Nas propostas de nomeação de um ditador para os momentos de perigo Marat nunca referiu o controlo, aparecendo como garantia a curta duração do poder de excepção. Por João Bernardo

Esta série de quatro artigos foi escrita e entregue ao Passa Palavra em meados de Dezembro de 2011, seis meses antes da publicação do manifesto Ponto Final.

Será paradoxal que o mesmo Jean-Paul Marat que incitava ao controlo permanente sobre os representantes e pretendeu instituir o direito à insurreição defendesse igualmente a necessidade da nomeação de um «tribuno» ou «ditador» nos momentos de perigo?

marat-3Marat fê-lo pela primeira vez, tanto quanto sei, no nº 25 de L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo), em 5 de Outubro de 1789. No Appel à la Nation (Apelo à Nação), que escreveu nos primeiros meses de 1790, exilado temporariamente em Londres, voltou a insistir na necessidade de nomear um tribuno e explicou que ele teria um mandato muito curto e as suas funções seriam meramente repressivas, viradas para aqueles que conspiravam contra a liberdade. No nº 177 de L’Ami du Peuple, de 30 de Julho de 1790, ele enunciou também estas duas condições e acrescentou que a duração do mandato proposto seria de «três dias». No nº 223 do mesmo jornal, de 17 de Setembro de 1790, Marat mencionou já a necessidade de um «tribuno militar» e no nº 497, em 22 de Junho de 1791, insistiu que era indispensável «um tribuno, um tribuno militar», apelando ainda para a nomeação de um tribuno militar no nº 520, de 16 de Julho de 1791. No mês seguinte, em 30 de Agosto de 1791, no nº 542, o poder repressivo que seria dado a esse chefe eleito foi classificado de «momentâneo, mas sem limites». No nº 1 do Journal de la République française (Jornal da República Francesa), de 25 de Setembro de 1792, Marat enunciou de novo as condições restritivas e explicou que o mandato duraria «alguns dias», e no nº 40, de 8 de Novembro de 1792, o mandato voltou a ser qualificado de «momentâneo». Marat reivindicou mesmo a originalidade destas propostas, como afirmou num discurso na Convenção, quando respondeu às acusações de que aspirava à ditadura, reproduzido nos nº 4 e 5 do Journal…, de 28 e 29 de Setembro de 1792. «Creio ter sido o primeiro escritor político, e talvez o único em França desde a Revolução, a propor um ditador, um tribuno militar, triúnviros, como sendo o único meio de esmagar os traidores e os conspiradores» [1].

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Jean-Paul Marat

É significativo que nunca, em nenhuma destas propostas, Marat tivesse referido o problema do controlo, aparecendo implicitamente a curta duração do poder de excepção e o seu carácter exclusivamente repressivo como garantias suficientes. Porém, a questão não podia deixar de se levantar à medida que o poder de excepção sugerido se ia tornando mais vasto, prevendo-se não uma pessoa, mas um conjunto de dirigentes, bem como um mandato prolongado. No nº 1 do Journal…, de 25 de Setembro de 1792, foi já referida «a necessidade de um tribuno militar, de um ditador ou de um triunvirato». A partir de então Marat apelou para uma ditadura revolucionária de complexidade institucional crescente.

«Um dos maiores defeitos do governo democrático», escreveu Marat no Journal… de 8 de Fevereiro de 1793, «é a lentidão e o carácter público de todas as suas operações; lentidão e carácter público que sempre comprometem a salvação pública quando se está em guerra com os Estados despóticos, cuja rapidez e secretismo de operações é o traço distintivo. Esses defeitos decorrem da própria essência daquela forma de governo. Numa democracia, sendo todos os homens iguais e gozando dos mesmos direitos políticos, eles são necessariamente ciosos uns dos outros; ora, a acção destas pequenas paixões no senado nacional não deixa o legislador confiar a nenhum cidadão poderes ilimitados, sobretudo para operações secretas […] São estas paixões mesquinhas, tanto como os pavores dos membros antipatrióticos, que impediram de formar na Convenção um comité secreto de três membros, com plenos poderes para tomar todas as medidas necessárias para deter os conspiradores, os inimigos públicos, e apreender-lhes os documentos. São estas paixões mesquinhas, tanto como a intriga [2], que impediram a Convenção de entregar a dois dos seus membros mais instruídos a tarefa de fazer um plano de Constituição: obra que para sair bem feita tem de ser pensada num só jacto dentro de uma mesma cabeça» [3].

No entanto, pouco depois, em Le Publiciste de la République française (O Publicista da República Francesa) de 27 de Março de 1793, Marat sugeriu a organização de um exército popular, com armamento e estratégia diferentes dos exércitos aristocráticos e que, apesar disto, seria plenamente eficaz. «A forma de armar os cidadãos que propus na minha folha precedente [um número do jornal que falta na colecção que consultei], reúne quatro vantagens inestimáveis. A primeira vantagem é que é a mais temível nas operações de postos e na defesa das cidades, mesmo quando tomadas de assalto; pois é impossível que as tropas mais bem disciplinadas, metidas num desfiladeiro, nas ruas de uma cidade ou atacadas nos acampamentos consigam resistir aos cidadãos que as investem por todos os lados, de armas na mão. A segunda vantagem é que em todos estes casos não se exige nenhuma disciplina e qualquer homem corajoso converte-se então num guerreiro temível. A terceira, é que é a mais expeditiva e a única admissível na presente crise. A quarta, é que é a menos dispendiosa […] esta forma de armar todos os sans culottes [4] […] só convém a cidadãos que se batem pelos seus lares, pelas suas mulheres, os seus filhos, a sua liberdade e pela salvação pública. Nunca recorerrão a ela os nossos inimigos, mercenários que se batem a troco de oito tostões por dia, que se batem como cobardes, contam com a táctica e a habilidade dos generais e, por isso, logo que vêem o perigo e descobrem uma saída, põem-se imediatamente em fuga» [5]. Não há dúvida de que se tratava de uma reorganização social e económica muito profunda, porque para armar e vestir este exército de novo tipo Marat propôs em seguida a criação de oficinas populares nas grandes cidades. A nova estratégia militar teria de ser alimentada por uma nova organização manufactureira, tendo ambas como base social os sans culottes.

marat-5Passados poucos dias, porém, em Le Publiciste… de 5 de Abril de 1793, Marat defendeu outra vez o secretismo nas decisões, justificando-se com a situação excepcional que se atravessava. «[…] o segredo e a energia são indispensáveis para assegurar o êxito das operações do governo […] Deve ser tomada uma grande medida prévia, sem a qual todos os nossos meios de defesa não terão êxito; trata-se de organizar imediatamente um comité de segurança geral e um comité de defesa geral, cada um composto por doze membros, escolhidos entre os patriotas [6] puros e que mais gozem da confiança pública. Ficarão autorizados a tomar à porta fechada, um, todas as medidas de segurança contra os inimigos externos ocultos […] o outro, a concentrar todos os meios de defesa contra os inimigos armados internos e externos». Marat descreveu em seguida as medidas repressivas de que os dois comités haviam de se encarregar, para concluir: «Os membros destes comités porão a vida como penhor da lealdade da sua conduta; e para se mostrarem dignos da confiança do Povo, eles próprios aceitarão estar detidos sob vigilância» [7]. Raramente as contradições de um pensamento atingem um ponto tão extremo. Eram esquecidas as facetas sociais e a pedagogia política do controlo e da revogabilidade, garantidas pela assistência do povo às deliberações, e substituía-se-lhes o controlo físico exercido sobre as pessoas dos representantes. As deliberações passavam a decorrer à porta fechada, mas do lado de lá da porta estavam populares armados, prontos a matar os deliberantes cujas discussões não haviam escutado. Que paradoxo este, o de uma nova classe dominante a gerar-se sob o estado de prisão!

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Manuscrito de Marat

Mas o paradoxo não se deveu a Marat e sim à situação que a república atravessava, e que o genial revolucionário tinha desde há muito previsto com lucidez, ao mostrar que a guerra contra o exterior só teria como efeito o desenvolvimento do processo reaccionário no interior do país. «Independentemente da sobrecarga de impostos de que a guerra necessita, da estagnação do comércio e do esgotamento das finanças que provoca, da multidão inumerável de desafortunados que arrasta para a indigência, ela é sempre fatal para a liberdade pública», escreveu Marat em 1774 em Les Chaînes de l’esclavage (As Cadeias da Escravidão). «Antes de mais, desvia a atenção dos cidadãos, que se dirige das questões internas para as questões externas; ora, deixando de estar vigiado, o governo leva avante os seus projectos. […] Em seguida, ela fornece ao príncipe a maneira de ocupar noutro lugar cidadãos rebeldes […] ou antes enviar para a matança os cidadãos mais entusiastas […] a guerra e o despotismo ajudam-se mutuamente […] Se o exército for vencido, as perdas em combate são só o menor dos males […] Para encobrir as suas traições, eles [os chefes] atribuem as derrotas à indisciplina das tropas e aproveitam habilmente os momentos de consternação para conseguir de legisladores fracos ou corruptos decretos atrozes, que deixam os soldados patriotas à mercê dos chefes; decretos que usam para sacrificar os defensores da liberdade às vinganças dos traidores à pátria, para subjugar o exército às suas ordens arbitrárias e assegurar o êxito de todas as suas medonhas conspirações» [8]. Estão traçadas aqui a razão da existência e as consequências da acção daqueles mesmos comités que, vinte anos mais tarde, Marat ajudaria a criar.

No entanto, Marat retomou exactamente nos mesmos termos a sua desconfiança relativamente aos projectos bélicos em 24 de Maio de 1790, no nº 112 de L’Ami du Peuple, e idêntica atitude inspirara já várias passagens do seu projecto de Constituição, tal como continuou a manifestar-se contra os planos de guerra no nº 125 do jornal, em 6 de Junho de 1790. O manifesto que publicou quando a guerra foi declarada em Abril de 1792, C’est un beau rêve, gare au réveil! (É um Lindo Sonho, Atenção ao Despertar!), não podia ser mais enérgico, denunciando-a como uma estratégia destinada a acabar com a liberdade e repetindo as teses lúcidas que enunciara em 1774. «Povo que escapastes àquele destino terrível, resta-vos um único recurso», indicou ele neste manifesto, «que é de vos unirdes estreitamente aos vossos irmãos de armas da tropa de linha, que é de os fazerdes jurar, pela sua honra, só marcharem contra o inimigo depois de a liberdade estar estabelecida entre vós, de os inimigos da pátria estarem esmagados; que é de cortardes com a lâmina vingadora a cabeça criminosa dos vossos ministros; e que é, antes de mais, de vos reunirdes sem demora, encherdes o senado e pedirdes a plenos pulmões a revogação do funesto decreto […]» [9].

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Marat em triunfo

A oposição de Marat à guerra foi igualmente drástica no número de L’Ami du Peuple publicado em 19 de Abril de 1792, onde de novo insistiu na relação entre a guerra externa e a reacção interna. E no entanto foi ali, neste mesmo texto, que logo depois de ter desenvolvido com detalhe e eloquência os argumentos em abono da sua tese, Marat introduziu uma proposta nova. «Será que não tem o povo o bom senso suficiente para entender a necessidade de escolher enfim um ditador supremo, cujos poderes estejam circunscritos de tal maneira que, não tendo autoridade para dominar, disponha de uma autoridade ilimitada para abater os chefes dos conspiradores […]» [10]. Estava aqui em embrião a proposta de criação de comités apresentada no ano seguinte. Poucos dias depois, a 24 de Abril de 1792, no nº 639 do seu jornal, Marat não se enganou ao prever o risco de que a guerra pudesse consolidar o poder de algum general, que viesse a esmagar a liberdade.

Mas Marat não viveu para ver que Bonaparte foi o legítimo herdeiro do Comité de Salvação Pública e que ambos foram a consequência daquela guerra que ele sempre denunciara como liberticida. Mesmo nos seus enganos o genial revolucionário nunca deixou de ser lúcido.

Notas

[1] A. Vermorel (org.), Oeuvres de J. P. Marat (L’Ami du Peuple), Paris: Décembre-Alounier, 1869, pág. 239.

[2] Na terminologia daquela época, intriga tinha a acepção de conspiração, aplicada nomeadamente aos girondinos.

[3] Nº 116, págs. 6-7.

[4] As culottes eram calças justas e curtas, até ao joelho (veja aqui), que constituíam uma parte indispensável do vestuário dos ricos. A plebe e o povo trabalhador usavam outro tipo de calças, largas e mais compridas, de outro tecido também (veja aqui), por isso eram chamados sans culottes, ou seja, sem culottes.

[5] Nº 153, págs. 2-3.

[6] Note-se que desde então e durante quase um século, em fancês patriota significava liberal, praticamente um republicano.

[7] Nº 161, págs. 5-6. Marat escreveu gardés à vue, que traduzi como detidos sob vigilância. E a expressão deve ser tomada no sentido forte, porque a garde à vue é efectivamente uma detenção.

[8] Les Chaînes de l’esclavage, Paris: Union Générale d’Éditions, 1972, págs. 200-204.

[9] Michel Vovelle (org.), Marat. Textes Choisis, Paris: Éditions Sociales, 1963, pág. 140.

[10] Nº 634 em Michel Vovelle (org.), op. cit., pág. 144.

A série Dilemas da liberdade tem quatro artigos:
1) Uma incipiente nova ordem da sociedade
2) Os banquetes fraternais
3) Marat: a soberania é o uso da soberania
4) Marat: nomear um ditador detido sob vigilância

5 COMENTÁRIOS

  1. Por que Marat não é estudado nos cursos de politica, universitários ou não? Por que há tão pouco sobre ele no Brasil?

  2. Porque os estudantes dos departamentos universitários de História preferem estudar temas como: “A função social da sanfona na folia de reis”. E sim, este projeto existe realmente…

  3. “…cujos poderes estejam circunscritos de tal maneira que, não tendo autoridade para dominar, disponha de uma autoridade ilimitada para abater os chefes dos conspiradores “.

    Café descafeinado?
    Algo como querer os efeitos de um ditador sem que ele exista. Um belo exercício para nós contemporâneos, resolver esse tipo de problema de ordem quase filosófica.

  4. Anônimo,

    Na universidade não se ensina Malatesta, nem José Oiticica, mas nos movimentos, nas lutas, nos cursos sindicais ocorre de surgirem textos, discussões, enfim. Basicamente, todo o anarquismo social é promovido no contexto de mobilizações. A forma como tragtenberg é ainda lido tem a ver com a existência de todo um conjunto de lutas, críticas, o próprio João Bernardo e outros autonomistas. Já o Marat, esses escritos, eram totalmente desconhecidos e olha que já rodei muito por ai e conheço muita gente.

    Essa luta teórica e instrução geral o João faz muito bem. É sua principal função hoje. Carecemos de mais textos como este.

  5. A propósito dos comentários anteriores gostaria de observar o seguinte. Em todas as minhas aulas, sempre que mencionei a questão da representatividade e do controlo nunca deixei de referir Marat. E abordei mais extensamente o papel e a obra de Marat no curso «Controle, Representatividade e Ruptura Social», dado em Julho de 1994 no Centro de Ciências da Educação da UFSC, em Florianópolis; no curso «Origem Política dos Conceitos Políticos», dado durante o mês de Agosto de 1994 no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp, em Campinas; e no curso «Autoritarismo Liberal e Liberalismo Autoritário», dado ao longo do mês de Novembro de 1997 no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, na PUC de São Paulo. Não me recordo se tratei da obra de Marat noutros cursos, mas de certeza o fiz naqueles. E com que resultados? Nenhuns.
    Num texto que escreveu no Vias de Facto ( http://viasfacto.blogspot.pt/2012/08/quarta-e-ultima-parte-dos-dilemas-da.html ) a respeito desta série de artigos, Miguel Serras Pereira evocou um verso da muito grande poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner: «navegavam sem o mapa que faziam». Não conheço ninguém mais comodista do que a esquerda das certezas, a que prefere as respostas às perguntas. Esses navegam com mapas já feitos, por isso não deixam traços. Viver é outra coisa. É navegar sem o mapa que fazemos.

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