de mão e …

RB: Colocava no carrinho de mão e tinha um que ficava perto da gaiola que tem lá, que é tipo uma caçamba, que é o guincho que pega. Joga aonde você quer e ele pega, e leva depois que enche. Você traz de longe, aí pega dentro do carrinho de mão e joga dentro do carrinho lá, da caçamba.

P: Você usava os equipamentos de segurança?

RB: Tinha equipamento de segurança. Era a máscara, protetor de ouvido e os óculos.

P: Mas mesmo assim você pegou uma doença de trabalho?

RB: É por causa de peso. Exatamente por isso que estou com uma hérnia, isso era por causa do peso. Peso demais. Se arribar muito peso cria essa hérnia. É muita gente lá que tem hérnia, não era só eu. Lá tinha muita gente que tá encaminhado no médico, que é operado por causa de hérnia. É muita gente.

P: E a médica não quis dar o laudo [atestado] para você.

RB: Ela não quis, ela me encaminhou direto para o médico. Mas mandar eu embora ela não aceitou.

P: Não aceitou te mandar embora por conta da doença?

RB: É. Ela não aceitou.

P: Nisso você teve que voltar a trabalhar mesmo com a hérnia?

RB: Trabalhar, e fazer … continuar os exames. É botar para frente os exames. Faltava mais um quando eu fui preso.

P: Mas quanto tempo foi isso?

RB: Quanto tempo tá?

P: Depois que ela te mandou voltar a trabalhar, você ficou mais quanto tempo até fazer estes outros exames…

RB: Não, isso não foi um mês não, que aí já entrou o negócio desta greve. Mas os exames já estavam tudo pronto. Só faltava receber um, para o médico me encaminhar e dizer qual era o dia da minha operação.

P:Que foi o caso que você foi pego, foi preso?

RB: Isso, que eu fui preso.

No dia 02 de Abril de 2012, ao fim da segunda greve registrada na construção da usina de Jirau, 30 alojamentos de trabalhadores foram incendiados. As empresas responsáveis pela construção e os sindicatos acusaram um grupo de operários de terem iniciado o incêndio, como pode ser visto aqui.

P: Conta para a gente como foi esse processo, da sua prisão.

RB: Esse processo, porque eu não estava lá no local. Neste dia dessa minha prisão. Estava numa cidadezinha próxima que é Jacy Paraná. Então quando eu cheguei de longe eu vi aquele fogo. Quando eu percebi… Quando eu entrei no meu quarto, arrumei minhas coisas, virei para o outro: “vou aqui no pavilhão dois e já volto”. Aí disseram até para eu não ir. Aí disse: “Não, vou lá atrás dos meus colegas, que moram pertinho de casa, que aí nós vamos ver que vamos juntos no mesmo ônibus [autocarro]. Já que tocaram fogo vão mandar nós embora. Nós não vamos ficar aqui”.

Aí eu fui. Quando eu cheguei lá, assim do lado o pessoal, perguntei por eles e eles não estavam. Ele disse: Não, rodeia lá que eles devem estar lá. Aí rodeei o pavilhão, cheguei lá e fiquei conversando com um amigo meu. Só que não era da minha cidade. Fiquei conversando com ele, aí quando me espantei o policial chegou atrás de mim e me deu ordem de prisão.

Mandou eu ir para a parede, com um monte de arma em cima de mim. Eu dizia para ele que não ia não, que eu não devia ele não. Aí ele mostrou para mim: “E esse isqueiro aí”. Eu disse: “Esse isqueiro aqui… está aqui o isqueiro e está aqui a carteira de cigarro. Eu sou fumador desde os meus dez anos. Desde os meus dez anos que eu fumo”. Aí ele: “Nada”. Dizendo que era eu que tinha tocado fogo. Então me vendia, ele me colocou uma algema, algemado ele saiu me mostrando o canteiro de obra. Me jogou dentro da viatura e saiu me mostrando o canteiro de obra: “Olha, desgraçado, o que tu fez!” Não senhor, não fui eu não. Não tenho coragem de fazer isso, não. Ele: “depois que tu fez, miserável, tu diz que não fez com nada. Depois que tu acabou com tudo aí, né? Olha aí, tu acabou com tudo. Quem é teus colegas?” Eu disse para ele que eu não sabia, que eu não participava desta greve. Então eles me levaram para esse AIB, me bateram de duas horas.

P: O que é o AIB?

RB: O AIB é o alojamento das mulheres com os encarregados. Aonde eles estavam acampados. Então apanhei de duas e meia da manhã até seis e meia da manhã, para eu contar quem eram os tocador de fogo [incendiários], os outros meus companheiros. E eu dizia para eles que eu não sabia. Então eles diziam que eu sabia. Continuava me batendo. Então deu seis horas da manhã, seis e meia da manhã, então ele olhou lá o… entrou o um. E ele… ele mandou eu olhar para ele. Quando eu olhei para ele, eles estilingaram o spray de pimenta, o spray de pimenta na minha cara. Aí foi quando eu não enxerguei mais nada, e eles continuaram a me chutar, e eu rolando no chão dentro do quarto. Quando entrou o um, ele disse: “Para com isso aí que nós não pode fazer isso. Nós estamos dentro do canteiro de obras. Nós pode se complicar.” Então eles me soltaram.

Com causo de uma hora mais ou menos eu voltei a enxergar. Eles me levaram lá para fora, aí perguntaram: “Nós te batimos, preso?” Perguntaram três vezes. Eu digo: “Não senhor.” Como eu dizer que eles me bateram? Que eu tinha apanhado a noite toda? Se eu dissesse que eles me batiam na frente daquele monte de policial, aquele monte de arma na minha cara, eles podiam dar um sumiço em mim. Então eu disse para ele que não me bateram, na hora lá eu falei. Mas apanhei muito. E por uma coisa que eu não devo.

P: Aí você foi encaminhado para a…

RB: Aí eu fui encaminhado para a delegacia. Então, me jogaram lá na delegacia e quando chegou a tarde, chegaram com … a Camargo Corrêa chegou com a minha justa causa para mim assinar. Então disse para ela que não ia assinar, que eu não devia eles. Então eles falaram: ”Você não assina, mas duas testemunhas podem assinar por você.” Então eu digo: “Pode mandar os dois, mas eu não assino.” Eu não assinei minha justa causa.

P: E depois disso você foi para o presídio?

RB: Depois disso eu fui para o presídio, eu cheguei onze horas da noite no presídio. O Urso Branco, é Pandinha, anexo do Urso Branco. Então lá eu fiquei quinze dias encarcerado numa cela de mais ou menos de um metro por três metros. Eu pensava que estava eu só, tinha eu e mais seis. Péssimas condições. Não tinha pasta [creme dental], não tinha sabonete, não tinha nada para escovar a boca nem para tomar banho. A água para beber era uma água que escorria da parede. Que o cano era quebrado lá dentro e a água não tinha força de jogar longe. Então só escorria na parede, que era muito fraca. Passei todo esse tempo.

Depois me jogaram na segunda… na primeira triagem. Eu passei lá mais dez dias, com oitenta e quatro presos. Não conseguia dormir, só em pé, direto, aquele calorzão… Foi então que fui ter direito de uma pasta, uma escova e uma banda de sabonete. Fui ter direito a estas coisas lá. De lá para frente eles não me deram mais nada.

P: Aí você tinha que…

RB: Aí eu tinha que … eu limpava o chão para os presos, lavava as roupas deles, lençol, para me manter, para eu ter minhas coisas lá dentro. Porque eu não tinha mais nada, porque eles não deram. Pedia aos agentes e eles falavam que não tinha, que o governo não estava dando.

P: Foi neste momento que você teve contato com os outros…

RB: Foi de lá que eu fui para a segunda triagem com vinte e quatro, e depois eu passei para a cela. Passei sete dias lá, depois me transferiram para a cela que eu estava com doze. Que era lá que eu limpava tudo, o chão, para ganhar estas coisas minha. Então aí que eu fui ter liberdade para o meu banho de sol. Lá que encontrei esse rapaz. Eu vi os outros chamando ele de incendiário, aí foi na hora que eu encurtei perto dele e perguntei de onde ele era. Ele disse que era da Camargo, e eu disse para ele que eu era também. Foi aí que ele pegou… disse me dá teu nome, escreve lá teu nome para mim, o nome lá escrivido num … você corta o dedo, pouquinho com a lâmina, espreme para sair aquele sangue para você botar no papel higiênico, no miolo do papel higiênico para escrever seu nome.

De lá foi com três dias que o advogado chegou e me chamou. Pensava até que era meu alvará de soltura. Era o advogado. Depois com uma semana ele voltou e disse que teria meu julgamento. Eu fui absolvido por falta de provas, que não tinha nada a ver com coisa. Eu falei para o juiz, contei a mesma história para o juiz. O juiz perguntou… A Camargo Corrêa arrumou dois testemunhas. Era o policial que me bateu mais que era o próprio testemunha meu. Só que foi me testemunhar contra eu, e ela arrumou um trabalhador, testemunha. Na hora o juiz perguntou se era eu e disseram que não era eu. Pegaram e disse que não era eu.

P: E neste momento você conseguiu sair ou você ainda ficou mais um tempo?

RB: Fiquei mais a tarde. Cinco horas da tarde eu saí. Fui lá para a casa do advogado e fiquei… Fiquei naquelas, não tinha nada, não tinha roupas, não tinha documento, sumiu tudo. Então eu resolvi entrar dentro do canteiro de obra. Dia 30. Foi aí que eu cheguei lá e perguntei: “queria saber qual a justa causa do Raimundo Braga de Souza.”

P: 30 de Março?

RB: É. Dia 30 de Março. Aí ele disse.. só olhou para mim e bateu o motivo da justa causa. Depois ele só olhou para mim e saiu, deu as costas. Mais ou menos uns dez minutos eu sentei nos bancos assim… com dez minutos depois chegou foi cinco guardas da patrimonial: “Quem é o Raimundo?” Disse: “Sou eu”. Ele disse: ”No dia 03 você se recusou a assinar a justa causa. Você vai assinar hoje ou não?” Eu disse: ”Não vou não porque eu não devo vocês. Está aqui meu alvará de soltura. Eu fui absolvido e não tenho nada a ver com isso aí. Então quero apenas que vocês me dêem o que é meu, acertar comigo direito, que aí eu vou embora satisfeito”. Foi a hora que ele… “Você vai assinar ou não?” Eu disse: “Não vou!” “Então pronto ele está liberado.” Me jogaram na portaria tipo um cachorro. Não me deram passagem, não me deram nada.

P: Até hoje não acertaram com você a indenização?

RB: Até hoje nunca acertaram.

P: E como você foi embora de Jirau? Para onde você foi depois?

RB: Não. O advogado, que é o dr. Ermógenes [2], tinha contato, que ele trabalha para a Liga Operária, então de lá eles conseguiram… me trouxeram… me trazer até BH [Belo Horizonte], para fazer todas estas denúncias.

P: Você disse que trabalhava na Camargo Corrêa e que tem várias outras empresas que prestam serviços terceirizados lá. Qual é a relação que vocês têm com estes operários destas empresas? É uma relação normal, como vocês têm com os outros trabalhadores da Camargo Corrêa, ou tem alguma diferença, alguma coisa assim? Como é a convivência entre vocês lá dentro da obra?

RB: Tipo esta convivência com os outros trabalhadores das outras empresas não sei lhe informar não, porque nosso alojamento é separado. Nosso alojamento é aqui, e o da Enesa [Enesa Engenharia] é lá no outro lugar. Fica separado. Nós não temos contato com eles. Então quando tira o uniforme nós não sabe quem é Enesa e quem é Camargo. Nós não sabe quem é Enesa e quem é Camargo quando tira o uniforme.

P: Mas os salários são iguais? Tem diferença no pagamento, nas condições de trabalho? Como é?

RB: Cada qual ganha mais. Os alojamentos da Enesa é tudo organizado, é tudo bom. Dentro do próprio canteiro de obra.

P: É melhor que os da Camargo?

RB: Claro. Oxi. Lá é mais chique, é bom.

P: Mas são operários como vocês ou exercem outros cargos de maior qualificação?

RB: São os mesmos operários, como nós. A mesma coisa. Presta serviço para a Camargo. Só que é outra empresa, é uma terceirizada.

P: E qual é a relação que vocês têm com os encarregados? É conflituosa ou é uma relação tranquila?

RB: Não, é tranquila. Os encarregados lá … eles querem mandar muito na gente, entendeu? Eles acham que são encarregados, que são o bicho [que são importantes], que são os donos das empresas. Entendeu? Então têm várias confusões com eles, porque eles querem ser o bicho. Então na hora da greve é o primeiro que some. É o encarregado, entendeu?

P: E eles têm algumas regalias a mais?

RB: Eles querem ser uma coisona mais. Nós peão [trabalhador braçal não qualificado] somos separados deles. Eles e mulher já moram para lá, tudo em frente. As mulheres com encarregados, tudo em frente. Nós não. Nós, lá, até se ver uma mulher entrando em nosso quarto lá dá justa causa. A empresa tem o prazer de dar justa causa na gente.

P: Você participou de alguma assembleia da greve?

RB: Não, nunca participei de nenhuma.

P: Mas nenhum comício, alguma fala assim… que houve?

RB: Não. Eu fiquei de longe no dia que o sindicato foi lá. Fiquei de longe. Porque o sindicato vai lá… o sindicato foi lá essa vez e a proposta que fazia para os trabalhadores era a seguinte: “Senhores, quem não quiser trabalhar por favor pode trazer suas carteiras para cá que nós damos baixa e manda, como nós estamos mandando vocês embora”. Então isso eu acho que isso não é proposta porque o sindicato tem todo o prazer de botar na parede, dele, do sindicato: “Sindicato dos trabalhadores”. Então ele vai com esta proposta lá, ele é dos trabalhadores ou ele é da empresa? Então, isso do jeito que ele fala, do jeito que ele foi lá falar para os trabalhadores, então quem manda é a empresa. Quem manda é a moeda maior, que é a da empresa.

Então nessa hora, justamente, que os trabalhadores mandaram ele repetir. Então ele repetiu. Então a pedra comeu mesmo.

P: Acertaram os…

RB: Acertaram mesmo. Deixaram puir mesmo os carros deles.

P: Mas acertaram eles ou só os carros?

RB: Os carros. Quebraram só os carros. Só na pedra. Jogavam pedras mesmo neles. Para eles saírem fora. Para eles procurar o rumo deles, porque aquilo não era conversa de um sindicato dizer para os trabalhadores, não. Dezesseis mil trabalhadores. É conversa para o sindicato ir lá dizer para os trabalhadores?

P: O sindicato tem algum escritório dentro da obra?

RB: Não, que eu saiba não. Que eu saiba o sindicato só fica lá em Posto [Porto] Velho mesmo. Só se tem algum lá e eu não saiba, porque a obra é muito grande. Então não tenho muito contato, meus contatos lá era com peão mesmo que trabalhava na obra. Não era com aqueles grandão para lá, que usa aqueles paletozinhos [casaquinhos] deles não. Aqueles lá que usa aqueles paletozinho de cachorro eu não quero nem papo.

P: Vocês usam macacão [fato macaco]?

RB: É… o de roça mesmo [a mesma roupa que para o trabalho do campo], é tipo… magazona comprida e calça.

P: Tem mais alguma coisa que você queira falar? Alguma impressão sua que tem das obras, sobre este tipo de trabalho?

RB: Não, para mim não tem mais nada, não. Queria relatar mesmo porque nós nordestino, maranhense, do Piauí, que mora para aquelas bandas, nós não têm valor. Eu queria dizer para o povo que eles têm que dar valor na nossa vida da gente. Que só vai feito… Por que lá mesmo nesta barragem acho que só está sendo feita mais … que mais tem lá é piauiense. Piauiense, maranhense, gente do Pará. Tem gente de todo o lugar que você imaginar. Então eles têm que saber dar valor para a gente. Tem que pagar um salário digno, um salário bom para a gente ter gosto, coragem de trabalhar, entendeu? Porque se eles pagar mixaria a gente não tem gosto, a gente não vai para o serviço com fé, com coragem, com toda aquela honra de fazer aquele serviço. Se eles pagassem um salário digno, bom, todo mundo ia com fé e coragem.

NOTAS

[1] Este presídio foi denunciado em diversos órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos pela prática sistemática de tortura e mortes violentas. Algumas matérias sobre o presídio podem ser encontradas aqui.

[2] Ermógenes Jacinto de Souza, advogado de defesa dos operários presos em Porto Velho.

As imagens que ilustram o artigo são do filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade.

11 COMENTÁRIOS

  1. A entrevista é excelente, informativa. Mas o título é inadequado. Deveriam priorizar o potencial de replicação do texto na net e de acesso a ele. Logo, o título deveria ter a palavra “tortura”, ter “Camargo Correa”… e outros.

  2. Obra do governo federal do Partido dos Trabalhadores. É o gulag da social democracia brasileira.

    Parece claro que para esse povo ir trabalhar nas condições impostas pelos patrões neste país tem que ter “coragem”.

  3. Cara Amanda, apenas como informação, o objetivo do título era expressar justamente as péssimas condições de trabalho a que estão submetidos os trabalhadores nestas grandes obras.

  4. Esta excelente entrevista conduzida pelo Tales apresenta-nos uma descrição precisa do “exitoso” capitalismo de “esquerda” que segue como marca brasileira no mundo. A trajetória do jovem operário Raimundo Braga, do Piauí à “selva de concreto” de Rondônia e barbaramente torturado nos “porões de Jirau”, é similar à dos muitos “Lulas” que o capitalismo do senhor Luís Inácio da Silva pôs em movimento…

  5. Excelente entrevista!!! Vou usá-la nas minhas aulas. Achei o título interessante, já denuncia algo muito grave que são as mortes dos trabalhadores vítimas da péssima condição de trabalho e a prática espúria de disfarçar a morte, para não haver denúncias no Ministério do Trabalho. Essa entrevista surge em um momento tenso. O governo Dilma começa a se mexer para mudar a CLT. A Consolidação das Leis Trabalhistas, criada em 1943 no Governo Vargas, pelo Ministro Marcondes Filho (Advogado dos industriais paulista e amigo pessoal de Roberto Simonsen) não salva os trabalhadores da exploração, porém na minha ótica, a tal “flexibilização” das relações trabalhistas, pregadas pelos reformuladores, vai servir para justificar práticas como a da Camargo Correia em Jirau. Não sei como será o posicionamento da esquerda frente a essas mudanças,mas é um assunto muito grave e precisa ser debatido e espero um texto do Passa Palavra sobre o assunto. Parabéns Tales e demais estudantes da UFG pelo excelente trabalho.

  6. Concordo com a amanda, a entrevista está muito boa, mas, para melhor divulgação na internet, deve-se reformular o título, ou pelo menos o sub-título, chamando atenção para a Tortura, a prisão, enfim, a Repressão nesta obra de Jirau

  7. Olá! Gostaria de acessar o áudio, mas não consigo – quando clico mostra uma mensagem dizendo que a página não está mais disponível. Estou fazendo uma pesquisa sobre Jirau – há como ter acesso ao áudio, ou a pessoa que o gravou? Muito obrigada!
    Rita

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